"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O artista telúrico



Lula Cardoso Ayres (1910–1987), filho da aristocracia canavieira pernambucana, um dos mais fortes representantes da arte do modernismo brasileiro, como criador voltou o seu olhar para as raízes da gente da terra, elaborando o mote para realizar uma obra fruto de uma pesquisa minuciosa de tipos da cultura africana, de mestiços, de indígenas, das manifestações populares do Carnaval, do artesanato dos bonecos de barro... Esse momento do seu olhar criativo iniciou quando foi convocado, em 1936, pelo pai, João Cardoso Ayres — homem culto e sensível à vocação do filho —, para acompanhar a administração de sua propriedade, a usina Cucaú; mas Lula demonstrou desinteresse para assumir essa tarefa, pedindo apenas ao pai um “atelierzinho lá num canto” e foi pesquisar nas regiões próximas, com lápis e papel, a desenhar os traços fisionômicos que encontrava em múltiplas variedades, inclusive utilizando a fotografia — outra arte que dominava — como meio de registro. Essa fase, que permaneceu muitos anos e se refletiu sobre os trabalhos futuros, foi de uma riqueza notável para sua obra.

Mas, antes, nutriu-se com mestres que lhe forneceram os artifícios do desenho, da pintura e a da prática dos materiais que evocam a ação do artista. Ainda bem jovem, o primeiro professor, em 1922, foi o artista alemão nascido em Munique Heinrich Moser (1886–1947), que era pintor, escultor, arquiteto, decorador, ceramista e vitralista e que o levou a exercitar todas as técnicas da pintura, inclusive o vitral. E, no segundo tempo, de 1930 a 1932, morando no Rio de Janeiro — onde conviveu com Candido Portinari, Procópio Ferreira (que lhe encomendou cenários teatrais), Ismael Nery, Cícero Dias e artistas que rondavam a vanguarda da época —, foi Carlos Chambelland (Rio, 1884–1950), que exerceu sobre o aluno uma disciplina rígida no desenho.

Tendo chegado de Paris em 1925 e conhecido Maurice Denis e os movimentos de ponta, se influenciou principalmente pelo cubismo sintético. Demonstrou isso quando, estudando os bonecos de barro, representou-os, na pintura, no guache, no desenho, a partir daquelas formas artesanais conhecidas, e as cenas eram todas transfiguradas com os volumes das técnicas do barro — considerados belos trabalhos de sua obra. Mas o universo de Lula Cardoso Ayres é amplo e inteiro na concepção e na realização; mergulhou numa mistura entre o abstrato e o figurativo criando uma harmonia e identidade própria na técnica que é marco na sua participação em bienais de São Paulo. Um artista fecundo com uma visão inconfundível.  


sábado, 24 de outubro de 2015

Giotto

                                                                  Giotto

Giorgio Vasari (1511–1574), escritor e pintor florentino, considerado um dos primeiros historiadores da arte, em sua obra “Vidas dos Artistas” — onde reuniu biografia dos arquitetos, pintores e escultores italianos de antes e durante o Renascimento — narra que Giotto di Bondone (1266–1337) nasceu na zona rural de Florença, na cidade de Colle Vespignano. O pai, Bondone, agricultor, educou-o com a liberdade que impulsiona as paisagens do campo. Sendo uma criança vivaz, atraía as pessoas do lugarejo por seu encanto e inteligência. Aos 10 anos, o pai confia-lhe as ovelhas da propriedade e, enquanto estava a pastorear, desenhava as coisas da natureza ou algo de sua fantasia no chão, na areia ou no piso. Foi nessa fase que o pintor florentino Cimabue, celebérrimo em Florença, de passagem pelo lugarejo, presencia Giotto desenhando as ovelhas, com um seixo pontiagudo, em uma pedra polida. O pintor convida, então, o garoto para que fosse morar em seu ateliê, com a anuência do pai.

Para o artista-artesão dessa época, o mercado consistia no interesse dos mecenas, dos duques tiranos ou dos príncipes da Igreja, que era o mais amplo. Nos templos romanos, eram solicitadas imagens em pinturas, esculturas, ornamentos... E quase toda a obra de Giotto foi realizada dentro das igrejas. Até ele existir, imperava o estilo bizantino, que tinha como princípio a rígida hierarquia em que os valores eram representados para dar importância à propaganda cristã, à sua mensagem. E as cores eram elaboradas de maneira mais forte também como objetivo simbólico. Giotto abriu as representações humanas dando-lhe suavidade, perspectiva, drama, ação, movimento, proporção. Foi um dos precursores do Renascimento. Dante Alighieri, retratado pelo pintor, expressou a admiração pelo artista, citando-o na “Divina Comédia”; e Boccaccio deixou o seu registro: “[...] Giotto merecidamente pode ser considerado uma das luzes da glória florentina”. Angelo Poliziano diz no epitáfio: “Sou aquele graças a quem a pintura morta ressuscitou...”.
 
Conta-se ainda que o papa Bento XII, ao ouvir sobre a fama de Giotto e pretendendo contratar o artista para ornar São Pedro de Roma com muitas pinturas, envia um emissário à Toscana para saber mais sobre o homem e sua obra. O representante fala ao pintor que precisava levar alguns desenhos para o papa com o fim de conhecer sua obra. Giotto pega um papel, um pincel molhado com tinta vermelha e, num movimento único, desenha uma circunferência exata. E diz: “Leve-o à Sua Santidade, com outros desenhos”. Bento XII aprovou imediatamente.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Giacometti

                                                                              Giacometti

Em uma longa entrevista concedida a Georges Raillard e publicada em livro com o título “A cor dos meus sonhos”, Joan Miró conta que a descoberta do escultor Giacometti foi um caso inusitado e histórico na modernidade do século XX. Diz que o personagem responsável pela incidência foi Jean Cocteau, que se encontrava em um café, em Montparnasse, e, ao lado, em outra mesa, estava sentado Giacometti, impressionando-o com a forma do seu crânio, e a partir daí entabularam uma conversa quando o artista se identificou como escultor. Mesmo sem conhecer a sua obra, Cocteau correu e disse ao galerista Pierre Loeb que conhecera um escultor e que era preciso visitar o seu ateliê, porque, pela forma da sua cabeça, acreditava que era um artista de mérito. Então, Miró informa: “Foi assim que tudo começou para Giacometti: descoberto por Cocteau, e por causa da sua cabeça!”.
 
Os primeiros passos do suíço Alberto Giacometti (1901–1966) como artista foram dados através do seu pai, um pintor impressionista, Giovani Giacometti, que o iniciou no desenho, na pintura e na escultura. Depois segue a Paris (1922) e frequenta cursos de escultura. Adquire uma personalidade artística, sob a influência da arte africana e da Oceania. Trava conhecimento com o surrealismo e é convidado para participar do movimento, com a admiração de André Breton. Mas será expulso do grupo por cometer o sacrilégio de adotar nos seus métodos, em escultura e pintura, a percepção ao natural, com modelos. É quando pinta e modela retratos e corpos. Um dos retratados por Giacometti foi Jean Genet, que realizou um livro esclarecedor sobre o artista, com o título “O ateliê de Giacometti”. Também aclamado por Jean-Paul Sartre, foi considerado um artista representante do existencialismo.

Suas esculturas são peças de uma notável concepção que o faz ser visto como um artista que tinha um pensamento exclusivo entre as outras personalidades, seus contemporâneos da arte. São representações escultóricas longilíneas que permitem a ideia de espaço, de movimento, da matéria em ação, como se rompesse a lei da gravidade. Giacometti era tão rigoroso em sua visão que destruiu parte de sua obra para deixar o que considerava melhor e desbastava as figuras ao máximo para dar-lhes grandeza. Mas acreditou que não alcançou o seu ideal de arte.    

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Signos de Miró

                                                            Miró e sua obra

Joan Miró (1893–1983) é um daqueles artistas do século XX que se distinguiram por terem uma personalidade única e notada logo no início do seu percurso. Escolheu cedo o que deveria ser, contrariando a vontade do pai, que gostaria que o filho tivesse o mesmo caminho dele, como ourives próspero. O avô paterno, com mesmo nome do pintor, era um ferreiro. E, do lado materno, marceneiro. Herdeiro, então, pelas duas raízes, das tradições de habilidades manuais, que lhe davam, naturalmente, suporte para mergulhar na matéria ilimitada do poder da sua arte, que encantaria o mundo e permaneceria um dos ícones da história da cultura plástica universal.

Apesar de ter frequentado, em Barcelona, a Escola de Belas Artes — a mesma que anteriormente Picasso assombrou com talento precoce —, Miró tinha uma maneira de representar as coisas que as academias não poderiam lhe dar. Nas primeiras pinturas, já havia as marcas das futuras obras que iria realizar. Não lhe interessava a representação natural das coisas, ele buscava algo que estava, talvez, no subconsciente. Nesse período, a ligação passageira foi com o impressionismo, o expressionismo, o fauvismo e com uma ponta do cubismo, mas sempre de modo próprio. Considerava que a natureza estava dentro dele, deveria partir das manifestações internas. Além disso, o arquiteto Antoni Gaudí foi uma inspiração permanente para sua geração.  Uma das obras mais representativas desse período é “A quinta” (1921/1922), entre outras, como “Caminho de El Guel” (1917), “Autorretrato” (1919), “Jardim com um burro” (1918), “Retrato de E.C. Ricart” (1917), “A vereda, Ciurana” (1917).

Mas o fundamental encontro foi com o surrealismo, em Paris, na década de 1920, principalmente porque o artista conviveu com André Masson — os dois compartilhavam ateliês separados apenas por uma divisória —, que o apresentou aos poetas do movimento, como André Breton, Louis Aragon e Paul Éluard, e, posteriormente, ao ator Antonin Artaud, que o influenciou nas ideias. Todos eles impressionados com a obra do artista catalão, de baixa estatura, tímido, mas com um espírito de fogo criativo que penetrou em todas as linguagens: na pintura, na gravura, na cerâmica, na escultura... Um artista que ultrapassou os limites da imaginação com monumentais obras na Espanha, nos Estados Unidos da América, na França... Legado incontestável de um gênio.

domingo, 7 de junho de 2015

A fotógrafa

                                                               Roberta Meira Lins

O olhar da fotógrafa Roberta Meira Lins tem como base a tríplice força necessária que impulsiona o ato criador de um artista: a sensibilidade, a cultura e a inteligência. A sensibilidade fornece elementos para perceber o mundo de forma própria, transfigurando-o com as teclas, vamos dizer, musicais, que mostram as coisas sob vários aspectos. A cultura dá ao seu olhar a percepção do que pretende captar; possui informações que a fazem lembrar a história, os criadores de que tem conhecimento e, principalmente, as raízes da sua terra. Nesse quesito, a fotógrafa teve o privilégio de conviver, na infância e adolescência, com as obras da coleção do seu avô materno, Albino Gonçalves Fernandes — psiquiatra culto que mantinha amizade com Vicente do Rego Monteiro e foi um dos retratados pelo pintor —, que, em sua pinacoteca, tinha quadros de Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e de outros artistas plásticos internacionais... Além disso, a casa era frequentada por escritores e pensadores. A inteligência a deixa aguda para poder alcançar os objetivos da arte, naturalmente, os requintes da técnica, do mote a ser trabalhado e do seu processo de desdobramento. Elegeu a arte da fotografia como expressão e entende que essa linguagem é ponta de lança nas concepções contemporâneas. Nada se perde em seu percurso, tudo se concretiza e se transforma em obras que são produto da sensibilidade, da cultura e da inteligência.

A fotógrafa tem um currículo considerável de imagens que a consolida como uma das mais significativas artistas no âmbito da fotografia em Pernambuco. E em Paris, ainda este ano, participará de uma exposição coletiva de fotógrafos selecionados, numa das instalações do Museu do Louvre. Agora, escolheu um tema que lhe foi e está muito próximo: a praia de Porto de Galinhas. Conheceu esse recanto do litoral sul do Estado no tempo em que frequentava, com a sua família, a praia mais deserta e quase primitiva. Talvez nessas recentes fotografias tenha um pouco de autobiografia, a lembrança das coisas simples e verdadeiras que envolvem aquele paraíso notado e divulgado em todo o planeta. Faz questão de mostrar os pescadores em suas atividades diárias na pesca e na condução de jangadas com velas largas, brancas ou de várias cores, luminosas, num límpido mar e no céu expressivo em sol pleno e com nuvens tropicais. São fotografias que encantam e enriquecem o olhar e a memória do espectador.

terça-feira, 26 de maio de 2015

O pintor das máscaras




  

                                                           James Ensor

O simbolismo das máscaras é marcante e exerce uma atração nas multidões e nos indivíduos. São como um véu das verdadeiras faces. Usamo-las em várias circunstâncias da vida: na profissão, na política, na sociedade, na religião...  A todo o momento estamos prontos para pô-las como proteção e arte da sobrevivência. Com elas representamos uma felicidade imaginária e pública, com o espírito falsamente favorável aos semelhantes. Muitos praticaram crimes gigantescos contra a humanidade numa inocência mascarada. Todavia, nunca permitimos que nos avaliem como maus e hipócritas.Talvez os homens das cavernas fossem mais verdadeiros e coerentes.

Foi esse o mote que impulsionou o pensamento do pintor e gravador belga, James Ensor (1860-1949), na fase madura como criador, iniciada na pintura As máscaras escandalizadas (1883). No seu percurso inicial foi influenciado pelo Impressionismo francês, quanto às belas captações da luz genuína. Mas, depois partiu para representar os homens pelas máscaras de todas as formas como animais, palhaços, espectros, de uma maneira crítica e violenta, que lhe trouxe alguns prejuízos por ser tão veemente, mostrando rostos e corpos que espelham os apavorantes truques humanos do interior de suas almas e do caráter: um mundo transfigurado e perverso. Ensor expressava uma explosão de contendas contra a falsidade burguesa do seu tempo. Igualmente se autorretratava como Eu triste, Eu morto, Meu retrato esqueletizado, James Ensor crucificado pelos críticos. Cada vez mais se distanciava de uma estética solene e formal, criava obras que eram verdadeiros ataques à sociedade do final do século XIX, fato que o levou a ser expulso do grupo, nascido em Bruxelas, chamado Os XX. Uma das pinturas consideradas obras-primas do pintor tem o título O ingresso do Cristo em Bruxelas, que faz representar a entrada do Messias não na Jerusalém bíblica, mas na Bruxelas dos homens que o pintor julgava como os novos hipócritas e fariseus. Outra obra que dramatiza o horror e o fantasmagórico é a pintura Esqueletos que disputam um enforcado. Concebeu uma obra de plena liberdade de pensamento e foi considerado um partícipe decisivo do expressionismo e o surrealismo, consagrando-se como um dos pilares da arte moderna.   


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Embaixador de Picasso



Jaime Sabartés era escritor, poeta e jornalista; espanhol como Picasso, manteve com o artista uma relação de amizade de 1899 até 1968, ano em que faleceu. Os dois frequentavam o restaurante Quatro Gatos, na juventude, em Barcelona, onde vivenciaram intensa movimentação cultural, antes de Picasso retornar a Paris e permanecer, definitivamente, em 1904, após ter realizado uma exposição na Galeria Vollard, em 1901.
 
Sabartés foi retratado várias vezes pelo pintor, em pinturas e desenhos, a partir dos tempos juvenis. Essa aproximação se aprofundou devido às crises de angústias do artista — até mesmo com sua própria arte —, período da sua vida de constantes lutas conjugais e solidão. Picasso convidou, em 1939, o amigo, que tinha morado em Montevidéu e nos EUA, para voltar à Europa e acompanhá-lo nas atividades profissionais, morando com ele em Paris.
 
A partir daí, o escritor se torna um personagem silencioso, mas agudo, no universo picassiano, como um secretário particular ou eminência parda. Acompanhava-o em todos os momentos, principalmente à noite nos melhores e mais frequentados cafés e restaurantes. Todos que pretendiam visitar o ateliê teriam que passar pelo seu crivo. Os poderosos marchands europeus e estadunidenses —  ou qualquer outro profissional que viesse realizar um trabalho no estúdio, como fotógrafos, cineastas, críticos, editores — teriam que reverenciá-lo para alcançar o mestre da arte moderna do século XX. Era tudo o que Picasso precisava: um escudo sólido e culto para se proteger de todos os assédios.
 
Sabartés era um entusiasta da obra de Picasso e a defendia quando necessário. O escritor acompanhou seu trajeto nos primeiros passos em Barcelona, quando era influenciado pela obra de El Greco e pela vanguarda francesa, seguindo-o em todas as outras fases: azul, rosa, cubista, clássica... Segundo o marchand Kahnweiler, uma média de 800 telas cubistas foi vendida, juntando as de Braque, Derain e Vlaminck. E, se ele tivesse podido guardar durante quarenta anos essas obras e vendê-las uma a uma, a mesma quantidade, teria um lucro de muitos bilhões.
 
Quando se instalou no ateliê do pintor, já existia a pintura Guernica, o trabalho mais dramático e político de Picasso; e despontava a Segunda Guerra Mundial. O silencioso secretário foi importante para a vida e obra do artista, porque foi um apoio para serviços práticos e intelectuais em muitas decisões. Só uma coisa o incomodava: a sovinice do artista, Picasso raramente lhe pagava.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Carnaval e catarata

     
                                                                    BAJADO
                                                       


Fui surpreendido, numa consulta oftalmológica com o especialista Dr. Roberto Galvão Filho, pela necessidade de uma cirurgia para tratar a catarata, como é sabido, através de um implante intraocular de lentes, com o fim de corrigir a patologia — isso um pouco antes das festas de Dionísio (o deus grego, também reconhecido pelos romanos como Baco) presididas pelo Rei Momo: o nosso Carnaval, em que tudo é possível, mas sob a vigilância disciplinar de Apolo, o representante do Estado. Preferi realizar a cirurgia como meio de evocar a deusa grega da saúde Hígia, ou Salus, a romana. Contei com a ciência mitológica dessa divindade para que tudo desse certo.

Quando os médicos nos apontam uma cirurgia, vamos dizer compulsória, nos assustam. Mas a confiança é suprema nos homens da medicina que elegemos para nos salvar nas enfermidades. Sempre fui simpático a médicos e juízes. Explico melhor. Os médicos têm a paixão de curar seus pacientes, e os juízes, de fazer justiça — estes não utilizam retórica, dialéticas infindáveis, julgam com a possível sabedoria. E as aproximações que tive com esses profissionais foram bem-sucedidas, a começar pelo meu pai, que era magistrado e professor; atendia a todos que o procuravam, e vi, muitas vezes, receber pessoas humildes, correspondendo, de maneira discreta, elegante, às suas necessidades jurídicas como cidadãos. Tanto assim que, há anos, o homenagearam com o nome do fórum da cidade do Cabo de Santo Agostinho — Humberto da Costa Soares —, uma lembrança honrada e feliz.

Falo da Justiça também porque precisei da sua ação de bom-senso. O meu plano de saúde, em que há 24 anos sou assegurado, inicialmente negou o pagamento das lentes intraoculares, simplesmente porque dizia que o contrato não as cobria. Confesso que essa notícia me perturbou mais do que a de ter que fazer a cirurgia. Como não tenho dinheiro para pagar advogados, recorri às minhas próprias forças e fui à busca de uma solução. Procurei o Juizado Especial Cível e lá, realmente, encontrei pessoas fraternas que auxiliaram para que o documento de pedido de liminar alcançasse as mãos e a mente do juiz de quem não soube o nome — e consegui que o plano pagasse toda a cirurgia. Deixo este testemunho para que outras pessoas possam fazer o mesmo: essa via no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) está excelente para aqueles que pleiteiam justiça.          

terça-feira, 24 de março de 2015

Mercado de compadrio

                                                        Vicente do Rego Monteiro - 1924

As leis tradicionais que regem o comércio de arte não existem de maneira consolidada no Brasil. Com raras exceções de artistas importantes, reconhecidos pelos mercadores e críticos, principalmente os históricos, mortos: para estes, sim, existem a oferta e a procura de refinados colecionadores e marchands. Então, aqui, é preciso estar na história, naturalmente, e morto!, para constar no elevado mundo da arte. O resto é o negócio de compadrio, isto é, ser amigo de banqueiros que possam bancar preços altos em leilões e criar bolhas de valores de obras sem permanência, de políticos que facilitem os meios oficiais, de novos ricos, como mecenas contemporâneos — ou, no caso menor, em regiões como o Norte e o Nordeste, o interesse vem dos profissionais da classe média ou de médios e bem-sucedidos empresários —, para se firmar no trato da arte.

Na Europa e nos EUA, com as devidas reservas das deformações atuais de publicidade exageradas, o mercado venceu com as leis reais. Artistas que estiveram no nimbo do esquecimento estouraram na procura como preciosidades de ouro e diamantes. No século XIX e início do XX, várias personalidades artísticas não existiam para a época, mas, com o tempo, foram sendo reconhecidas. Hoje, são as maiores fortunas apresentadas nas leiloeiras Sotheby’s e Christie’s, termômetro em que se apresentam as obras mais caras do mundo.

Internacionalmente, quanto mais crise econômica, mais a arte desponta como uma das soluções de investimento para aqueles que têm dinheiro de sobra. Os homens do petróleo no Oriente Médio estão investindo bilhões de dólares em seus museus, talvez a futura meca da cultura. Recentemente, um investidor do Qatar pagou US$ 300 milhões por uma obra de Paul Gauguin, artista que morreu em plena miséria e nunca conheceu esse valor. No Brasil, já estão anunciando que um dos maiores leilões anuais está ameaçado pela crise nacional, prova de que o mercado não está consolidado; se o fosse, os milionários ou bilionários do País estariam investindo e multiplicando o seu capital. Pelo que demonstram, evadem-se do tal evento para não arriscarem as suas riquezas.

O mercado de arte, nos países desenvolvidos, sempre dará as cartas ao mundo, aos especialistas, aos colecionadores e ao público para, de alguma forma, a História registrar algo de real que sucessivamente fica nessa trama presente no percurso da humanidade.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Não matarás


                                                            Judite e Holoferne -  Caravaggio

A civilização ainda está na barbárie. A ciência aperfeiçoou as técnicas para eliminar o ser humano. Mata-se apenas apertando um botão, com uma precisão nunca vista na história nem no período das lanças e espadas. O homem atual é imbuído de questões filosóficas, religiosas e políticas de forma radical. Há múltiplas divisões do pensamento e, pelo que se apresenta hoje, nunca conciliáveis.     Acreditar em seu ponto de vista significa excluir o outro em suas verdades, e estas não podem ser compartilhadas por adversários. São únicas. Essa é a atitude dos que têm em si um fundamento irremovível. A flexibilidade é coisa para os fracos.

Diz-se que política e religião não se discutem; ora, não! É como se dissesse que, se tocar nesses assuntos, haverá conflitos sangrentos. Se assim fosse, não existiriam os vários caminhos na humanidade, que foram produtos de dissidências, de discussões. Agora, o que permanece no homem são os sentimentos primitivos. A história de Caim e Abel se repete a cada dia como dramas nos núcleos familiares e na sociedade; porque o assassinato de Abel é um simbolismo da inveja, da hipocrisia, da trama sórdida da vingança, da traição, do ódio, da brutalidade dos algozes e da fatalidade das vítimas. Nosso país apresenta índices absurdos de homicídios. Pelos números, parece que estamos em uma guerra civil. E os motivos são tão variáveis como os matizes das cores: creio que na base estão os graves problemas sociais; o Código Penal, como apontam os especialistas, desatualizado; e o sistema prisional, sem nenhuma estrutura para a ressocialização dos encarcerados.

Nós nos escandalizamos com os crimes que acontecem no mundo; é justo, mas nas ruas do País se espalham os crimes bárbaros, que ultrapassam a imaginação e tocam a sensibilidade. O cidadão não tem mais a segurança natural e confiante no Estado; pelo contrário, sente-se abandonado também nesse quesito. Está bem claro que não cumprimos ainda as leis ditadas a Moisés por Deus: todos os itens dos 10 mandamentos, estamos permanentemente infringindo-os, vale salientar, com perfeição. O Cristo lançou uma nova meta para a humanidade: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13.34). Apesar dos exemplos individuais e coletivos em muitos momentos da História, constatamos a distância de concretizar, no planeta, essa utopia!              

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

À luz vacilante

A História e seus estudiosos dizem que, se Da Vinci não houvesse empregado o seu tempo em várias pesquisas científicas, talvez tivesse uma produção de obras pictóricas em maior quantidade; na verdade, o artista florentino realizou um pouco mais de uma dúzia de obras-primas e outras inacabadas, que repercutem junto às suas investidas em vários âmbitos do conhecimento.
  
Conta-se que na sua época os pintores e escultores se interessavam pela ciência do corpo humano, como os médicos. Leonardo foi um deles, mas mergulhou com intensidade na pesquisa. Frequentava o Hospital Santa Maria Novella, em Florença, por manter excelentes relações com os monges que o administravam; lá, observava os pacientes que estavam com doenças incuráveis e aguardava o falecimento de algum deles para realizar autópsia investigativa da causa da morte, com entusiasmo. Um desses pacientes foi um velho que o artista procurou ouvir: o paciente lhe informou que tinha quase 100 anos, mas que não sentia dor nenhuma, apenas uma extrema fraqueza. No dia da morte desse homem, de forma tranquila, o artista encontrava-se presente. Logo em seguida, com uma serra muito fina em mãos, ele iniciou os trabalhos de dissecação do cadáver; encontrou nas veias do corpo calcificações em forma de pedras. Segundo biógrafos, o primeiro diagnóstico de arteriosclerose.



Da Vinci anota as experiências no Caderno de Anatomia – a ciência no seu tempo não fazia distinção com a fisiologia. Passa longas horas à noite, pacientemente, a dissecar corpos e avisa aos escritores que esses trabalhos só poderão ser acompanhados por desenhos, e não por palavras; a imagem, na sua visão, traria muito mais informações. Então, cada corte que realizava para descrever um órgão, músculos, ossos, veias, registrava em desenhos detalhados, que são considerados os estudos precursores de anatomia e fisiologia, adiantados para o século XV. Alertava também o mal-estar que o pesquisador poderia sentir nesses trabalhos pelo ambiente que proporcionava, com odores e cena macabra à luz vacilante das velas, e dizia que este é um dos ofícios mais difíceis de serem concretizados. Mas ele sabia que tinha um imenso trabalho a ser realizado e o fez de 1485 a 1513. Detalhou o esqueleto completo, o crânio, o cérebro, os músculos e seus movimentos, o coração, os órgãos genitais... Considerou, com esses longos estudos, o ser humano como o “primeiro animal entre os animais”.  

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sefie



Essa é a palavra mais conhecida e utilizada no planeta na atualidade. Mesmo as crianças já sabem que se refere à imagem da própria pessoa sozinha ou junto a outras, materializadas em fotografias e publicadas nas redes sociais, onde comungam caras e bocas; insinuando poder, inteligência, títulos, beleza, riqueza, amizades, capacidade falsa ou verdadeira de trabalho, felicidade, criatividade e pouquíssimo sofrimento; inclusive, da depressão e dos seus inibidores químicos não se falam. Mas com a presença intensa de álcool, geralmente bons uísques e vinhos. E os ambientes são os mais elevados, muitos do exterior, e poucos pobres nacionais, tais como restaurantes, ruas, praças, universidades, raramente livrarias, hospitais, círculos domésticos — quando também é contemplado o amor pelos animais de todas as espécies —, clubes, palácios, cerimônias variadas, igrejas, hotéis...  Bem, infinitos como o oceano da Internet, há lugares para os mais imprevistos selfies. Isso nos diverte, porque, se olharmos por um ângulo, vamos dizer freudiano, estamos tentando fazer autoanálise coletivamente.

Tudo isso não nos é estranho, a começar pela era das cavernas, em que realizávamos pinturas rupestres e éramos nós mesmos virtualmente retratados nas rochas, quando nos imaginávamos capturando os animais com dardos; assim, eram selfies em atividades, numa luta pela sobrevivência. A maioria dos pintores e escultores, principalmente a partir da Idade Média, realizou obras representando-se, ainda mais no Renascimento, em cenas históricas ou diretamente, como nos autorretratos de Da Vinci e de Rafael Sanzio. Na era moderna e contemporânea artistas se fizeram presentes em variados autorretratos. Van Gogh, Gauguin, Degas, Pissarro, Lautrec... Em seguida, Picasso, Matisse, Duchamp permitiram concretizar os selfies (autorretratos) em seu tempo. Lucian Freud e Balthus realizaram autorretratos que são leituras cruas de suas expressões. Como também Francis Bacon, na captação dos traços vigorosos do próprio rosto, em pinceladas cortantes e dramáticas. Muitos e importantes artistas analisaram sua própria face como uma das formas de autoconhecimento. Selfies sempre existiram através dos pintores e escultores em todas as épocas, mas, hoje, popularizaram-se em todo o planeta via redes sociais, como numa febre pandêmica.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Tempo veloz



A velocidade neste terceiro milênio é de uma intensidade tal que se diferencia de todas as eras anteriores e parece contradizer a natureza e as galáxias. Tudo é elaborado às pressas. Nos governos, nas instituições, nas empresas, nas famílias, nos relacionamentos amorosos, nas artes, na informática, na sociedade, enfim. As igrejas cristãs consideradas mercenárias estão com soluções bem práticas para captar mais rápido os recursos dos adeptos. Enquanto o universo se movimenta com um ritmo, que imaginamos harmonioso, cabendo a cada corpo celeste a ação determinada, nós, em nosso planeta, estamos num burburinho perturbador em constante desencontro com o reino da natureza e demonstramos que somos o animal predador por excelência ao inventarmos situações que produzem sangue e morte. Os animais irracionais só se defendem. O poder e o dinheiro mal direcionados — por exemplo, a fabricação e vendas de armas, o interesse desonesto por riquezas naturais, tráfico de drogas, etc. — impulsionam os acontecimentos sociais e políticos desastrosos no mundo. Haja vista a política do País nas ações de corrupção generalizada.

Estamos vivendo um tempo de fazer inveja ao “Manifesto Futurista”, editado e publicado no “Le Figaro”, por Filippo Marinetti, em 1909, que tinha como fundamento a velocidade, o desenvolvimento tecnológico e as máquinas e enaltecia que “um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”. Ora, se Marinetti e os seguidores alcançassem o que está acontecendo hoje no planeta, com a pressa característica e opressora sobre a sociedade, talvez preferissem a suposta paz coletiva dos mosteiros. O manifesto compartilhou uma modernidade nascente, que surgiu com a fúria natural desses movimentos e influenciou parte dos artistas, principalmente europeus; inclusive, no Brasil, Oswald de Andrade e Anita Malfatti foram contagiados por Marinetti e se tornaram precursores do futurismo tupiniquim, um dos impulsionadores da “Semana de Arte Moderna”, em 1922. Face ao que existe agora no âmbito da tecnologia, a leitura do texto do poeta, escritor e jornalista italiano soa como uma voz revolucionária específica da época; porque é constatado que a violência das máquinas segue no sentido inverso da arte e da reflexão. Talvez estejamos tentando encontrar um caminho que possa amenizar esses destroços da atualidade e criar um universo mais aprazível para vivermos em sentido horário e harmônico.