Bete Gouveia elabora com grande sensibilidade a sua obra, onde a luz, a sombra e as coisas banhadas por esses contrastes da vida estão em movimento permanente. Vive esse veio à medida que enriquece as percepções dos sentidos para trabalhar a matéria da arte. É a sua luta tornar a pintura algo tão consistente que transpareça tal qual a delicadeza de uma pele, viva, luminosa, ao lado de uma sombria força latente que dá o sentido da existência de todas as coisas. Quer reviver, no espírito, o que Da Vinci, em defesa de sua arte, no Renascimento, conseguiu pensar: que a pintura “é coisa mental”. Porque a imaginação aliada à inteligência oferece a alavanca de possibilidades para concretizar a concepção do artista sobre o mundo, do pintor sobre a matéria. E Bete reafirma, na pintura, a linguagem absoluta e silenciosa da mais pura transfiguração da realidade.
Desde os primeiros trabalhos da sua história, há uma coerência no processo da aproximação do olhar sobre o objeto da criação, particularizando-o, tornando-o abstratizante, com a verve que lhe é própria. Na primeira série de pinturas — Bananeiras (1983) —, pode-se dizer que estavam, em seu conteúdo, todos os trabalhos posteriores. A cor, a luz, a sombra, as formas, os espaços são percebidos, inicialmente, como uma captação da natureza que se desenvolve nos trabalhos da série, permitindo outras invenções na aparente imprevisibilidade, e, aos poucos, concretiza a concepção plástica plena, consolidada no encontro do caminho que lhe dará a confiança necessária para prosseguir.
Uma das marcas de Bete Gouveia é a minúcia com que trata a superfície da pintura em preciosos pontos que demonstram um exercício meditativo nas pinceladas sofisticadas, numa espiral interminável e ascendente, chegando mesmo a repintar uma obra até quase cem vezes para conseguir resultados ante os problemas pictóricos. É o silêncio que tanto cultiva no ateliê que lhe proporciona o diálogo com essa complexidade da matéria. Talvez por isso a sua tendência notívaga, porque é sob essa luz lunar que desenvolve os pensamentos plásticos. É uma artista de movimentos meticulosos e sólidos e sabe o que está realizando para o seu tempo, junto às atividades, como docente, na UFPE, comunicando os conhecimentos do patrimônio cultural de todas as épocas, sendo esta também uma das artes que domina. Acima de tudo, sua obra se constrói com uma vontade à maneira de Cézanne, na lembrança do artista em retornar à montanha de Sainte Victoire para repintá-la à exaustão.
As séries que se sucederam demonstram uma maturidade notável em todos os níveis no corpus do seu pensamento criador, quando o refinamento aflora naturalmente e a artista está tão consciente do processo do trabalho que a impulsiona a dizer mais e a não se contentar com as facilidades da publicidade. Caminha sempre para o olhar interno, com profundidade, à medida que inventa, encontrando no exercício diário da pintura a espontânea garimpagem. Há uma linha condutora em todas as séries: Varais (1985), Geometria do não (1991), Palimpsestos (1993), Nichos (1998), Oceanos portáteis (1999), Paisagens (2003), Ausências substantivas (2006) e, a mais recente, Clarescuro, com outros trabalhos avulsos, em guache. É perceptível o tratamento, em todas elas, que dá na fatura, nas delicadas nuances das cores, na composição e na matéria, onde há apenas algumas variações no emprego de colagens em madeira, metais, tecidos e pastas que intensificam a superfície do suporte.
É nas diferenciadas paisagens marinhas (nas séries Paisagens e Ausências substantivas), envolvidas em uma luminosidade amena, monocromática, mas com potência latente, que dá o tom orquestral da sua maneira de representar o oceano interno. Como se falasse das moradas da alma da artista: as ondas que a envolvem, a luz de um sol imaginário e de uma solidão profunda do olhar para dentro. Assim, transporta essa visão do oceano para as coisas ao redor (na série Clarescuro), os ambientes, a luz fechada e particularizada em uma sala que ilumina os objetos. A mesma concepção em que não há presença direta humana, mas se imagina, na cena, o olhar de um espectador observando do interior do quadro, o mesmo que contempla o oceano mental.
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