"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Olinda, a arte e seus artistas

A idéia do movimento Olinda Arte em Toda Parte surgiu entre os artistas e foi se consolidando como uma das realizações anuais de toda a comunidade e da vontade política da administração pública do município, incorporando uma dimensão que envolve, na repercussão, todo o Estado de Pernambuco.

O seu percurso histórico iniciou nos primeiros diálogos entre Tereza Costa Rego, Plínio Victor e Petrônio Cunha, de onde surgiram os primeiros passos para concretizar um projeto que envolvesse não somente os artistas, mas também toda a cidade numa participação viva de sua cultura e, claro, para amadurecê-lo, compartilharam com outros companheiros, tais como Raul Córdula, Ypiranga Filho, Marcos Cordeiro, Luciano Pinheiro, João Câmara, Maria Carmem e Giuseppe Baccaro — este último disponibilizou o Atelier Coletivo de Olinda para que fosse um dos núcleos culturais do evento.

Na primeira edição, em dezembro de 2001, coube a Raul Córdula o texto de apresentação do catálogo, com título Utopia do Olhar, onde inclui, com a competente visão histórica e crítica, todas as gerações de artistas que estiveram em Olinda contribuindo com suas obras, individualizando-os e incorporando-os à realidade de uma cidade que, por si só, já é uma obra de arte, com as importantes instituições, construções arquitetônicas e a característica natural de um povo que fala a língua própria da alegria e da cultura, nas manifestações coletivas.

Neste 10º Olinda Arte em Toda parte, de 2 a 12 de dezembro de 2010, Raul Córdula não somente assina o texto de apresentação, como também é o curador que proporcionou uma retomada do entusiasmo e do vigor das primeiras edições — que muitos artistas discutiam e constatava a necessidade desse retorno —, numa concepção à altura do movimento que faz parte da vida da cidade, que tão apropriadamente o curador a intitula como a Cidade do Artista, onde, segundo Carlos Pena Filho, no poema Olinda, “Ninguém diz: é lá que eu moro/Diz somente: é lá que eu vejo”. E para homenagear aqueles artistas que foram os primeiros a se instalar na cidade e dar a sua contribuição histórica, organizou uma exposição das suas obras no salão da Prefeitura de Olinda, considerando-os como os fundadores e, os herdeiros, seus filhos, também criadores expressivos, com trabalhos de várias vertentes estéticas expostos no Mercado da Ribeira e no Atelier Coletivo; a montagem de todas essas mostras foi concebida pelo projeto expográfico da artista plástica e museógrafa Amélia Couto.

Além do catálogo, com a publicação dividida em 2 volumes —  no primeiro, estão todos os artistas presentes no evento, no segundo, os homenageados com os fundadores e os herdeiros —, da participação de 77 ateliês para a visitação do público e 240 artistas e artesãos, o movimento foi dinamizado com oficinas, palestras, apresentações culturais, e um roteiro gastronômico temático. A partir da realização do 10º Olinda Arte em Toda Parte terá uma concepção permanente de vitalidade, porque a cada ano se dará um passo mais ousado. É de se aplaudir a participação dos artistas e a importante iniciativa da administração pública no apoio, patrocínio e na estruturação para a concretização do movimento.


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sensation e a Bienal de São Paulo

A exposição Sensation, realizada em 1997 na Royal Academy of Arts, em Londres, reunindo a geração dos Young Bristish Artists – YBAs, foi organizada por um bem-sucedido empresário da publicidade — Charles Saatchi, que se tornou um dos mais importantes marchands e proprietário da Saatchi Gallery, especializada em arte contemporânea e a principal interessada em colocar artistas no topo do mercado e da publicidade nas grandes metrópoles. O mote da Sensation? A mistura de erotismo, violência, vulgaridade e humor grotesco.

Entre as obras, estava um retrato da serial killer Myra Hindley, num painel de 4 x 3,5 m que reproduzia a foto policial divulgada pela imprensa, na década de 1960, à procura da assassina de crianças. O autor, Marcus Harvey, intitulou a obra de Myra, e os pixels da foto, excessivamente ampliada, tinham a forma de mãos de criança, mas ele, talvez para se precaver de reações penais, teve o cuidado de informar que aquelas mãos eram reproduzidas por moldes, e não por seres inocentes.

Outro artista, Marc Quin, realizou a obra Self, uma escultura de sua cabeça, moldada em 4,5 litros do seu próprio sangue, congelada e colocada num cubo refrigerado para transmitir a sensação de vida e morte, como uma máscara mortuária produzida pela força do sangue — vida e morte simultaneamente.
A grande estrela do evento foi Damien Hirst, que esquartejou animais com precisão, apresentando-os em tanques, imersos em formol. Inicialmente foram ovelhas, porcos e vacas. Nas séries posteriores, vieram os tubarões.

A Royal Academy, como instituição tradicional, abriu uma seção reservada para maiores de 18 anos, porque ali estavam os manequins de Jake e Dinos Chapman, apresentados explorando taras sexuais e apelos ao grotesco. Eram inocentes xifópagos amontoados em posições diversas, que apresentavam pênis no lugar das narinas e ânus no da boca.

O público mordeu a isca da suposta provocação, agredindo pessoas e obras presentes na mostra e pedindo o fechamento da exposição; uma verdadeira moeda de recompensa para o organizador, que estava “antecipando” os lucros promovidos pela ignorância daquele público que consolidava o tão almejado escândalo. E assim aconteceu: só um dos tubarões de Damien Hirst foi vendido, posteriormente, por 12 milhões de dólares!

Essa exposição foi uma das mais representativas do pensamento da arte nas últimas décadas, influenciando centros culturais considerados de Primeiro Mundo e da periferia. Nesse sentido, a Bienal de São Paulo não foge à regra: recebeu, após anos, os reflexos da proposta de Sensation, propondo-se também a escandalizar, e o público reage em protestos, premiando os curadores e protagonistas, possibilitando enorme publicidade, com a pretensão de lucros futuros, e alimentando o permanente vazio de conceitos na arte. 

sábado, 21 de agosto de 2010

O artista e o mercado de arte

O ateliê do artista-artesão do quatrocentos florentino era uma verdadeira oficina coletiva e, ao mesmo tempo, loja, bottega, aberta para o público consumidor que circulava pelas vias e lá encontrava não somente a excelente pintura ou a obra-prima escultórica do mestre que estava em evidência, mas tudo o que se realizava naquela “fábrica” de engenho e genialidade: um serviço de arquitetura, de ourivesaria, de fundição; ornamentos para cofres e cavalos; candelabros; desenhos para tapeceiros e bordadores; louças de noivado; peças de armadura; sinos; e outros utensílios. No testemunho de Giorgio Vasari (1511–1574) — pintor e historiador que escreveu Vidas (dos grandes arquitetos, pintores e escultores italianos) —, artistas como Botticelli, Ghirlandaio e Donatello não se envergonhavam de realizar essas “pequenas” obras artesanais e, para concretizá-las, envolviam todos os componentes da oficina, formados com severa hierarquia. Entravam, inicialmente, como aprendizes e realizavam as atividades mais humildes; após um bom período, adquiriam o aprendizado dos métodos tradicionais e repetitivos, que eram ensinados pelos mais velhos. Já os discípulos exerciam, com o artista do ateliê, atividades simultâneas em pintura, escultura e outros ofícios até serem considerados mestres. Esse percurso de aprendizagem durava cerca de treze anos. E não havia, à época, a preocupação com a assinatura como temos hoje: tudo era realizado coletivamente sob a orientação do artista, que não se constrangia em delegar ao discípulo escolhido o término de uma pintura ou de parte dela, seguindo sempre o estilo do mestre. Para isso, o mais importante era o ateliê terminar a obra encomendada e a ideia de “permanecer na memória dos homens por todo o futuro”.

Durante o Renascimento, os ateliês dos mestres permaneceram com essas características, e todos os grandes artistas representativos desse período passaram pelo mesmo processo e continuaram formando os seus estúdios com esse espírito coletivo de produção. A possibilidade de comercialização de suas obras mais importantes e de custo maior direcionava, essencialmente, para o mecenato, em que a Igreja exercia a primazia, com as encomendas de projetos para catedrais, outros templos importantes, túmulos de papas, representações em esculturas e pinturas e mais o reforço do interesse de refinados cardeais colecionadores que adquiriam obras das mais variadas técnicas e autorias. A outra forma de mecenato encontrava-se no contrato do artista pelos tiranos para expandir as suas ambições como príncipes e honrar os antepassados ilustres e até, servindo-se da genialidade desse criador, para as mais destacadas festas, ornamentando-as com engenhosidades como, por exemplo, os trabalhos que Leonardo da Vinci realizou para o duque de Milão, Ludovico Sforza, o Mouro (1452–1508): além de pinturas, um projeto inacabado de escultura, em bronze — O Grande Cavalo (c.1483–1499), em homenagem ao pai do duque, Francisco Sforza —, estudos de engenharia militar e arquitetura urbanística. Da Vinci ainda tinha tempo para cooperar, como mestre de cerimônias, desenhando e concretizando projetos para a diversão da corte nas comemorações promovidas pelo Mouro.

Rubens (1577–1640) e Rembrandt (1606–1669), incluídos entre os artistas barrocos do norte europeu, formaram verdadeiras equipes em seus ateliês com o detalhamento e a especialidade para cada discípulo e aprendiz. Alguns pintavam mãos; outros, cenas de paisagens, retratos, detalhes de coloração, envernizamento e funções diversificadas para a produção de pinturas e de gravuras. O mestre seguia os trabalhos e realizava a última etapa com os retoques finais. Segundo informações históricas, Rubens conseguiu um alto padrão técnico e quantidades de obras pictóricas nunca alcançadas e espalhadas em toda a Europa, até então, por um artista. Hoje, há dificuldades de se saber a autoria de algumas obras, isto é, se foram criadas diretamente pelas mãos do artista ou pelos discípulos — discussão que alguns teóricos acham dispensáveis. Em Rembrandt, a visão da crítica especializada destaca os projetos e as ações que encontrou para difundir a sua obra e o paralelo da mesma questão quanto à autoria de pinturas realizadas com a colaboração dos discípulos. O artista criou uma técnica rugosa, com camadas espessas de tinta, através de toques com o pincel empastado e uma luz interna que emana dessa matéria, propagando, assim, com perfeição, uma pintura das mais expressivas e geniais, própria do estilo do pintor, que contrastava com a da moda, lisa, esbatida — maneira natural que conquistou o mercado direcionado mais para os aficionados da arte, diferenciando-se do tradicional, que era exclusivo para o mecenato. Os discípulos seguiam criteriosamente o seu estilo, e alguns, depois de sua morte, continuaram os trabalhos individuais sob a permanente influência do mestre holandês. O seu interesse era distribuir as suas obras, vendendo-as diretamente àqueles que estavam em condições de pagar o preço que determinava, sem a preocupação de serem, necessariamente, mecenas. Foi um precursor do mercado especializado para o público consumidor, como entendemos na contemporaneidade e como foi processado na era moderna.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A invenção da pintura

Plínio Palhano

A invenção da pintura percorreu um longo caminho até alcançar a contemporaneidade. Desde a época das pinturas rupestres, quando nossos antepassados encontravam meios de representação do mundo que os circundava, nascia a necessidade da imagem, que permanece no espírito criador do homem. As técnicas, ainda rudimentares, com sangue e minerais, estão gravadas em rochas como expressões milenares das primeiras demonstrações do pensamento plástico que motivaram artistas do século XX e de hoje em suas obras. Alguns estudiosos afirmam que aqueles criadores impregnaram as cavernas com pinturas dos seres que conheciam na intenção de captá-los de forma mágica para, então, concretizar a caça, como se eles não vissem a diferença entre o objeto da criação pictórica e aqueles animais. As formas e a dramaticidade dessas pinturas são tão magníficas que fez Picasso observar que “não aprendemos nada”.
As técnicas foram se aperfeiçoando e se consolidando pelos séculos de forma gradual, a partir, principalmente, das pinturas egípcias em murais que decoravam os túmulos e as obras arquitetônicas em geral, nas esculturas das representações dos deuses e faraós e em papiros; uma pintura em que a cor era utilizada com teor estritamente simbólico e místico, deixando marcas peculiares de uma grande civilização. Já a pintura grega possibilitou um movimento das figuras, a proporcionalidade, a ilusão da tridimensionalidade através das formas sombreadas e a introdução, no espaço, de alguns conceitos de perspectiva. Herdeira imediata da tradição da arte grega, a pintura romana aperfeiçoou os aspectos técnicos e estilos, dando um passo fundamental e deixando o legado à pintura bizantina, como também a toda pintura da Idade Média europeia e do Renascimento.
Até então só se conhecia a pintura em afresco, em iluminura, a têmpera e a encáustica. Mas a revelação da pintura a óleo encontrou em Florença um campo fértil para absorvê-la e torná-la tão nobre que seria a preferida depois de propagada nos ateliês. A novidade veio do Norte, e atribui-se ao flamengo Jan Van Eyck (c. 1390–1441) a invenção, que, paralela à importância da descoberta da perspectiva científica — realizada pelo arquiteto Fellippo Brunelleschi (1377–1446) —, buscava aperfeiçoar a sua obra, dando-lhe uma riqueza nos detalhes que a pintura a têmpera não oferecia. Diz-se que as primeiras obras de Van Eyck chegaram a Nápoles e Urbino atraindo a atenção. Até que o veneziano Antonello de Messina (c. 1430–1479) viaja para Flandres com o fim de iniciar-se na nova técnica. De volta, instala-se em Veneza e passa a novidade aos italianos, em particular a Domenico Veneziano (c. 1410–1461). Só depois os florentinos começam a experimentar a técnica a óleo. Não se tem conhecimento sobre como, exatamente, a pintura a óleo chegou ao ateliê de Andrea Del Verrocchio (1435–1488), mas ele foi um dos primeiros a utilizar a nova revolução, em Florença. Leonardo da Vinci (1452–1519) e Perugino (c. 1445–1523), discípulos de Verrocchio, quando jovens, desenvolveram-na ao máximo, deixando a herança para Rafael Sanzio (1483–1520).
Após o período de todas as técnicas confrontadas pelos grandes mestres na história, prolongando-se ao nosso século, o artista contemporâneo encontra os materiais — entre estes, a tinta acrílica — disponíveis com uma riqueza científica imensa para utilizá-los de maneira livre a ponto de negar, em alguns casos, a própria preocupação de conservação da obra. Não somente a liberdade ante a utilização desses materiais, mas também de criar o seu próprio caminho sem as interferências de escolas, movimentos, estilos, curadores, etc. A pintura, no mundo, encontra-se em vigor e volta a reinar em vários acontecimentos da arte — apesar da sua morte anunciada há anos —, porque é uma das expressões (entre outras linguagens compatíveis com as recentes tecnologias) refinadas que falam diretamente do pensamento poético de um criador e na qual encontramos uma concepção intransponível e única.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Bienal da Política Obscura

15/07/2010
Plínio Palhano

Toda Bienal, principalmente no Brasil, é polêmica, e, no mundo, existem mais de duas centenas delas. A anterior (2008), de São Paulo, foi chamada — como é do conhecimento público — a do Vazio, porque deixou um dos andares do edifício sem nenhuma utilidade. Esse andar foi preenchido pelos pichadores, que, dizem, serão representados este ano, na 29ª Bienal, em vídeos e fotos, num provável ato estratégico e preventivo com o fim, talvez, de domesticá-los e evitar que se atrevam a repetir a “transgressão”. Os curadores ainda têm o desplante de dizer que não sabem se o que os pichadores fazem é arte. Ora, se não sabem, para que servem esses vídeos e essas fotos?
Esta Bienal de 2010 é a da Política Obscura, porque, segundo o conceito dos atuais curadores, não se pode distanciar arte da política — isso dito sem maiores explicações. Mas a que política eles se referem? A dos conchavos? A das cartas marcadas? Diz-se que a permanência de políticas estranhas na Bienal é fato, sem nenhuma dúvida.
A unanimidade entre os pensadores e críticos das Bienais é que essas instituições estão em crise, falidas, nelas havendo pouquíssimas surpresas, principalmente no aspecto da concepção, mas, no Brasil, acrescentam-se as dívidas financeiras exorbitantes. E já que a curadoria fala da aproximação da arte com a política, seria fundamental dar outra dimensão ao evento, com uma verdadeira política, transparente e objetiva, sem as afirmações e os conceitos dúbios que geram apenas especulações e não atingem a finalidade de uma Bienal.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A matéria da obra de Bete Gouveia

Bete Gouveia elabora com grande sensibilidade a sua obra, onde a luz, a sombra e as coisas banhadas por esses contrastes da vida estão em movimento permanente. Vive esse veio à medida que enriquece as percepções dos sentidos para trabalhar a matéria da arte. É a sua luta tornar a pintura algo tão consistente que transpareça tal qual a delicadeza de uma pele, viva, luminosa, ao lado de uma sombria força latente que dá o sentido da existência de todas as coisas. Quer reviver, no espírito, o que Da Vinci, em defesa de sua arte, no Renascimento, conseguiu pensar: que a pintura “é coisa mental”. Porque a imaginação aliada à inteligência oferece a alavanca de possibilidades para concretizar a concepção do artista sobre o mundo, do pintor sobre a matéria. E Bete reafirma, na pintura, a linguagem absoluta e silenciosa da mais pura transfiguração da realidade.
Desde os primeiros trabalhos da sua história, há uma coerência no processo da aproximação do olhar sobre o objeto da criação, particularizando-o, tornando-o abstratizante, com a verve que lhe é própria. Na primeira série de pinturas — Bananeiras (1983) —, pode-se dizer que estavam, em seu conteúdo, todos os trabalhos posteriores. A cor, a luz, a sombra, as formas, os espaços são percebidos, inicialmente, como uma captação da natureza que se desenvolve nos trabalhos da série, permitindo outras invenções na aparente imprevisibilidade, e, aos poucos, concretiza a concepção plástica plena, consolidada no encontro do caminho que lhe dará a confiança necessária para prosseguir.
Uma das marcas de Bete Gouveia é a minúcia com que trata a superfície da pintura em preciosos pontos que demonstram um exercício meditativo nas pinceladas sofisticadas, numa espiral interminável e ascendente, chegando mesmo a repintar uma obra até quase cem vezes para conseguir resultados ante os problemas pictóricos. É o silêncio que tanto cultiva no ateliê que lhe proporciona o diálogo com essa complexidade da matéria. Talvez por isso a sua tendência notívaga, porque é sob essa luz lunar que desenvolve os pensamentos plásticos. É uma artista de movimentos meticulosos e sólidos e sabe o que está realizando para o seu tempo, junto às atividades, como docente, na UFPE, comunicando os conhecimentos do patrimônio cultural de todas as épocas, sendo esta também uma das artes que domina. Acima de tudo, sua obra se constrói com uma vontade à maneira de Cézanne, na lembrança do artista em retornar à montanha de Sainte Victoire para repintá-la à exaustão.
As séries que se sucederam demonstram uma maturidade notável em todos os níveis no corpus do seu pensamento criador, quando o refinamento aflora naturalmente e a artista está tão consciente do processo do trabalho que a impulsiona a dizer mais e a não se contentar com as facilidades da publicidade. Caminha sempre para o olhar interno, com profundidade, à medida que inventa, encontrando no exercício diário da pintura a espontânea garimpagem. Há uma linha condutora em todas as séries: Varais (1985), Geometria do não (1991), Palimpsestos (1993), Nichos (1998), Oceanos portáteis (1999), Paisagens (2003), Ausências substantivas (2006) e, a mais recente, Clarescuro, com outros trabalhos avulsos, em guache. É perceptível o tratamento, em todas elas, que dá na fatura, nas delicadas nuances das cores, na composição e na matéria, onde há apenas algumas variações no emprego de colagens em madeira, metais, tecidos e pastas que intensificam a superfície do suporte.
É nas diferenciadas paisagens marinhas (nas séries Paisagens e Ausências substantivas), envolvidas em uma luminosidade amena, monocromática, mas com potência latente, que dá o tom orquestral da sua maneira de representar o oceano interno. Como se falasse das moradas da alma da artista: as ondas que a envolvem, a luz de um sol imaginário e de uma solidão profunda do olhar para dentro. Assim, transporta essa visão do oceano para as coisas ao redor (na série Clarescuro), os ambientes, a luz fechada e particularizada em uma sala que ilumina os objetos. A mesma concepção em que não há presença direta humana, mas se imagina, na cena, o olhar de um espectador observando do interior do quadro, o mesmo que contempla o oceano mental. 


quinta-feira, 20 de maio de 2010

A Mesopotâmia segundo Raul Córdula

A concepção da obra de Raul Córdula é universal e dinâmica, porque essa foi sempre a sua maneira de olhar o mundo. Em nenhuma das atuações, como artista múltiplo, esquece o universo das linguagens da arte e da vida. Ao concretizar o seu pensamento na pintura, realiza antes, naturalmente, um mergulho em que encontra as simultâneas experiências e os caminhos como o do puro espaço geométrico, da inventividade do design, das instigantes relações das cores e da matéria pictórica, da aprimorada técnica dos mestres de todas as épocas. Além da poesia, do discurso veemente da política, dos registros históricos expressivos, da fotografia, da riqueza do artesanato popular, das manifestações da street art, dos pichadores que demarcam os seus territórios, da mística, da música, do belo arquitetônico, da crítica especializada e das implicações sociais das cidades em que ele dá a sua contribuição. Mas esse mergulho lhe serve apenas como substrato para a concretização plástica de suas próprias ideias. Não há concessão quando as consolida, porque essas ideias estão conectadas também com outras aspirações, vindas de personagens que, às vezes, extrapolam o âmbito da arte.

A exposição intitulada Mesopotâmia, que o artista inaugurou no último dia 4 de maio, na Galeria Arte Plural, no Recife, com a curadoria de Jomard Muniz de Britto, repercute entre seus pares nacionalmente, porque Raul Córdula trabalha em várias frentes no país e, em grande parte das regiões; há marcas de sua presença em seminários, revistas, jornais, salões de arte e debates, promovendo o diálogo permanente na convergência de movimentos e ideias. Isso se tornou tão claro e público que recentemente recebeu, dos seus consociados da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), um dos mais importantes prêmios – com a dimensão e o conteúdo que lhe foi concedido pela atuação no ano de 2009.
As cidades de Campina Grande, João Pessoa, Olinda e Recife receberam a participação do artista diretamente, contribuindo de forma efetiva para instituições e movimentos culturais. Sua morada há anos é em Olinda, e, talvez, por esse fato, se integra com a comunidade dos artistas plásticos numa honesta e sincera semeadura intelectual, na qual muitos lhe tributam reconhecimento como um dos consagrados criadores e críticos agudos. Mas o Recife lhe é extensão como um campo de atuação não menos importante. O seu olhar percorre todos os meandros dessa cidade e nela enxerga a rede que constrói o circuito da cultura nos diversos aspectos. Nada lhe passa despercebido, desde as facetas do suposto mercado de arte local a toda uma gama de artistas que lhe são caros.

Eis, então, a nossa Mesopotâmia tropical interpretada na luz e no mistério, entre águas e símbolos, na dolorosa realidade das gentes, da visão dos mangues, das pontes, da política, da arquitetura, da cultura, dos movimentos revolucionários, numa linguagem refinada e esotérica, enriquecida de metáforas, que foi a mesma da geração do artista. Isto é, a da resistência contra um regime ditatorial que não admitia nem os pensamentos complexos da arte nem a discussão direta dos problemas sociais.

O autor de Mesopotâmia é um alquimista no métier da pintura. Um dos poucos conhecedores dos materiais e das técnicas, porque possui o espírito de pesquisa. Procura, nas condições do suporte, da tinta, dos médiuns, dos vernizes, as indicações químicas dos produtos para comprovar a eficácia daqueles materiais. E prolonga-se na descrição de suas fórmulas, com um prazer em descrevê-las como quem movimenta sonoridades musicais. Um gesto de suas pinceladas é pensado dentro do que ele já constatou nos pincéis e nas pastas das cores, as reações destes na tela ou no papel. Não há tempo a perder quando da confrontação com o espaço dos suportes. Ali estará presente um projeto de ação que envolve tanto os materiais como a concepção da obra e os poucos improvisos da matéria. A sua percepção capta não somente as qualidades da pintura atual dos centros mais destacados do mundo, mas também, a dos grandes mestres dos museus. É capaz de descrever, com maestria, as técnicas tradicionais, livre de qualquer preconceito, afirmando assim, que ser um artista contemporâneo é permitir ao olhar, a maior abrangência possível.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

De volta à Academia

O final do século 19 e o início do século 20 foram importantíssimos para o pensamento atual das artes plásticas no mundo. Foi nesse período que se iniciaram os primeiros abalos em sua estrutura quanto à percepção do olhar: foram os tempos das renovações, das rupturas com o academicismo. Os artistas tinham em mente não permanecer nas Academias, porque consideravam um ambiente a caminho da estagnação, onde o interesse se resumia aos temas históricos ou alegóricos, ao estudo da anatomia humana e animal, à representação dos deuses mitológicos gregos e romanos e às paisagens, longe da luz solar. Também porque os acadêmicos não permitiam nenhum desvio das concepções formais desses estudos; e qualquer movimento que propiciasse uma revolução estética estava fora das influências das Academias. Mas os acadêmicos, na verdade, eram os que detinham o poder; e os revolucionários, os desconhecidos e marginalizados.

O Impressionismo é um exemplo de movimento que revolucionou o século 19, abalando aquele mundo acadêmico. Os artistas impressionistas começaram a perceber que a pintura captada ao natural possibilitava infinita diversificação perceptiva das cores, segundo a intensidade e o movimento da luz, que se coadunava, simultaneamente, com as teorias científicas contemporâneas que tratavam da luz e das suas relações ópticas.
A revolução plástica permaneceu, a partir do Impressionismo, à margem das Academias. Os artistas estavam motivados a olhar o mundo através de outros caminhos. Picasso, que foi uma das genialidades do século 20, saiu da Academia espanhola para enfrentar uma nova realidade em Paris. Foi ali que percebeu, com a sua agudeza, o universo dos pós-impressionistas e, principalmente, a excepcional visão de Cézanne (artista alijado do academicismo), que revolucionou a perspectiva linear do Renascimento como uma aspiração à solidez, possibilitando uma real estrutura das coisas em um rigor geométrico no espaço pictórico. Daí surgiu o Cubismo, que envolveu Braque, Picasso e uma leva de artistas importantes, numa intensa elaboração de obras cubistas que se espalharam sobre o continente europeu.

Também, anteriormente, os artistas Matisse, Derain e Vlaminck, que lideravam um movimento, distantes das Academias e influenciados pelas cores fortes de Van Gogh, Gauguin e ainda Cézanne, elaboraram um novo processo de captação plástica com total liberdade e foram denominados, pejorativamente, de fauves (feras), de onde nasceu o termo Fauvismo, paralelo ao Expressionismo alemão. E todos os outros movimentos do século 20 surgiram por força dessas individualidades geniais que se uniam a outras personalidades para concretizar ideias, mas sem o respaldo do academicismo tradicional.

Mas, no nosso tempo, após um longo período de descrédito, as Academias passam a ter o mesmo papel em relação ao poder e ao dogmatismo das velhas instituições do século 19, com uma diferença: incorporaram, nos seus métodos de ensino, os pensadores do século 20, identificados com as ideias dominantes e oficiais, da arte. Para pensar arte naquele ambiente, antes tem que passar por esses filósofos, e qualquer desvio dessa meta será entendido como uma subversão. Isso é louvável como conhecimento, mas não como afirmação dogmatista do que é ou não arte. Seria possível imaginar, hoje, uma inteligência como a de Picasso ou de outros artistas passando pelos testes de avaliação filosófica dos seus contemporâneos, quando eles próprios diziam o que era arte? Será possível delimitar conceitos em que se nega qualquer outro pensamento que não seja os considerados universais pelas Academias? Estas voltaram ao mesmo rigor petrificado e único para formar domesticados multiplicadores de ideias congeladas que pouco dizem da arte.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Cadê o Museu Guggenheim?

Em 2001, a Fundação Guggenheim promoveu, no Brasil, uma apresentação das suas estratégias para instalar uma das sucursais do Museu Guggenheim no País e, depois, expandir pela América Latina, reunindo, na ocasião, secretários de Cultura. É possível imaginar a parafernália tecnológica para fornecer aos participantes do encontro uma visão da grandiosidade sedutora desses museus no mundo. O País foi tomado por uma febre guggenheimniana, e explodiram notícias nutridas com polêmicas em grande parte nas capitais. No Recife, só se pensava “grande”, quando naturalmente poderia se pensar simplesmente com realidade, porque bastava perceber e procurar resolver primeiro os problemas dos nossos museus.

Fui um dos primeiros a expressar, em artigo, que seria inviável uma sucursal do Museu Guggenheim no Recife, porque não havia condições econômicas e sociais que possibilitassem um museu desse porte, que requer uma estrutura inimaginável para os tantos problemas básicos que já tínhamos (e temos) para resolver. Teria que se destinar toda a verba municipal da cultura e mais outras para instalar e manter o museu; seria como uma obra cultural única, porque, depois de sua construção, não existiria mais nada por fazer a não ser manter o monstro sagrado vivo, sacrificando todas as outras instituições culturais — certamente, estas morreriam de inanição, sem chance para ressuscitar.

Bastaria, no caso, olhar para dentro, isto é, para os museus que temos, e ver as coisas simples que faltam aos seus diretores para atuarem com mais eficiência. É necessário um projeto político-cultural mais amplo, que possa oferecer um aperfeiçoamento nessa estrutura, além de um corpo técnico especializado permanente, e destinar verbas corajosas para a divulgação da cultura plástica local.

A informação que se tem hoje é de que o diretor de estratégia global da Fundação Solomon R. Guggenheim, de Nova York, Juan Ignácio Vidarte, desistiu dos projetos que teriam como finalidade abrir novos museus no Brasil e no México. Segundo ele, “a Fundação está interessada exclusivamente no Museu Guggenheim de Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos”. Isso depois de gerar, no Brasil, imensas polêmicas, principalmente no Rio de Janeiro, quando a comunidade repudiou a forma como a prefeitura estava negociando com a Fundação Guggenheim. E, no México, faltou dinheiro público para embarcar no projeto. Claro, os Emirados Árabes serão um paraíso para um novo Museu Guggenheim.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A árvore revolucionária do Porto



Em 1963, em Portugal, ainda sob o domínio ditatorial de Salazar, no conhecido e tradicional café de nome Magestic, no Porto, frequentado por artistas plásticos, escritores, poetas, arquitetos, jornalistas e profissionais de vários segmentos, foi se concretizando a necessidade de se criar uma associação que congregasse as intenções artístico-culturais, como a grande meta, mas que terminou se refletindo como uma postura política para o fortalecimento de ideias e de obras que pudessem favorecer certa liberdade à sociedade daquela estagnação para uma dinâmica visão da arte e da política. Assim, em abril do mesmo ano, nasceu a Árvore – Cooperativa de Atividades Artísticas, com a realização da escritura de sua constituição. Um sugestivo nome escolhido pelos fundadores e que, com a sua força simbólica e nos 47 anos de plena atividade, definitivamente marcou a história cultural da cidade do Porto e expandiu, para todo o país, a Europa e além-mar, a certeza de que é uma das cooperativas mais importantes do gênero no mundo.
Fomos apresentados à Árvore por um de seus importantes membros, o artista plástico Carlos dos Reis, que, fraternalmente, nos ofereceu um almoço no restaurante da própria Cooperativa e, logo em seguida, ciceroneou, mostrando-nos todas as outras instalações desenvolvidas ao longo dos anos na Instituição e motivando, com suas explanações históricas e técnicas, um natural reconhecimento de nossa parte das lutas enfrentadas pelos artistas e intelectuais portuenses para consolidar, na sociedade e na estrutura política nacional, uma Árvore plena de vigor, com as raízes fincadas na vontade coletiva de uma cidade reconhecida como uma das destacadas na Europa pela sua cultura.

No almoço, estavam presentes os artistas plásticos pernambucanos Sérgio Lemos – que nos proporcionou, com o seu prestígio construído em Portugal, o elo para a realização de uma exposição coletiva (com o título Pernambuco – arte além-mar) de intercâmbio com a cidade do Porto, na Por Amor à Arte Galeria -, Ferreira, José de Moura e este articulista. Roberto Botelho estava representado por suas obras, na exposição, mas não presente à Cooperativa naquele momento. Ficamos surpreendidos com as instalações das várias seções das atividades de cursos e laboratórios. Visitamos as salas da Galeria, de pintura, cerâmica, litografia, gravura em metal, serigrafia, fotografia, escultura, biblioteca: todas com uma qualidade de organização técnica única. Hoje, é uma Cooperativa consolidada, não somente no Porto, mas em todo o país; inclusive com o apoio de colaboradores efetivos, que lhe dá condições administrativas junto à diretoria, formada por artistas.

A Árvore percorreu um longo caminho para alcançar esse nível. No início, todas as dificuldades foram enfrentadas pelos seus fundadores, a começar pela conquista da casa, com suas várias reformas, chamada de Casa das Virtudes: um belo exemplar arquitetônico (do século 18) da aristocracia do Porto, que abriga, até hoje, a sua sede e oferece espaços suficientes para as imensas atividades. Mas essa casa foi também vítima de atentado à bomba, em 7 de janeiro de 1976, que destruiu a Galeria e a fachada principal; e a consequência desse fato foi a divulgação, com maior força, da Árvore, nos âmbitos nacional e internacional.
No 38º ano da existência da Cooperativa, em 2001, coincidindo com o título do Porto como Capital Europeia da Cultura, a Árvore se destacou como uma das notáveis obras coletivas contemporâneas, e, na ocasião, foi lançado um belo livro com o título Árvore das Virtudes, que contém pesquisas históricas, as editorações gráficas de catálogos, livros, cartazes etc., além de depoimentos que dão o testemunho sobre o trabalho da Cooperativa e reproduções de obras dos artistas plásticos fundadores e participantes históricos. Por essa publicação, nós vemos a seriedade do envolvimento dos artistas para que a Árvore se mantenha como uma das naus mais importantes da divulgação da cultura portuguesa. É essencial salientar que, para a própria fundação, a população do Porto contribuiu financeiramente, principalmente porque sabia da importância da Cooperativa na formação também das gerações futuras. Muitos artistas e docentes em destaque, hoje, passaram pela Árvore e sentem-se gratificados pela experiência sob sua copa frondosa.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O múltiplo artista Raul Córdula

Raul Córdula é um dos extraordinários artistas brasileiros que, por mera coincidência ou acaso do destino e sorte nossa, nasceu no Nordeste do País — para ser mais preciso, na cidade guerreira de Campina Grande, Paraíba. Em toda a sua vida e obra, deu uma contribuição notável para a cultura da região, com o seu olhar de profundo pesquisador que utiliza o método quase científico ou com o rigor próprio do seu olhar, não somente no âmbito da cultura plástica e visual, como nas linguagens múltiplas da arte.

Com essa verve, registrou as manifestações históricas da arte, da qual é um dos mais importantes atores. Com naturalidade, elegante estilo e veracidade dos fatos, consigna o nome de inúmeros companheiros que dividiram espaços e conquistas para tentar fazer brotar, primeiro, intensamente, na própria terra paraibana e, num segundo tempo, na pernambucana, as melhores fontes e realizações da cultura, nas décadas de 1950 e 1960, como se percebe nos relatos apresentados no livro de sua autoria Memórias do Olhar, editora Linha D’água, lançado no dia 19 de dezembro, na Galeria Arte Plural.

A sua linha de luta sempre foi ligada à região e ao País, mesmo porque foi no Nordeste onde recebeu os primeiros conhecimentos culturais e plásticos, e, por isso, quis dar a sua contribuição à sociedade. Mas o seu olhar é plenamente universal, conectado com as vertentes contemporâneas pontas-de-lança do planeta, fato que o faz compreender o mundo e as pessoas com peculiar fraternidade. Assim, o artista congregou (e congrega) as maiores forças da arte — como um Gauguin dos trópicos — em torno de suas ideias, que oxigenaram de forma magistral as dos companheiros, exercendo uma liderança espontânea e, por opção, refinadamente discreta, desde o início da sua carreira, quando formou gerações de artistas plásticos que foram temporariamente seus alunos e que hoje estão circulando na arte brasileira com dignidade e destaque.

Nessa sua visão histórica, o autor das Memórias procura não esquecer nenhum detalhe, movimento ou nome, principalmente dos que contribuíram com destaque para a cultura na Paraíba, citando, de início, no capítulo As heranças, como de maior importância na gênese da arte local, o Centro de Artes Plásticas, fundado em 1948, “que era uma instituição dos pintores, independentes do governo”, onde se concentrava a nata dos artistas e intelectuais, que proporcionou um dinamismo de caráter pré-moderno, ainda não experimentado nas décadas anteriores, que viveram sob forte influência do academicismo. Nesse mesmo capítulo, o texto Leon Clerot, o meu amigo elefante já em seu título apresenta uma poética claramente endossada na narrativa, aliás uma das mais atraentes numa obra que tem muitos pontos fundamentais para a História da Arte.

Mas a grande obra de Raul Córdula se mescla às preocupações culturais e sociais, porque os seus passos geraram frutos ao longo desse percurso. Para ele, praticar a pintura, a gravura, a fotografia, o design, a cenografia, as artes gráficas, a ilustração, a agitação cultural, a curadoria e a crítica de arte deve deixar marcas que beneficiem culturalmente a sociedade, além de atentar para a estética e o conhecimento.

Nesse sentido, sua participação na Geração 59, “a geração que mobilizou a vanguarda da época”, foi imensamente produtiva, por ter sido um dos ilustradores do movimento poético. Posteriormente, realizou ações como as intervenções no Departamento Cultural da UFPB, junto a outros nomes citados por ele, nos trabalhos de formação dos estudantes. Devendo-se citar ainda o Movimento da Ribeira, em Olinda, em que participou com uma coletiva, sob sua liderança, de artistas paraibanos e construiu contatos que foram duradouros com os artistas de Olinda; a fundação do Museu de Arte Assis Chateaubriand de Campina Grande (MAAC); a sua própria obra plástica, então de cunho extremamente político, contestatória ao regime militar; a participação no movimento tropicalista, que marcou os anais da História da Arte.

No mais, extrapolando as décadas de 1950 e 1960, suas atuações sempre foram tão intensas e concretas — em Olinda, no Recife, em Salvador, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Curitiba..., enfim, em quase todo o País — que não caberiam todas neste breve artigo. Ao leitor, o livro Memórias do Olhar fornece uma excelente visão da dimensão do trabalho seminal desse grande artista.