"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 3 de agosto de 2002

Mercado de Arte se Conquista

Plínio Palhano

Até a década de 50 do século passado, quem liderava o mercado de arte internacional era Paris, porque, entre outros motivos, na sua tradição cultural, foi palco revolucionário no mundo da estética e base para os movimentos e artistas mais importantes que consolidaram a arte moderna. Após esse período do brilho francês, a supremacia ficou nas mãos de Nova York e Londres. Hoje, os Estados Unidos detêm 49% desse mercado; a Grã-Bretanha, 28,75%; e a França 5,6%.
Segundo os especialistas, a ascendência anglo-saxã deve-se ao comércio ou às atividades de serviços de alto nível, a exemplo do que fazem empresas como a Sotheby’s, a Christie’s e a Phillips, que dominam, principalmente, as vendas nos leilões, conquistando a confiança dos investidores internacionais, com seus padrões na garantia de preços e na negociação de suas comissões. Na França, agentes e avaliadores oficiais ainda mantêm-se presos a um estatuto rígido (e antigo), que os proíbe desse gênero de prática. Isso limitou a ampliação do seu mercado com vistas a uma internacionalização mais agressiva. Os franceses tentam reverter esse quadro a partir de uma reestruturação das normas, atualmente em trâmite no parlamento.
Mas é justamente na França que encontramos, nos séculos XIX e XX, marchands como Paul Durand-Ruel, Ambroise Vollard e Daniel-Henry Kahnweiler, verdadeiros precursores do mercado atual. Assim como os artistas, seus contemporâneos, abriram caminhos para uma concepção moderna de arte. Nos primeiros vinte anos do movimento impressionista, por exemplo, àquela altura negado pelo público e pela crítica oficial, havia uma verdadeira escassez de vendas das obras de seus seguidores; com interesse e olhar profético, Durand-Ruel e Ambroise Vollard investiram naquelas obras, hoje consideradas alicerce para a formação de vários movimentos que enriqueceram o século XX e supervalorizadas nos leilões internacionais, alcançando cifras de mais 80 milhões de dólares, a exemplo do Retrato do Doutor Gachet, de Van Gogh, arrematada  em 1990.
No auge dos grandes movimentos do início do século XX, surge, no mercado de arte europeu, o marchand judeu alemão D.H. Kahnweiler, acompanhando os primeiros passos do expressionismo, do fauvismo e, principalmente, do cubismo, movimentos esses que mais o interessavam para o comércio de sua galeria, criada no mesmo período. Como acreditava que “os grandes pintores fazem os grandes marchands”, aliou-se a Vlaminck, Juan Gris – que tinha por ele amizade e admiração -, Léger, Derain, Picasso e muitos outros. Segundo seu próprio depoimento a Francis Crémieux, no livro Minhas galerias e meus pintores, havia uma fraternidade entre ele e os artistas: sempre chegavam a bons contratos que interessavam ambas as partes.
Aos poucos, com a participação desses marchands, que instalaram suas filais em Nova York, e dos próprios colecionadores americanos, os Estados Unidos, além de dignificarem o seu patrimônio artístico e colocá-lo no topo do mundo, passaram a possuir obras européias com valores monumentais. Solomon R. Guggenheim, o fundador do Museu Guggenheim, iniciou a própria estrutura do museu com a sua importante coleção, à qual, posteriormente,  foi agregada a da sua sobrinha Peggy Guggenheim – personagem que teve marcante influência entre os artistas americanos, ajudando-os com dinheiro e prestígio. Também Leo Castelli, o notável marchand americano que defendia seus artistas pop, nos anos 60, com uma paixão dolarizada, colocou-os no circuito internacional, com poder incomparável.
Londres, por sua vez, movimenta leilões com repercussão mundial e é considerada como um dos maiores pólos de produção e difusão da arte contemporânea, sobretudo por conta da geração dos Jovens Artistas Britânicos, que espalha pelo planeta inúmeras novidades nas experimentações plásticas. O milionário Charles Saatchi é um dos responsáveis por essa posição privilegiada. O magnata não só possui uma vasta coleção dessa geração como a expôs, com estrondoso sucesso, em 1997, na tradicional Royal Academy of Arts, sob o título de Sensation, fazendo, segundo vários críticos (dentre os quais, Waldemar Januszczack, do Sunday Times), com que aquela instituição saísse de uma certa “letargia”…
Já no Brasil, apesar da competição gerada em muitos setores por uma economia globalizada, o mercado de arte caminha a passos lentos no sentido de internacionalizar seus produtos. Mesmo com os esforços louváveis dos marchands, galeristas e agentes, sobretudo do Sudeste, e grandes acontecimentos como a Mostra do Redescobrimento – Brasil + 500 (iniciada no ano 2000, que se encerrará em dezembro de 2002, com a meta de percorrer dezessete museus internacionais) e as Bienais de São Paulo, que esquentam as turbinas do mercado de arte, ainda estamos longe de uma participação mais efetiva no plano internacional. Mas podemos ressaltar o pernambucano Marcantônio Vilaça como um dos que mais se destacaram, com sensibilidade, agudeza e vontade, em defesa da arte contemporânea brasileira. Pertenceu a essa linhagem de colecionadores, marchands e galeristas que sabiam exercer o seu ofício e o dignificaram. Iniciou, ainda adolescente, a sua coleção, solidificando-a como uma das mais importantes do Brasil.
A paixão pela arte era o modo de viver de Marcantônio Vilaça, entendendo-a como conhecimento e força transformadora do pensamento humano. Como diria o historiador Paulo Herkenhoff, “para Marcantônio a arte era a coisa mais importante da vida – exceto a vida como tecido afetivo”. Escolheu os artistas para participar da sua galeria Camargo Vilaça, adquirindo as suas obras para defendê-las nos grandes centros. As pontes que construiu para a internacionalização da arte brasileira foram testemunho do trabalho de quem assume a sua missão. Participou de eventos mundialmente importantes, inclusive fazendo parte do conselho da Arco (Madri), uma das mais importantes feiras de arte da Europa. E sinalizou, com sua atitude profissional, que o mercado de arte se conquista de forma agressiva e empreendedora. Onde quer que se esteja.

sábado, 13 de abril de 2002

Pernambuco sem Memória

Plínio Palhano


O impulso inicial do
movimento modernista
veio das artes plásticas.
Manuel Bandeira



Abaporu foi o título que Tarsila do Amaral deu a sua obra, realizada em 1928, e que entusiasmou o então seu marido Oswald de Andrade. É uma pintura que, segundo a própria artista, surgiu representando uma figura estranha de aspecto selvagem. Daí Tarsila procurou pesquisar um nome que identificasse aquela criação. Abriu um dicionário tupy e encontrou – Abaporu. Que significa antropófago. Eis o início da fase antropofágica de Tarsila do Amaral… Oswald de Andrade desenvolve a partir dessa obra toda uma teoria. A antropofagia natural nossa, brasileira, de comermos tudo o que é estrangeiro e definir uma personalidade nacional.
A propósito das comemorações dos 80 anos da Semana de Arte Moderna (1922), evento que se refletiu no Recife e contou com a participação de artistas pernambucanos, os órgãos públicos locais fazem ainda “tímidas” referências a esse marco histórico representativo para a arte atual, perdendo assim a oportunidade de aprofundamento da discussão para o entendimento desse quase secular movimento na arte brasileira.
Os principais espaços públicos (museus e galerias) mantiveram em suas pautas para 2002, divulgadas pela imprensa, um programa, até certo ponto, descompromissado com a atenção dada, neste ano, às questões que envolvem o movimento modernista. À Fundação Joaquim Nabuco, que tem o nome Vicente do Rego Monteiro em uma de suas galerias, caberia a tão reivindicada retrospectiva desse artista, um dos mais importantes representantes do Estado na semana paulistana e que já apresentava na época obras com temáticas nacionais mais avançadas que as de muitos dos seus pares naquela exposição de artes plásticas, em 1922.
A UFPE, que detém em seu Departamento de Cultura, na Rua Benfica, obras de Vicente do Rego Monteiro, não as exibe para o conhecimento público e tampouco o Curso de Artes Plásticas, por sua vez, busca nessa representação a pesquisa histórica ou estética. Já ao Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, criado, como indica seu próprio nome, para tratar de assuntos assim, caberia outra retrospectiva não menos didática e importante – a de Cícero Dias, considerado hoje, a glória da arte pernambucana, o modernismo vivo, ainda não devidamente pesquisado aqui em Pernambuco. Seria essa a oportunidade para um entendimento maior de sua dimensão histórica. Apesar do lançamento, recente, do livro Cícero Dias, Uma Vida pela Pintura – bancado pela iniciativa privada -, nos jardins do Palácio do Campo das Princesas, não foi suficiente para Pernambuco se sentir quitado com essa dívida à ilustre presença artística.
Com duas grandes retrospectivas – Vicente e Cícero – estariam aqui presentes artistas, críticos, museólogos e curadores, discutindo a participação do Estado no Modernismo brasileiro, e certamente isso daria, além da visibilidade histórica, um conhecimento atualizado sobre a contribuição estética desses artistas pernambucanos.
Claro que os gestores públicos tiveram tempo para marcar, de forma significativa, a presença pernambucana nas comemorações do Modernismo brasileiro, desde as administrações anteriores. Mas, em vez disso, estavam navegando nas águas ilusórias do Guggenheim, que ficou com os mais de 8 milhões de dólares pagos por nós, para realizar a exposição Corpo e Alma em Nova York, e de Pernambuco levou o altar do mosteiro de S. Bento de Olinda, talvez a única representação artística que eles acharam digna para nos representar. Vale ressaltar, aqui, a iniciativa do artista plástico Paulo Bruscky, que desenvolve importante pesquisa sobre Vicente do Rego Monteiro, e sua intenção de futuramente disponibilizar o acervo pesquisado para consulta do público. Iniciativas como essas podem apontar para a criação de um banco de dados, de forma ampla e de caráter permanente, que pudesse localizar, para o pesquisador, o estudante ou o cidadão comum, movimentos artísticos que fizeram e fazem a história das artes em Pernambuco. Por que não concretizar esse acesso à pesquisa em convênio com as universidades e começar a formar uma base de dados em artes plásticas? Seria plenamente positivo, além de democratizar a informação para a população.
É possível tratar a memória num diálogo com a arte atual, e isso nos é demonstrado em outros centros de produção artística no Brasil, a exemplo da cidade de São Paulo, onde a história da arte é preservada e compartilhada com as universidades, que dão o apoio técnico e científico. Agora mesmo, além de lançar a 25ª Edição de sua Bienal, a terceira mais importante do mundo, com a temática Iconografias Metropolitanas, concomitantemente, está realizando, com igual importância, mostras de coleções privadas com obras de artistas do século 20 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com títulos – Espelho Selvagem: Arte Moderna no Brasil da Primeira Metade do Século 20 (Coleção Nemirovsky) e Paralelos: Arte Brasileira da Segunda Metade de Século 20 em Contexto (Coleção Cisneros) – que, certamente, remetem a uma reflexão e reavaliação do Modernismo brasileiro.

quinta-feira, 14 de março de 2002

Picasso e os Curadores

Plínio Palhano


Por ocasião da Mostra do Redescobrimento, Brasil + 500, no ano 2000, em São Paulo, surgiram, como sempre acontece, polêmicas saudáveis, entre elas a questão do verdadeiro papel do curador. Isso porque alguns artistas se sentiram injustiçados ou, de alguma forma, não dignamente representados naquela grande exposição.
Alguns críticos, historiadores e museólogos se interessaram em participar da discussão. A revista Arte & Informação pôs em circuito essas importantes vozes de profissionais envolvidos com as artes plásticas. Paulo Sérgio Duarte, um deles, que prefere ser identificado como um coordenador de projetos, renegando o título de curador, disse com fundamento que “O bom curador é aquele que não aparece  – deixa aparecer só a obra de arte que ele está mostrando. Quando a curadoria tem visibilidade, ela já está estragando tudo.” Para se entender com a curadoria, o artista plástico Cildo Meireles, um dos escolhidos na Mostra, foi obrigado a se utilizar de um intermediário no diálogo, com o objetivo de colocar o seu ponto de vista  em relação às obras que participariam, embora tenha predominado a versão da curadoria do evento, sobre a qual, naquela oportunidade, Meireles expressou publicamente sua contrariedade.
Outro artista que se sentiu pobremente representado foi Henrique do Amaral. Dos seus trabalhos, foram selecionados apenas dois, não considerados por ele importantes para aquele momento, por não favorecer uma visão real da sua obra, realizada em 45 anos de arte. Amaral chegou a afirmar: “Não sou o darling da moçada”. Por sua vez, a crítica de arte, historiadora e museóloga Aracy Amaral foi contundente e irônica: “Os curadores usam roupas de grife, como treinadores da Seleção Brasileira – sapatos, relógios – e há um dandismo no ar que  combina com a banalização de sexo, afetos, moral, uso de drogas, como se nada mais importasse, só isso: a avassaladora importância do dinheiro e das grifes”.
Em seu Dicionário Crítico de Política Cultural, Teixeira Coelho aproxima o sentido atual do curador com a definição jurídica tradicional: “aquele que, por incumbência legal ou jurídica (no caso, cultural) tem a função de zelar pelos bens e interesses dos que por si não o possam fazer, como os órfãos, loucos, tóxico-dependentes, estróinas, etc. Os artistas surgem, assim, como aqueles que não sabem ou não explicitam as tendências em que se encaixam, suas hipóteses de trabalho, suas propostas: não têm controle sobre sua obra, são relativamente incapazes de geri-la”. Ou seja: em tese, o artista deixou de pensar o seu mundo, sua cultura, para ser simples instrumento de reflexões teóricas desse novo agente da arte – o curador.
Mas os artistas deram as suas definições e criaram a história da arte de que  temos notícia. Não coube a nenhuma outra figura, a não ser a eles, os artistas, a construção desse pensamento. Claro que sempre estiveram associados, de forma instintiva e inteligente, ao poder. Poder do qual hoje esse personagem, o curador, é o mais próximo.
Difícil é imaginar um artista como Picasso, com aquele olhar penetrante e agudo que tinha, ouvindo docilmente a opinião de um curador sobre como deveria ser sua próxima retrospectiva. Ele, de braços cruzados, com ar de quem está se protegendo das possíveis interferências estabelecidas dentro dos “critérios” internacionais vigentes… Brassaï, o fotógrafo predileto do artista, no seu livro Conversas com Picasso, narra um fato por ele presenciado que pode ilustrar muito bem o que queremos dizer.
Um importante editor alemão estava interessadíssimo em lançar uma espécie de álbum só sobre as esculturas do mestre. E como Brassaï era o fotógrafo oficial, acompanhava o editor na revisão das esculturas, que deveriam ser fotografadas no ateliê do artista. De repente, o alemão pára ante uma escultura (A Ave) e murmura no ouvido do fotógrafo: “Não vale a pena fotografá-la. É mais um objeto que uma escultura…” Picasso conseguiu ouvir a frase do editor e com energia, apontando para a escultura, disse: “Faço questão absoluta de que essa escultura figure em meu álbum!”. E, horas mais tarde, sem a presença do editor no ateliê, Brassaï ouve o desabafo do artista: “Um objeto! Minha Ave então não passa de um objeto! Quem ele pensa que é, esse homem? Ensinar a mim, Picasso, o que é ou não uma escultura! É muito atrevimento! Disso eu entendo provavelmente mais que ele… O que é escultura? O que é pintura? As pessoas se apegam às idéias  velhas, a definições caducas, como se o papel do artista não fosse precisamente propor novas definições…”.