"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 25 de janeiro de 2014

Sou Michelangelo Buonarroti

                                                                Michelangelo


Um dos escultores representativos do Renascimento não gostava de ser apresentado apenas como um artífice. Corrigia o interlocutor e dizia: “Não sou o escultor Michelangelo. Sou Michelangelo Buonarroti” (1475-1564), isto é, sou um gênio. E até hoje não há quem discorde disso. Talvez reagisse assim por ter sido reprimido pelo pai ao encontrar a sua vocação tão cedo — considerada, à época, uma atividade menor. Desprezava o latim e a geometria escolares, pretendendo ser um artista. E o pai, mesmo irado por essa escolha, com ralhos e gritos, encaminha seu filho à oficina do pintor Ghirlandaio. Lá, por pouco tempo, aprende a arte da pintura e a magia do afresco, que lhe serão úteis no futuro. A paixão maior era a escultura. Logo aos 6 anos, num canteiro de obras no jardim da casa dos pais, onde brincava manejando o escopo e o martelo junto aos artesãos, desenvolveu o tato próprio dos escultores, sentindo a rugosidade das pedras e tentando entender como retirar delas imagens.
 
Foi na oficina do escultor Bertoldo que mergulhou na matéria mais apreciada para se expressar. Tornou-se um operário da pedra a partir daí. A oficina do mestre escultor era uma das iniciativas do mecenas Lourenço de Médici, o Magnífico (1449-1492), que forneceu obras antigas de suas coleções para a formação nas artes plásticas e não fazia distinção, na educação, das artes literárias. Um príncipe sem coroa de Florença. Reunia todos os sábios em seu palácio e entendeu de imediato o gênio Michelangelo, abrindo as portas, para o jovem artista, daquele mundo do mecenato, onde se respirava a beleza, a cultura e a tradição. O artista recebeu o impulso inicial e realizou obras-primas renascentistas. Um dos filhos de Lourenço, Giovanni de Médici, tornou-se o Papa Leão X, em 1513, e também foi um aficionado da arte e da cultura.
 
 O encontro fundamental na arte de Michelangelo foi com o Papa Júlio II. O papa encomenda-lhe um afresco no teto da Capela Sistina. Michelangelo resiste. Diz-lhe que não era pintor, mas fundamentalmente escultor. Júlio II revida dizendo-lhe que ele aprendeu, sim, na oficina de Ghirlandaio, a arte do afresco; portanto, ele iria realizar o trabalho. O artista revolta-se ao ponto de tentar deixar Roma. Mas cede ao rigoroso cetro papal e concorda realizar a imensa obra com a composição de 520 m2, em 4 anos de trabalhos ininterruptos, entre crises e lutas. Inicia com alguns auxiliares, mas dispensa-os e realiza na solidão da Capela o grande universo! Outros papas lhe proporcionaram realizar mais obras-primas. Clemente VII,  a Capela dos Medici e o grande sonho do artista: a tumba de Júlio II. E Paulo III o afresco do Juízo Final, na parede do altar da Capela Sistina...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Crime desmaterializado

                                                                       Caravaggio


Costumo sempre viajar ao interior do Estado, mais pela gentileza das pessoas e por causa das belas paisagens. Em uma oportunidade encontrei um amigo. Desabafou-me que sofreu um atentado há algum tempo. Portando uma arma branca, o algoz, seu próprio irmão, avançou sobre ele com a intenção de matá-lo, não consolidando o intento delituoso por circunstâncias alheias à sua vontade, inclusive, com os gritos de sua mãe, idosa, segurando-lhe a mão, suplicando-lhe que não praticasse o crime.  

Para preservar a vida, deu parte na delegacia local. O inquérito se estabelece. O delegado viu indícios como crime de tentativa de homicídio, proporcionando os primeiros passos à história processual da vítima. O algoz apresentou-se. Negou o crime, como quase todo réu. Inventou uma narrativa totalmente diferente. O delegado, experiente, convocou a polícia científica e rastreou o fato, contraditório à historieta do acusado. Concluídos os trabalhos do inquérito, encaminhou ao Ministério Público como tentativa de homicídio por motivos fúteis. 

O promotor de plantão pediu a prisão preventiva do réu, mas o magistrado negou. Ainda era cedo. Nas audiências, um promotor diferente em cada uma delas. Um disse à vítima, quando esta foi lhe pedir orientação, que contratasse um advogado. Outro afirmou que preferia trabalhar sem advogado. E o juiz, com boas intenções, disse-lhe que ele não precisava de advogado, porque existiam excelentes promotores. Apesar da verdade dos fatos, as testemunhas, dois irmãos de ambos — vítima e réu —, simularam, em conluio sórdido com outras, dizendo que não viram a arma do crime, desmaterializando-a do processo – caracterizando-se, assim, um caso raro do fenômeno “paranormal” de desmaterialização – por interesses próprios principalmente, entre outros, para se vingar da vítima, pelo fato da denúncia da real tentativa de homicídio; e afirmaram que a vítima quis prejudicar o réu, por denunciá-lo, defendendo o seu próprio direito à vida. Na prática, constatou-se a intenção de anular o crime e culpar a vítima, que muitas vezes, morta ou viva, é a culpada nos processos penais no Brasil.

Eis a parte das alegações finais técnicas aceleradas de mais um dos promotores atuantes no processo, que, em um momento do texto, confunde o réu com a vítima: a arma do crime não existiu, porque as testemunhas e o réu confirmaram. Portanto, o código penal não o atinge, acreditando que a justiça será plena. Então, o amigo expressou: “Fui vítima três vezes: no atentado, nos falsos testemunhos e nas ações tramadas na clandestinidade. Isto incentivará o algoz a repetir o crime?”