"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O corpo na arte



A arte rupestre tinha o aspecto mágico: o artista acreditava que, representando o lançamento do dardo sobre o animal, este seria morto e a caça se consolidaria. O espírito prático predominava porque era a conquista do alimento. Quando digo o corpo na arte, entendo que a arte do artista acompanha a sua constituição física e espiritual. Quando ele cria o fetiche da morte do animal, ele está utilizando o instinto, seus músculos, membros superiores e inferiores para realizar a obra. Todo o seu cérebro e sua emoção estão voltados para o lado da sobrevivência imediata. O artista utilizava-se da força física principalmente para reunir os materiais de sua arte encontrados na natureza e colocá-los em formas no suporte, em pedras, nos lugares mais inusitados, o que exigia um sacrifício físico de dimensão extraordinária. As questões complexas e espirituais ainda não predominavam. Apesar de serem obras de uma estonteante beleza instintiva que fizeram artistas contemporâneos se voltarem para essa arte primitiva como algo de mais puro e verdadeiro.

Com o tempo, o artista procurou a imitação da natureza, as medidas, as expressões do mundo exterior como a forma mais perfeita para a representação. Foi quando ele começou a unir o cérebro e o coração. A razão e a emoção. Os aspectos apolíneos e dionisíacos. Que fazem a parte superior do corpo na concepção da obra de arte. O artista começa a pensar a arte como veículo do espírito.  Movimenta-se nas formas, fala uma linguagem com os signos próprios. Mas, até muito tempo, a atividade nas artes plásticas era considerada inferior; o artista, então, não estava no mesmo patamar dos poetas, filósofos, cientistas... Após o mergulho na Idade Média, surge, no Renascimento, como um ser múltiplo e pensador. A sua assinatura nas obras começou daí. Antes, não as assinava ou não se preocupava com isso, talvez por ser visto como simples artesão, embora realizasse trabalhos de arquitetura, pintura, escultura, e todos os tipos de obra de forma genial, que se integravam à vida.  

Após as revoluções a partir do Impressionismo — no início do século XX e alcançando os nossos dias —, que mudaram totalmente o olhar do artista sobre a natureza e sobre ele mesmo, com que parte do corpo nós estamos lidando quando se trata de arte?
 

domingo, 8 de dezembro de 2013

Camarada Bruscki



Falo de autenticidade. De originalidade perene. De raiz fincada. Bruscky foi sempre a sua própria invenção. Não poderia ser outro. Se Marcel Duchamp aparecesse, ele iria chamá-lo para um bar e conversar, simplesmente. E aí diria: “Meu camarada...”, como faz na introdução dos longos bate-papos. Não iria mudar nada em sua trajetória. As atuações de ontem permanecem renovadas, e assim segue o caminho que encontrou. Lembrando Picasso, que disse que não buscava, só encontrava. É o caso de Paulo Bruscky. É ele mesmo construindo um mundo, inventando ideias, em concepções múltiplas, desde os anos 60.

Quando, na década de 1970, o artista fazia as intervenções na cidade do Recife — o termo intervenção quase não se usava, hoje ele é bastante utilizado para designar uma das formas de arte urbana —, causava uma movimentação no centro da capital, despertando curiosidade nos populares. Os homens da ditadura militar interpretavam-nas como uma ação comunista, talvez de guerrilha urbana, por isso Bruscky algumas vezes foi preso. Tempo de coragem e de arte. Fez uma exposição coletiva na zona — termo que usávamos para identificar o belo bairro do Recife Antigo, para quem não sabe, à época, um puteiro enorme: quase todo o bairro —, no edifício  Chanteclair. Liderou a mostra e criou performances que derramavam nas escadas “sangue”, como se tivesse ocorrido uma ação criminosa ali. As putas adoraram, porque estavam numa verdadeira festa. O artista rompia, assim, a pose dos burgueses bacharelescos, que até frequentavam, na calada da noite, as namoradas prostitutas.

Bruscky é um pernambucano que ama a cidade do Recife. Impacienta-se, às vezes, quando tem que fazer viagens extensas. Aqui, frequenta os lugares, com gente simples, sem o folclore da mídia. Os mercados são as escolhas. Conhece a arte e os artistas do Nordeste e tem um arquivo precioso sobre o ambiente cultural da região e da cidade. Possui uma pasta sobre cada artista e movimento. É coautor de um livro sobre Vicente do Rego Monteiro, artista de sua admiração. Cícero Dias, quando vinha para o Recife, ligava para Bruscky a fim de convidá-lo a compartilhar um uísque numa conversa que durava horas. Num desses encontros, realizou, acompanhado por Mário Hélio, uma entrevista com o artista.

Paulo Bruscky teve um percurso de talento que ultrapassou fronteiras e, mesmo alcançando o reconhecimento nacional e internacional, prefere os mercados...    

sábado, 23 de novembro de 2013

Lendas na arte



Os artistas, geralmente, gostam de construir suas próprias lendas. Entre os exemplos internacionais, Paul Gauguin era célebre nesse aspecto. Disse-se um selvagem e que essa sua maneira de ser tinha heranças no Peru. Da sua avó materna. Seu nome era Flora Tristán (1803–1844), uma mulher revolucionária para o seu tempo. Talvez Gauguin a citasse por ser da América Latina, lugar tão distante do mundo civilizado e, provavelmente, à época, interpretado como continente ainda cheio de selvagens. Mas, quando foi para o Taiti, ele quis ser o selvagem dos selvagens. O que ficou foi o seu gênio e páginas na História da Arte.

Paul Cézanne: ninguém lhe tocava o ombro, era proibido. Ele se sentia invadido pelo simples toque. Era duro como uma pedra, passava pelas pessoas e não as cumprimentava se fossem indesejadas para o seu olhar e concepção de vida. Considerava-se um incompreendido. Um isolado. E o era. Mas tão revolucionário que influenciou toda uma geração posterior.

Van Gogh queria ser o missionário dos pobres oprimidos, mas desandou e se tornou o pai do expressionismo, com a orelha cortada. Ficou o mito de que era um dos artistas miseráveis do seu tempo, mas era sobrinho dos maiores comerciantes de arte da Europa, seu homônimo Vincent van Gogh, o tio Cent Van Gogh, só que não vendia, de fato, obra alguma através dele. O irmão do pintor, Theodorus van Gogh — o Theo das infindáveis correspondências —, agente comercial importante de uma das mais fortes galerias de arte, a Goupil & Cie, com filiais espalhadas em muitas capitais europeias, mandava-lhe uma mesada que dava para alugar uma casa, comprar comidas, tintas, pagar prostitutas, bebidas (absinto principalmente), etc. E hoje tem o maior museu dedicado a um só artista, ainda bem! A obra prevaleceu.

Sabe-se que Picasso era reconhecido como uma esponja da criação alheia, mas com classe. Havia alguns artistas que cobriam suas obras nas visitas do incontestável gênio. Não que ele copiasse, simplesmente, mas retirava a essência do outro. Ele só encontrava um concorrente forte, que era Matisse. Os dois se amavam e competiam ao mesmo tempo. A admiração era mútua. Mas quando Picasso saía do ateliê de Matisse dava alguns sinais, nas pinceladas, do francês; e Matisse, algo do espanhol. E são os dois gênios de maior repercussão na História da Arte do século XX: criaram movimentos e obras que permaneceram concretas para o olhar crítico da humanidade.


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Investidores de arte

                                                             Fernando de Noronha

O personagem colecionador sempre foi importante para o mercado de arte. Tem um olhar agudo e refinada cultura. Adquire uma obra porque aprecia os seus valores intrínsecos. E são estes que os comerciantes de arte valorizam, porque compram para incorporá-la ao seu convívio permanente, deixando para os seus herdeiros um patrimônio de estimado valor. Os marchands tradicionais, principalmente europeus e estadunidenses, se alimentavam dessas obras adquirindo-as através de espólios, após muitos anos presentes nessas coleções. Quando adquiridas, permaneciam nos acervos das galerias por tempo suficiente para retornar às vendas com preços algumas vezes multiplicados. E não se enganem: essa fórmula gerava muito dinheiro para os comerciantes. Era a velha técnica do mercado até alcançar outra.

Hoje, os galeristas são como corretores que vendem obras porque elas estão cotadas nas bolsas de arte, nos leilões. O tradicional colecionador passou a ser um investidor e geralmente compra uma obra porque o artista está em alta cotação, com pouca paixão pela peça adquirida. E a revende se perceber que os índices do artista estão em baixa, para não ter maiores prejuízos. Existem poucos ainda que mantêm aquelas obras por puro prazer de tê-las em suas paredes. Muitos erros desse tipo foram comprovados na história, por exemplo, Van Gogh, que é uma lenda por não ter vendido nenhum quadro, atualmente tem obras com sua assinatura que são adquiridas por mais de US$ 100 milhões.

Diz-se que o mercado de arte brasileiro está de vento em popa, que as exportações são maiores que as importações e que o interno cresce com o desempenho das galerias e das feiras em São Paulo (SP-Arte) e no Rio de Janeiro (ArtRio). Que desponta artista relativamente jovem, estourando nos leilões com preços de mais de R$ 1 milhão, e que chamam a sua obra de prima. Também sabemos que o mercado esteve em baixa por um período. E assim vive o nosso mercado de arte: em oscilações. Por enquanto a confirmação é de que a projeção é pra cima até ao longo de 2014. Já passamos por bolhas em investimentos em leilões e notícias alvissareiras constantes. É esperar para confirmar. Existe muito marketing na história. Mas os fatos podem comprovar a verdade.

domingo, 20 de outubro de 2013

Mercantes de arte

                                                         Picasso - Ambroise Vollard

A era dos marchands internacionais que construíram o mercado de arte dos séculos XIX e XX passou, mas deixou uma história mútua de pactos, entre artistas e comerciantes, para a conquista de uma nova mentalidade de vendas de obras, porque, então, os compradores estavam mais próximos: eram burgueses e capitalistas.

O impressionismo, que foi um movimento, no início, rejeitado pelo público e pelo mercado, teve que suportar mais de 10 anos para iniciar os primeiros passos no convencimento aos investidores e colecionadores para adquirir pinturas que tinham como substrato a luz. Foi o visionário marchand Paul Durand-Ruel quem começou a comprar as obras dos artistas impressionistas e a divulgá-las no mercado parisiense e no mundo. As pinturas impressionistas, naquela ocasião, começaram a ter uma dimensão sempre crescente na cotação de preços. Também contaram com os investimentos de Ambroise Vollard, comerciante culto e de perfeita relação com os artistas impressionistas, cubistas e de outros movimentos do início do século XX. Picasso, inclusive, realizou uma obra cubista representando um retrato de Vollard.

Um dos maiores representantes comerciais da nova pintura, a de vanguarda — em destaque, o cubismo —, foi Daniel-Henry Kahnweiler; que alcançou uma espécie de exclusividade quando se tratava de obras cubistas; segundo seu depoimento publicado no livro Minhas galerias e meus pintores, conseguiu vender uma enorme quantidade de obras cubistas. E disse que, se tivesse guardado essas obras, elas renderiam bilhões de dólares. Mas, à época, ele vendia a preços baixos. Picasso, Braque, Derain, Léger, Juan Gris, Vlaminck, Soutine e outros foram artistas de suas relações comerciais e amigáveis. 

É claro que outros nomes de marchands importantes atuaram nesse período, mas não com tanto peso como esses que estiveram perto da maior produção de arte entre os dois séculos. Um deles, que viveu até 1998, herdeiro de uma das maiores fortunas do comércio de obras de arte, foi o francês Daniel Wildenstein, considerado um dos mais influentes do planeta, consultado pelo papa Paulo VI sobre obras-primas do Vaticano que o pontífice pretendia vender para fazer doações. Wildenstein testemunhou a grande crise no mercado em 1991. E afirmou que a quebradeira foi de grande porte. A partir daí, o mercado de arte internacional tomou outro rumo.  

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Escandalosos urubus

O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar publicou um artigo, recentemente, com o sugestivo título Porque a vida não basta, na Folha de S.Paulo. Nele, expressa um olhar sobre uma faceta da arte contemporânea que explora o escândalo como forma de comunicação. Na sua abordagem universal, citou os exemplos de uma das Bienais de São Paulo e de uma obra de um artista brasileiro. Não o nomeou, nem a sua curadoria. Talvez para demonstrar que aquilo o que interessava ali era seu pensamento ante a crise da arte. A Bienal a que ele se referia expôs urubus engaiolados.

Para ele, as obras de arte nesse veio contemporâneo acabaram com a crítica, porque não têm o que se analisar, colocando-as como um fenômeno das manifestações sociológicas e culturais. Impressiona a Gullar a dimensão que têm os protagonistas que só provocam escândalos nas exposições, sem preocupação estética.

As suas intervenções no âmbito da crítica já são bastante conhecidas e sempre muito polêmicas. Um dos seus livros publicados, Argumentação contra a morte da arte, de 1993, criou um verdadeiro rebuliço. Alguns o colocam como conservador por contra-argumentar esse aspecto da arte contemporânea. Se não fosse o peso da história que construiu como poeta, escritor, crítico e militante dos movimentos políticos contra a ditadura, provavelmente ele não resistiria aos embates dos seguidores de Marcel Duchamp, um dos artistas, na história da arte do século XX, em quem Gullar bate, dizendo que tudo começou com ele. Todos os espaços da mídia são colocados à sua disposição para escrever ou falar, com independência, porque é uma personalidade internacional.

Em outro artigo, em 2007, o poeta ironiza a invenção dos ready-mades do artista francês. Um deles, o urinol de fabricação industrial, ao qual deu o nome de Fontaine, em que Duchamp pôs a assinatura R. Mutt, para concorrer em um salão organizado por uma associação de artistas independentes, da qual o artista fazia parte. Mas, como a assinatura não foi reconhecida, o júri ficou em dúvida se aceitaria o urinol como obra de arte. Terminou aceitando, por se tratar de uma entidade contrária à arte tradicional. Pegaria mal se negasse tanta audácia. Aceitou-a e colocou-a no fundo do salão atrás de um tabique, deixando o tão artista irado por tal desprezo que acabou abandonando, em seguida, a associação. “O urinol de Duchamp — afirmou Gullar — seria a expressão sarcástica da morte daquelas artes e, ao mesmo tempo, um modo de gozar a pretensão dos artistas que ainda se julgavam criadores de obras de arte.”

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Noventa anos


 
                                                                        Maria Amélia

Minha mãe nasceu em 12 de setembro de 1923, na cidade de Paulistana, Piauí. Descendente das famílias Léda e Palhano, esta última de origem italiana, que chegou ao País com a grafia Pagliano. Neta do poderoso lendário político republicano das terras do Maranhão, chamado coronel Leão Léda. Seu nome de solteira era Maria Amélia Léda Palhano. Quando encontrou o meu pai — falecido em 1980, no Dia do Professor, aos 60 anos —, Humberto da Costa Soares, estudava no Colégio Diocesano, em Petrolina. Ele, jovem professor daquela instituição, vindo dos estudos do Seminário de Olinda. Quase se tornou padre. Saiu com o conhecimento suficiente para ensinar latim, francês e português, aos 18 anos. Um trabalhador da educação que deixou marcas na história da formação de pessoas na cidade sertaneja. Aqui, no Recife, também como professor, chegou a dar doze aulas por dia, nos três expedientes, em vários colégios tradicionais, sendo contemporâneo de outros, que, à época, eram nomes de destaque na Educação, ele era um dos mais jovens. Terminou os seus dias terrenos como magistrado.

 A jovem estudante Maria Amélia irradiava uma beleza contagiante, perfil delicado, olhos castanhos-claros, cabelos ondulados finos, e de temperamento leve. Conseguiu reunir muitos amigos desse tempo, que permaneceram ao longo de sua vida como bons companheiros. Nessa relação entre professor e aluna, surgiu a afinidade que se consolidou em casamento. Tiveram os primeiros filhos em Petrolina, dois deles. E o restante no Recife. Como meu pai foi filho único, optou em fornecer sêmen, produzindo sete filhos. Para manter essa descendência, tiveram que dar muito duro. Gastaram as solas dos sapatos para garantir a nossa gororoba e paciência para educar cada cabeça!

Mas Saturno — o deus romano do tempo, que a tudo consome; em grego, Cronos — é cruel, confirma-nos pensar que a vida é uma ilusão. Como permaneci, após a morte do meu pai, convivendo com Maria Amélia Palhano da Costa Soares, nesses últimos 30 anos, fui notando nos seus olhos a perda do brilho, após infartos e cirurgia para implantar um marcapasso. Hoje, nos seus 90 anos, vejo-os nublados, como sinais do tempo, que nos traz principalmente dor...

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Luz domada

                                                                  Oswaldo Goeldi

Oswaldo Goeldi (1895–1961) representa um dos artistas brasileiros da maior expressão na xilogravura, que expandiu a sua arte, internacionalmente, para importantes centros culturais. Economizava em seus cortes na madeira para proporcionar uma precisão magnífica na definição das formas xilográficas. A luz sai do preto, como que irradiando uma luminosidade noturna.  Uma luz como se a víssemos atravessar num bloco escuro ou penetrar numa caverna. Uma magia impressa e uma visão própria do mundo. Os temas são a simplicidade. Animais domésticos, cenas de rua com homens anônimos, trabalhadores, a morte, o crime, pescadores que labutam em ondas bravias, peixes. Nunca o artista descreveu os prazeres da burguesia, o que o interessava era o trabalho ou o vazio dos transeuntes. A sua integração com os materiais do ofício era de um mestre que observava todos os meios para atingir a perfeição; os instrumentos cortantes e as madeiras eram selecionados de forma que oferecessem as melhores possibilidades técnicas.

                                                                Oswaldo Goeldi

Nasceu no Rio de Janeiro e aos seis anos partiu para a Suíça com os pais. Goeldi não foi um artista precoce. Só em 1915, aos vinte anos, após abandonar a Escola Politécnica de Zurique, começa a se dedicar às artes plásticas. O contato com a Europa forneceu o veículo para encontrar grandes artistas que o influenciaram. Mas o seu empenho foi transitado pelo autodidatismo, realizando desenhos preciosos, para, então, abrir esses contatos. O primeiro artista a influenciá-lo foi Alfred Kubin, um ilustrador austríaco com quem o artista brasileiro manteve correspondência durante toda sua vida;  indiretamente recebeu as influências de Guaguin, Van Gogh, Edvard Munch e James Ensor.

Na volta ao Brasil, em 1919, recebe crítica pesada dos conservadores da Academia Imperial de Belas-Artes que não aceitaram as influências sobre a obra do artista, vindas do expressionismo alemão. É aqui que ele inicia as suas atividades como gravador e aperfeiçoa a xilogravura de forma brilhante. Realiza ilustrações para jornais, revistas, livros, que foi uma das formas que encontrou para manter a sobrevivência, sua e da arte. Com o tempo, Goeldi faz a ponte com escritores, poetas e intelectuais, fornecendo ilustrações para suas obras. Drummond o descreveu como “o pesquisador moral sobre a noite física”.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Cidade dos artistas

                                            Bajado (1971) - Um artista de Olinda

Uma das obras essenciais para a compreensão e o registro histórico sobre os movimentos culturais da cidade de Olinda é o livro Utopia do olhar, de autoria do artista plástico e crítico Raul Córdula, uma das mais expressivas e fortes personalidades no âmbito da arte e da cultura, sempre presente no conceito e na concreção de manifestações visuais no País e na Região Nordeste. O texto é uma narração dos fatos que marcaram a cultura olindense e obedece a uma sequência desde os idos dos anos 1950 até a contemporaneidade, com um ritmo excelente para o leitor. Raul faz um levantamento monumental, nas artes visuais, de movimentos e nomes, sem omitir nenhum de seus pares, procurando ouvi-los e consignando depoimentos de forma harmônica e elegante, porque esse é o seu estilo.

                                               
Olinda se tornou Patrimônio da Humanidade, principalmente por sua história, sua beleza arquitetônica e o destaque da sua paisagem natural. Mas creio que também a presença de artistas na cidade contribuiu e impulsionou a conquista desse título, porque o próprio Aloísio Magalhães  — à época como secretário-geral do Ministério da Educação e da Cultura (MEC) —, um desbravador em várias vias culturais, principalmente quanto ao design no País, foi um artista que utilizou sua arte como um dos instrumentos para essa empreitada. Realizou dez litografias, através de seus registros fotográficos sobre Olinda, e um tríptico, isto é, três litografias conjuntas com o perfil completo do Sítio Histórico. Para cada imagem, cem reproduções. Aloísio reuniu 21 conjuntos dessas litografias assinadas por ele, a obra de Gilberto Freyre Olinda – Segundo guia sentimental de uma cidade e o conjunto de fotografias de Pedro Lobo. Distribuiu esse material com os 21 membros do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Cimos), da Unesco, para convencimento da conquista do título universal.

                                                              OLINDA

Mas até chegar a essa conquista foi uma longa história de movimentos e mobilização de artistas em Olinda. A gênese foram as primeiras presenças de artistas importantes na década de 1950, o Movimento da Ribeira, que foi fundamental para unir e dinamizar exposições e consolidou uma história nutrida por talentos que fixaram seu ateliê na cidade e repercutem nos âmbitos local e nacional; assim como, em paralelo, pelas vias governamentais, a criação de museus e a restauração de monumentos históricos; tudo isso alcançando a atualidade, que da utopia virou realidade como forças culturais e políticas que imperam e influem na cidade dos artistas.

domingo, 4 de agosto de 2013

Piedade Moura

                                                           Piedade Moura



Conheci a pintora Piedade na década de 1970, em uma visita que me fez, pelo fato de a artista ter lido uma entrevista minha. Desde então, consolidamos um laço que permanece vivo nas lembranças.

O seu sorriso vem logo à memória: largo, intenso, sonoro; os olhos brilhantes e inteligentes de quem gostava de ler, de falar intensamente, de viver, de acompanhar os melhores filmes, de ir às peças teatrais — e lá estava Piedade, às vezes nos bastidores, por ser amiga dos atores e por ter irmãos no ofício, como Nilson Moura, um dos criadores do Mamulengo Só-Riso, e Gilson Moura; uma família de artistas.

Piedade era assim, intensa, tudo o que fazia era como a sua pintura, com fortes pastas de tinta, cores saídas do tubo diretas e entregues ao suporte, com pequenas interferências de brancos e negros, para criar as sombras ou clarões que vinham de sua mente, como os amarelos que apreciava evidenciar. Rasgava as composições com pinceladas como meteoros, numa interferência proposital; tudo tinha o seu valor para o olhar da pintora, enxergava as coisas com uma visão própria e deixava-se levar pela força da ação gestual.

Pintávamos juntos nessa energia vibrante, paisagem, pessoas, temas variados. Era magnífico como encarava as paisagens. Dava o tom que queria e como via, sem nenhuma preocupação com a captação natural — em sua cabeça não havia nenhum mestre para se influenciar. A pintura de Piedade poderia, hoje, por exemplo, estar presente no que conceituamos sobre a arte contemporânea, ou melhor, pintura contemporânea. Estaria caminhando estreitamente com artistas desse veio atual.

Nesse entrelaçamento de trabalho e amizade, convidei-a para que posasse para mim. Ela concordou de imediato. Realizei uma série imensa com Piedade como modelo. Série que me deixou tomado por cada quadro realizado. Eram soluções pictóricas que encontrava, ora penetrando numa sequência abstratizante, ora captando as formas um pouco realistas. Mas a meta era dar o ponto exato da expressão.

No dia 21 de janeiro de 1984, acordei de madruga, e, naquele dia, o sol nasceu de cor dourada, com tons avermelhados, numa aparência de dor profunda, o meu sentimento é que havia perdido alguém tão importante que não poderia acreditar naquela fatalidade. Era um dia após a morte de Piedade Moura, nunca mais pude ter a alegria do seu convívio...

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O universo de Dalí




O pintor catalão Salvador Dalí (1904–1989) foi um talento precoce: aos 6 anos pintou uma paisagem dos arredores de sua cidade natal, Figueras, iniciando naquela obra o percurso de uma das personalidades artísticas que influenciaram o século XX e a arte universal, na mesma dimensão de Picasso, Matisse, Duchamp, Malevich e outros modernistas. A sua independência já transparecia, na pré-adolescência, sinal de ideias avançadas e segurança em si próprio para o trabalho que iria realizar. Aos 10 anos descobriu o impressionismo e começou a desenvolver pinturas luminosas com aquela matéria espessa e característica dos impressionistas.

Entusiasmado, partiu para o pontilhismo e iniciou uma série de paisagens da região de Cadaqués, com pescadores, barcos, retratos dos familiares e autorretratos. Aos 18 anos, conhece o cubismo, o futurismo e os artistas que estavam na vanguarda do seu tempo, como Picasso, Matisse, Miró, Juan Gris, Morandi, Severini, Chirico, Carrà; o poeta de Granada Federico García Lorca — por quem teve amizade e paixão —; e o cineasta Buñuel. Com este, futuramente, realiza o filme O Cão Andaluz. Todos se tornaram amigos do jovem artista. Nesse período as influências de Picasso e Miró são fortes. Aparecem quadros cubistas e as lembranças das formas de Miró, mas sempre com a marca do olhar e do cérebro agudos de Dalí.

Em 1929 inaugura a sua fase surrealista com duas obras: O Enigma do Desejo – Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe e O Jogo Lúgubre; será um entusiasta e protagonista desse movimento liderado pelo poeta e teórico André Breton. A partir daí, a obra de Dalí se expande.

Admirador da cultura e da arte renascentista, elabora trabalhos surrealistas com imagens inspiradas nos grandes mestres. Aqui, no Recife, na Caixa Cultural, foram expostas 100 xilogravuras realizadas, sob a supervisão do pintor, por dois gravadores, Raymond Jacquet e Jean Taricco. Eles reproduziram, com perfeição técnica, as ilustrações em aquarela do artista sobre A Divina Comédia, de Dante Alighieri, encomendadas, na década de 1950, pelo governo italiano para as comemorações do 700º ano do nascimento do poeta. Os italianos desistiram da encomenda, mas Dalí continuou a obra. Um trabalho complexo e de grande envergadura, testemunho vivo do gênio surrealista.



terça-feira, 9 de julho de 2013

O Grito

                                                                 

Este é o título de uma obra do pintor norueguês Edvard Munch (1863–1944), realizada em 1893, na qual utilizou uma técnica mista, com óleo sobre tela, têmpera e pastel, uma das mais significativas do expressionismo mundial. Pintura realizada em um período difícil do artista, que refletiu em nosso século como uma expressão máxima de angústia, talvez por isso nos toque tão profundamente por vivermos num tempo em que o cidadão é oprimido por todos os lados: pelo desenvolvimento desordenado, pelo Estado sem uma definição ideal para a sociedade e pelas imensas tragédias que assolam o planeta.

Hoje, esse grito é multiplicado por milhares de pessoas em vários países, inclusive no nosso. Vozes que clamam contra a corrupção; por justiça social; diminuição da criminalidade, que amedronta o cidadão todos os dias; melhoria nas condições de vida, na educação, na saúde, no transporte, na moradia, no salário, na política; a redução de impostos, cujo retorno não vemos... A esperança — apesar de o povo brasileiro ser otimista e paciente — foge-lhe das mãos, numa cena de muita tristeza.

Mas essas vozes têm a sua demonstração de grandeza através das redes sociais. É ali que o cidadão diz tudo. Fala mal dos governantes, mostra-lhe os erros. Também dos parlamentares, apontando as deformações do Congresso, que finge não saber o que o povo quer. Levanta bandeiras de ordem. Organiza-se para se manifestar nas ruas e falar do que precisa. Este é o verdadeiro plebiscito.

A leitura que é feita nessas páginas na Internet dá para interpretar a voz do povo. Só não vê e ouve quem não quer. Está sendo um verdadeiro dragão de poder democrático, talvez o quarto a partir de agora. É a sociedade, com toda sua força, colaborando com os políticos para que eles trabalhem como ela quer. Uma verdadeira democracia forjada pelo povo, e não pelos governantes.

E as ruas é a materialização das vozes cidadãs. Milhares caminham com a vontade de verdadeiras mudanças. Para trás as velhas políticas! É isso que o povo quer: saciar as suas necessidades emergentes. Nada em longo prazo. Mudanças já! Não há como esperar. O tempo se esgotou.

                                                                       

domingo, 23 de junho de 2013

O mal em nós

                                          A Escola de Atenas,Rafael Sanzio -1509

A maldade humana é um fenômeno natural. Na essência somos assim: próximos ao mal. Se não fôssemos, não haveria necessidade de existir, na história, tantos filósofos, profetas e iluminados, com a finalidade de nos lembrar do lado ético, despertando-nos os exercícios de bondade e compaixão, como Sócrates, Platão, Krishna, Confúcio, Moisés, Buda, Jesus, Maomé; além das tradições hindus e os exemplos de indivíduos que marcaram a modernidade com a consolidação de ideias avançadas de direitos humanos, de equilíbrio e preservação do planeta.

 É difícil nos reconhecermos dessa forma: como criaturas capazes de praticar o mal. Pretendemos ser reconhecidos, no verniz social, como pessoas do bem, de respeito, espelho, para os outros, de moral e inteligência. Ficamos indignados quando nos colocam uma lente de aumento e mostram o lado podre de nossas ações. Mas apontamos facilmente o dos outros. Estamos também cegos para o sofrimento dos semelhantes, aqueles que representam o “inferno”. E apreciamos os personagens maus, representados na dramaturgia.
 
Em todas as faces da sociedade existem essas sementes do mal, nas religiões, na política, na ciência, na arte, na comunicação... Movemo-nos nessas forças das várias escalas profissionais e dos relacionamentos humanos com um tom de diplomacia que beira, quase sempre, uma franca hipocrisia. Nesse instante, pensamos logo e só nas relações políticas, quando alguns políticos se cumprimentam com as tapinhas nas costas e o sorriso fácil dos acordos mais esdrúxulos. Mas, se aumentarmos o grau de nossas lentes psíquicas, veremos que em muitas dessas relações humanas há tramas de armadilhas.
 
As criaturas humanas que transcendem essa maldade intitulamos como heróis, e estas são perseguidas, pisadas, maltratadas, porque não estão no mesmo patamar do mal, e, depois que as destruímos, pomo-las nos altares da humanidade. E os maus famosos e mais próximos ao nosso século, por exemplo, os que assassinaram grande parte da humanidade, como Hitler, Mussolini, Stalin, Pol Pot e outros, cobrem uma multidão de maus menores, que são homicidas, ladrões, mesquinhos, maledicentes, egoístas, ambiciosos, preconceituosos, invejosos... Com a devida vênia, excelências e eminências, o mal ainda predomina em nós!


 

domingo, 9 de junho de 2013

O legado de Van Gogh

O pintor Vincent Willem van Gogh (1853–1890) nasceu um ano após e no mesmo dia do natimorto Vincent van Gogh, começando assim sua história dramática. O Willem e o Vincent do nome do artista vêm dos dois avôs. Ele era o mais velho dos irmãos Anna Cornelia, Theodorus, Elizabeth, Wellemina e Cornellis Vincent, educados rigidamente sob a orientação protestante calvinista, pelo fato de o pai, Dorus, ser pastor e ter como base o pensamento de Calvino — “Tudo que não é dever é pecado”. A mãe, Anna, fechava o círculo familiar afirmando: “Somos moldados primeiro pela família e depois pelo mundo”. A família holandesa, à época, como a dos Van Gogh, era regida pela santíssima trindade doméstica: o dever, a decência e a solidez.

Van Gogh era uma personalidade diferenciada. Quando tentava se enquadrar na tradição familiar quanto à religião e aos princípios daquele ambiente, era um desastre. O primeiro passo foi trabalhar na galeria de arte do tio Cent van Gogh, um dos parentes, que, ironicamente, enriqueceu com a venda de obras de arte e se associou a outra grande galeria, a Goupil, de um francês chamado Adolphe Goupil, formando o nome Goupil & Cie, que invadiu o mercado de arte europeu. Mas Van Gogh não se adaptou à disciplina de vendas: foi o seu primeiro fracasso.

Depois tentou ser pastor, mas foi reprovado no teste de avaliação para exercer a função. Mesmo assim, foi mandado para a Bélgica, para as minas de carvão, em Borinage. Lá, quis ser o protetor dos explorados operários; seus superiores religiosos o demitiram porque desonrou o padrão de pastor. Então, revoltou-se contra a religião e chamou os seus dirigentes de “sepulcros caiados”, outra derrota. Entre as várias decepções por que o artista passou, houve o rompimento com a família.

A arte levou-o a libertar-se dos venenos que a serpente família inoculava sobre seu espírito. Na verdade, o artista só teve dez anos para realizar a obra genial que é reconhecida pela história. Só um irmão o acompanhou e o ajudou a realizar a sua obra. Foi Theodorus, o Theo das longas cartas, nas quais Vincent compartilhava suas experiências detalhadas como artista.

Na cidade de Arles, no sul da França, o artista expandiu a sua mente realizando obras de maior representação, foi ali que conviveu com Gauguin e onde teve também um final trágico...  

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O povo e a corte

                                                   Ministro do STF - Joaquim Barbosa


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, confirmou o que nós, o povo, sabemos: que os partidos políticos são de “mentirinha”, que “são ineficientes e dominados pelo Poder Executivo”. Basta ler as pesquisas de opinião sobre as instituições e poderes brasileiros para perceber que o Congresso sempre fica em último plano.

O ex-presidente Lula acordou no momento em que entendeu essa estrutura política e, só na sua quarta candidatura, quando se uniu a políticos de todas as cores e ideologias, venceu as eleições e dominou o Congresso, principalmente com o seu ministro estrategista José Dirceu.

   

Sonhamos, em todos os anos de eleições, com um Presidente da República e representantes do Congresso que deem sentido novo ao nosso país; que realizem as reformas de que necessitamos nas áreas política, tributária, penal e judiciária; na educação; na saúde; no transporte... Mas logo após consolidados os eleitos, com o passar dos anos, vêm as desilusões, os mesmos fatos, as mesmas corrupções, e a preocupação maior de cobrar impostos, enriquecer mais o governo, que já está imensamente rico e pela atitude, se beneficia do povo, que vota e elege.
   
Na verdade o Brasil cresce pela força empreendedora desse povo paciente, que contribui a cada dia com o suor do trabalho, porque, se dependesse de muitos dos nossos representantes políticos, a Nação estaria paralisada. A inteligência dos brasileiros, em todos os âmbitos, destaca-se em grande parte do mundo, mas são indivíduos independentes que nos representam com os seus valores, nada a ver com governos e políticos.
   
E com essa força demos passos importantes, mas podemos “fazer mais”, como dizem todos os candidatos, só que estamos andando a passos de tartaruga. Já poderíamos ter dado saltos imensos e estarmos no patamar de Primeiro Mundo. Mas há dois Brasis: o real e o encantado.
   
Para quem duvida, sugiro que visite ou necessite de tratamentos em hospitais públicos ou de uma simples consulta médica; reivindique à Justiça indenizações ou direitos como vítima de processos penais; observe os impostos cobrados nos produtos dos supermercados. Vejam a via férrea Norte-Sul, que foi paralisada e deu prejuízos constatados pelo TCU; a transposição do Rio São Francisco, com superfaturamentos; ou, como são tantos lados para mostrar, façam um passeio, simplesmente, no centro do Recife e verifiquem a decadência...




quarta-feira, 1 de maio de 2013

Calçadas perigosas


É o que posso dizer em relação às nossas calçadas na cidade do Recife. Infelizmente, este é um drama que vivemos há longos anos. E esta é a preocupação do atual prefeito, Geraldo Julio, com 100 dias de governo: resolver o grave problema criando leis que possam restaurá-las. O desleixo foi das administrações anteriores, principalmente dos últimos doze anos. É lamentável.

No dia 20 de fevereiro, à tarde, caminhando no bairro da Encruzilhada, após compras no mercado público, com as mãos ocupadas carregando sacolas, quando ia atravessando um sinal para alcançar outra calçada, levei uma topada e caí com o ombro direito. A dor foi expressiva porque não tive tempo de me proteger, largando as sacolas para utilizar as mãos como meio de defesa: espatifei-me no chão quente e logo fui cercado por pessoas sensibilizadas com aquele “senhor” caído pelas vias das más traçadas calçadas. Alguém perguntou: “O senhor pode se levantar?”. “Meu Deus”, pensei, “finalmente as calçadas me derrotaram!” “Não”, respondi e devolvi: “O senhor pode me ajudar a levantar?”. Assim foi feito. E continuei a caminhada solitária com a dor atroz, segurando as sacolas em um só braço. Bem, aí continuou a via-crúcis.

Só no dia 22 fui a um grande hospital, no setor de emergência. O médico identificou, através de radiografia, três fraturas e me encaminhou para realizar uma cirurgia de emergência. Passei dez horas em jejum, fui hospitalizado, realizei todos os exames pré-operatórios. Já no quarto hospitalar, com a bata ridícula, touca e pantufa própria para cirurgia, recebi a visita do anestesista; perguntou-me se estava em jejum, há quantas horas, etc. e entrou na conversa que o interessava: “Senhor Plínio, tenho um assunto que considero constrangedor”. Fiquei curioso com o “constrangimento”. E aí ele foi direto. “Terei que cobrar ao senhor R$ 1.500,00 por fora, porque o seu plano não cobre o meu trabalho.” Então, disse-lhe: “Meu caro, quem está constrangido sou eu por ser oneroso o plano e ter que lhe pagar ainda esse valor; sendo assim, não farei a cirurgia”. E o anestesista terminou dizendo que aguardasse os instrumentistas, porque eles viriam também cobrar o “cachê” deles. Tudo confirmado pelo chefe da equipe cirúrgica. Fiquei com a cara no chão — mais uma queda!  

Neguei o pagamento, saí daquele hospital e fui cirurgiado em outro, com outra equipe, diria de competentes e bons médicos, não corporativistas nem mercenários. O plano negou as más informações dos primeiros médicos, e o grande hospital admitiu o erro.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Visão do capeta


Goya - Sabbath

Fui acordado, com uma forte luminosidade, às 2:30; era uma bola de fogo que, aos poucos, foi diminuindo a sua intensidade e tomando uma forma humana. Fiquei tão surpreendido, estatelado, como tomado por uma força poderosa, e aquele ser começou a falar com uma polidez de quem tem alta cultura: “Sou Lúcifer, o Anjo Decaído, ou o Dragão do Apocalipse, ou a Besta, ou o Diabo, que, na acepção da palavra, é aquele que divide; você escolherá depois como me chamar. Muitos religiosos, na mitologia do demônio, constroem a imagem como terrível, monstruosa, mas, como vês, sou belo”. Então, comecei a perceber a sua maneira de articular as palavras, de gesticular, de se vestir, de pentear o cabelo, o seu perfume; para mim era uma espécie de executivo financeiro da Wall Street, desses que o mundo respeita e considera como a melhor estirpe de gente. E continuou: “Sou doutor em todas as ciências e filosofias, principalmente me atrai a economia, o direito, a genética, a medicina, a matemática, a física, a história, a teologia, a psicologia, a política, nenhum conhecimento me escapa, gosto até da gastronomia e, nesse ramo, tenho também profundo conhecimento. E é com esse saber que penetro na vida entre os homens, na verdade eles me distraem muito, porque se acham sábios e não entendem que a minha sabedoria supera qualquer gênio da humanidade, só estou abaixo daquele que não pronuncio o nome, por razões óbvias. Por exemplo, o Brasil é um dos países que mais me atraem, abaixo, claro, dos EUA, com suas infindáveis guerras interesseiras e desumanas. A começar pelo Congresso Nacional, onde encontro os piores tipos humanos de ignorância, eles são tão bons nas besteiras que fazem que, às vezes, não preciso nem inspirá-los, muitos parlamentares já realizam o meu pensamento: defraudam, votam em interesses próprios, só pensam em presidir a Câmara e o Senado e nas reeleições deles e para a presidência da República. Morro de rir, meus auxiliares ficam indignados de tanta risada. E as más seitas do País que falam no Evangelho do Nazareno. Com essas palavras eles enriquecem a si próprios e aos planos de expansão dos seus templos; ah, que prazer me dão esses cegos guias de cegos deturparem as palavras do homem mais santo que esteve entre vocês. Fazem milagres televisados com atores improvisados e, aí, gritam cinicamente: ‘Ele salva! Ele salva! Eis o milagre!’. E, depois, dão o número da conta para depósito. Que maravilha! Que progresso no mal! Também estou no Escândalo Vatileaks e me envolvi no encontro entre os dois papas, homens sérios, é verdade, mas, quando começaram a ler aquelas páginas, grande risada eu dei. Para sua informação, do meu conhecimento sobre arte, você não tem dimensão. Até mais...”.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

O violino de Matisse


O pintor francês Henri Matisse (1869–1954) concretizou a sua vocação para as artes plásticas tardiamente, após passar um ano estudando direito em Paris e tentar ser um violinista durante a infância e adolescência, por influência do pai, que acreditava que o artista poderia ser um virtuoso no instrumento que o acompanhou durante toda a vida, principalmente nos momentos mais difíceis, quando o artista mergulhava nas emissões agudas das sonoridades características daquelas cordas musicais, para liberação das tensões nervosas que o acometeram em vários períodos e fases da carreira de um dos principais inventores do pensamento, da arte e da cultura moderna ocidental.

A sua influência na Europa pós-impressionista foi considerada fundamental e exerceu uma das lideranças que esteve como ponta de lança nos movimentos mais importantes, a exemplo do Fauvismo, consolidado em 1905, e inspirado nas cores fortes de Van Gogh e no primitivismo de Gauguin, tendo como origem do nome o termo les fauves, dado por um dos críticos conservadores, à época, Louis Vauxcelles. Portanto, chamaram seus seguidores de “as feras”, grupo em que estavam artistas como Derain, Vlaminck, Dufy, Braque... Segundo Matisse, todos procuravam a pureza das cores e o seu equilíbrio, com a força de pinceladas veementes.

Na sua permanência em Paris, Picasso encontrou Matisse — um mestre atuante na cultura parisiense que era ouvido seriamente e apontava caminhos como fonte de muitas revoluções estéticas e um competidor à altura da genialidade picassiana. Matisse teorizava suas elucubrações plásticas com força e rigor, exercendo o poder das ideias sobre os demais artistas, fato que intimidou Picasso, no início, ao conhecê-lo, e fez o poeta Apollinaire chamá-lo de fauve dos fauves.

A trajetória do artista, sempre acompanhada pela presença do violino, foi marcada por lutas e reflexões que o levaram a conquistas não somente no âmbito estético, mas também na popularização da arte que realizou, ampliando as vendas das suas obras, que se propagaram em toda a Europa e América, através de importantes colecionadores que o acompanharam durante todas as suas fases. Alcançar o mérito de tornar-se Cavaleiro da Legião de Honra, eleito pela revista L’Art Vivant como um dos artistas mais populares da França, e incluído no hall da fama da Vogue inglesa gerou a velha inveja humana entre os cubistas e surrealistas, que o consideravam um artista decorativo.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Incentivos culturais


Vivemos num país emergente onde o lema é a deficiência. A começar pela elite política, que, quase sempre, legisla em causa própria. Um governo que cobra os impostos mais altos do mundo, sem investimentos consideráveis na saúde e na educação, porque, claramente, não vemos os resultados; a Justiça caminha como uma tartaruga; a segurança pública não domina os crimes perpetrados nas ruas; e a traficância de drogas imperante destrói a juventude.  Mas surgem personagens do poder a defender o castelo de trevas. Nesse sistema, o Ministério da Cultura faz a cena à custa dos inventores culturais, que privilegia alguns destes em detrimento de outros, como o financiamento de um site de mais de um milhão de reais, e filme pago antecipadamente...

Para nós, artistas e produtores, os incentivos culturais disponíveis nos municípios, nos estados e no âmbito federal são verdadeiros obstáculos. Além da deficiência natural, são somadas as imensas dificuldades criadas para os produtores culturais, que têm que ter um capital sólido para poder investir no próprio projeto, porque, após a sua aprovação, vem a via crucis interminável da burocracia cultural. No mensalão, em que foram disponibilizados cerca de milhões de dólares e reais, não havia tanta burocracia, era só o político dizer que ia apoiar o governo e, então, as maletas, as cuecas se enchiam de cédulas, tão simples e natural. Conheço produtores que investiram suas economias nos eventos pelos quais foram responsáveis e ainda estão para receber dinheiro dessas fundações culturais, e estas não lhes dão esperança nem satisfação sobre o fato.
 
Seria importante mudar essa política cultural a partir do Ministério da Cultura, porque há um excesso de exigências que impede qualquer empreendimento nesse âmbito; o contrato é assinado em cima da hora; os produtores e os artistas investem um dinheiro significativo para não deixar de cumprir os compromissos para realizar uma manifestação cultural. Os governos municipais e estaduais também não fogem ao padrão. Na verdade, para realizar um projeto aprovado por qualquer desses meios oficiais tem que ter capital para poder manter os compromissos. Se não o tiver não poderá concretizá-los. Creio que isso não significa incentivo cultural.  

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Os dólares da arte


Um dos artistas ingleses que participou da famosa exposição “Sensation”, realizada em 1997, na Royal Academy of Arts, em Londres, Damien Hirst, com a curadoria da mostra assinada pelo empresário da publicidade e, hoje galerista Charles Saatchi, tem, segundo o “Sunday Times”, de Londres, uma fortuna estimada em U$ 350 milhões, construída com os seus truques de mercado através de uma verdadeira máquina de vendas. A grande estratégia do artista de 47 anos foi convencer os seus seguidores a desembolsar milhões por provocações criadoras, tais como vivisseccionar animais; usar bitucas de cigarros nas obras; apresentar um crânio humano fundido em platina e cravejado de diamantes; e uma das mais famosas: um tubarão conservado em formol, vendida simplesmente por U$ 12 milhões ao bilionário Steve Cohen, que é obrigado a preservar a obra em refrigeração, já que quase a perdia porque o formol não estava dando conta do trabalho de conservação.

Até onde essa máquina irá funcionar retirando essas quantias dos bolsos de quem tem muito e não sabe o que fazer? Alguns especialistas dizem que expor um Hirst, como propriedade cultural dá visibilidade ao comprador, o faz distinguir-se entre os simples colecionadores, pois se supõe que está acima de todos os consumidores da arte contemporânea. Então não se leva em conta aí o gosto, a admiração da obra por si; só, no caso, o nome do artista e a sua projeção nas façanhas financeiras no mercado.

Mas mesmo assim, com todo esse poder do artista no mercado de arte, na queda do banco americano Lehman Brothers, em 2008, as suas obras foram atingidas pela bolha financeira e começaram a cair na cotação dos preços, embora haja entre os colecionadores mais sólidos uma busca por artistas que possam garanti-los quanto ao investimento, a exemplo de Gerhard Richter, um artista alemão, considerado um dos mais cotados atualmente, alcançando o preço de U$ 34 milhões, um valor extraordinário por se tratar de um artista vivo. Também estão à procura dos Pollocks, Warhols, Rothkos, Bacons.
Gerhard Richter

Agora, o martelo dos leilões internacionais bate para as obras de Damien com o preço bem menor ao que alcançava no pico do mercado, mas continua como a grande estrela, só que em lenta queda...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Carnaval de Alcir


Um dos homenageados do Carnaval de 2013, o fotógrafo Alcir Lacerda, falecido em setembro do ano passado, recebeu também uma bela publicação sobre a sua obra, pela Cepe Editora: Alcir Lacerda, fotografia, que é um verdadeiro documento histórico sobre a arte e a técnica fotográfica em nossa região e Estado. O livro contém textos que se entrelaçam pelas abordagens sobre o fotógrafo, oferecendo ao aficionado e leitor uma visão completa da sua atuação; a influência sobre outros fotógrafos; as temáticas que apreciava desenvolver em seus trabalhos; a amizade com um dos artistas plásticos representativos da história do modernismo em Pernambuco e no País, que o considerava um grande fotógrafo, Lula Cardoso Ayres; e, dividindo, com este, impressões sobre a luz na fotografia.

Apesar de a fotografia ser apoio de sua sobrevivência, ele a tratou, permanentemente, como arte, porque o olhar e o cérebro do artista estavam ativos para que o seu testemunho visual não deixasse escapar algo que não tivesse o tom de seriedade profissional.

Atuou na imprensa pernambucana praticamente em todos os jornais locais, na revista Manchete, no Estado de S. Paulo, em Fatos e Fotos, em O Cruzeiro, na Veja... E foi pioneiro, em Pernambuco, em fotografias publicitárias e científicas. Toda essa desenvoltura profissional foi desenvolvida através do seu estúdio, Acê Filmes. Registrou fatos importantes na história pernambucana.

A paisagem do Recife era uma das paixões que conservava e o livro mostra uma série de fotos que são magníficas, não somente as aéreas, mas as captações dos pescadores no Rio Capibaribe, com as jangadas e velas abertas ou fechadas; as pontes, vistas de longe e de perto; os edifícios importantes da cidade; os fortes; o povo no Carnaval; as luzes à noite; detalhes arquitetônicos; os interiores das igrejas; o Teatro de Santa Isabel; as escadarias dos morros...

Considerava a foto em preto e branco a arte refinada, porque nela a luz era captada de forma mais plena, limpa, sem a mácula da cor. Segundo o depoimento dele à sua filha Betty Lacerda, “A melhor qualidade para mim continua sendo o preto e branco. Além do que, com p&b você pode dar a tonalidade que quiser à imagem: mais escura, mais claro. É no laboratório que se aprende fotografia”. O Recife ganha mais luz no Carnaval, com a homenagem a Alcir Lacerda.