"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O artista absoluto em sua obra



No alicerce da obra de Renato Valle, está o desenho rigoroso que penetra em todas as formas que o artista propõe representar na pintura e em vários veículos das expressões plásticas, com uma visão múltipla e mente concentrada no universo interiorizado e numa linguagem própria. Seu trabalho e sua concepção são a assinatura. Influências naturais existem, mas de maneira longínqua, sem afetar a essência da ideia nascente. Demonstra um trabalhador incansável para concretizar o pensamento. Como um monge que estivesse dedicado a construir iluminuras que falassem de uma história, talvez inconsciente, na qual estão a matéria e o sagrado. Cada elemento das construções dessas pinturas individuais se destaca do restante que as compõe, de maneira harmoniosa, na recente mostra na Galeria Arte Plural.

São imagens concebidas em volumes, como ondas monocromáticas estabilizadas em planos que as relevam num contraste de cor suave e intencional. É a pintura pura sem mais nem menos e, por ser sólida, atemporal. O discurso em palavras não predomina, este está mais em cada centímetro do fragmento pictórico que diz do modo de o artista ver o mundo, como se estivessem ali suas digitais, ou autorretratos, nas camadas sobre camadas, em veladuras prazerosas. Estas impõem ao espectador uma atenção demorada, é impossível não se prender a revelação da cor. Como uma partitura musical em que é preciso silêncio no espírito para perceber as entonações e consonâncias. Somente um olhar meditativo é capaz de perceber esses movimentos. O artista está absoluto em sua obra. Penetramos nessa leitura interminável sobre os variantes caminhos da pintura que só são permitidos aos iniciados. Sim, porque a pintura, hoje, nem todos a compreendem, está como se fosse uma linguagem secreta, como as das cavernas dos nossos ancestrais — como alertou para mim, sobre isso, numa oportunidade, o admirável Francisco Brennand. Talvez voltemos com mais precisão aos estudos e à compreensão dos grandes artistas, a esse patrimônio pictórico e espiritual que nos legaram em todas as épocas... 

Foi assim, com essa concepção, que Renato reuniu, na recente mostra individual, parte de sua própria “cadeia genética” criadora, obras que fizessem referências ao seu percurso de inventor de outras obras paralelas de sua autoria, durante os últimos quarenta anos de trabalho. Cada uma delas faz a ponte com séries ou outras exposições suas, algumas delas monumentais, como a que aconteceu no Museu do Estado, em 2009, com o sugestivo título “Diálogos pelo desenho”, montada com obras de grandes proporções, em que ele dialoga com artistas seus contemporâneos e outros de formação acadêmica, importantes, que fazem parte da história da arte que se fez em Pernambuco, ou pessoas eletivas de sua relação.

Nas grandes salas do museu, o desenho do artista demonstrou um dinamismo gráfico incomparável nas enormes lonas cruas nas quais deu vazão ao seu poder constatado de expressão e síntese, onde os pontos das tramas daquelas lonas serviram de enriquecimentos aos riscos dos grafites. O mesmo nas pequenas proporções como no conjunto de 5.000 desenhos sobre papéis reunidos em um só corpo, mas indicando anotações separadas que o artista chamou de “Diários de votos e ex-votos”. Pois bem, dessa vez, na presente mostra, ele cria diálogos consigo mesmo e, em algumas obras, relembra os aspectos “genéticos” das do museu, como os trabalhos “Solaris”, “O que não se vê”, “Bebê ex-voto” e “Bebê Pitú”. As naturezas-mortas, que são uma constante em sua trajetória, estão na mostra com 4 telas de 30 x 30 cm, quando ele aproxima, em algumas abordagens, um laivo de hiper-realismo de suas percepções. Os corpos representados em volumes em “Retratos do que ele é”, do número 1 ao 4, são formas que vemos na obra do artista que deixam a sua marca, a sua digital, corpos em volumes que se desdobram por todos os lados. Nessa mostra atual, a concepção está no centro como no cosmos, e é ele próprio, Renato Valle, a expandir o seu pensamento materializado.