"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O poder onírico em Maria Carmen

Um dos pilares da obra de Maria Carmen é o desenho. Nele, iniciou o seu caminho como artista criadora com um universo próprio, único, que a fez percorrer uma espiral ascendente de realizações na pintura, na gravura, na escultura, na estamparia e na sua visão humana sobre as coisas e a vida. Tão surpreendentemente — como ela confessa, ao se sentir em estado de iluminação, quando dos primeiros passos nos desenhos — que não tinha consciência da importância das imagens que lhe saíam da mão, da magia encontrada na sua natureza, no seu castelo, nas suas moradas: animais partidos; corpos humanos; vegetais; mundos ínfimos; traços; pontos; ângulos; a noite; a luz; a explosão em lavas de um psiquismo que só esperava um nascimento; mapas não decifrados em palavras, mas para o prazer do olhar na teia de puro grafismo — o encontro do seu ser, sem máscaras, com uma verdade que não poderia ser negada.

Só os mais próximos, aqueles que têm um olhar límpido e crítico, despertaram-na da escrita automática, mostrando-lhe o valor daqueles desenhos realizados: “O bico da pena saía da sua mão como uma ave desesperada, ora navalha, ora facão, teias e ranhuras, o linear e as massas de claro-escuro, densidade às vezes indevassável e que não perdia a finura, copas que se abrem em transparências de fios de seda — um concerto para violino e orquestra —, uma inesgotável germinação de arabescos e seres surpreendentes, infernos que se multiplicam e que não poderiam ser forjados: Maria Carmen trazia a marca de uma autenticidade que talvez àquela época a ela própria escapasse” — como diria José Cláudio, na apresentação, em 1962, da exposição inaugural da artista, através do Movimento de Cultura Popular, na Galeria de Arte do Recife, pertencente ao Movimento.  E, nesse mesmo ano, recebe o Primeiro Prêmio de Desenho e Escultura, no Museu do Estado de Pernambuco. José Cláudio foi um dos primeiros a divulgar o trabalho de Maria Carmen em Pernambuco; posteriormente, em São Paulo, apresentou-lhe os amigos pontas-de-lança, como o desenhista, gravador, escritor e jornalista Arnaldo Pedroso d’Horta. Na mesma mostra, estavam as esculturas, fruto dos cursos orientados pelo escultor Humberto Cozzo, no final da década de 1950, no Rio de Janeiro.

Relacionar os desenhos e todo o seu percurso artístico a movimentos, estilos, escolas internacionais ou brasileiras é um trabalho que se distancia da realidade da artista. A similitude identificada é com o expressionismo — e alguns especialistas fazem menção ao surrealismo, pelo fantástico das imagens elaboradas em sua obra. Mas diríamos que Maria Carmen possui o seu expressionismo na maneira de ver e concretizar as coisas e os seres no desenho, na gravura, na pintura, na escultura: um expressionismo natural. É como um Vincent van Gogh, que, mesmo influenciado pelo impressionismo, querendo realizar obras impressionistas, não conseguia a essência daquele movimento, mas ser ele próprio, vangoghianamente, em pinceladas. Como Maria Carmen nos diz: “Só fui ter conhecimento dos movimentos artísticos e, especificamente, do expressionismo, depois da realização dos trabalhos; aí resolvi ler e visitar os grandes museus onde encontrava aquelas obras sobre as quais comentavam o parentesco com os meus desenhos e as minhas pinturas. Fiquei curiosa quando começavam a lembrar Chagall, Van Gogh, o expressionismo, e, alguns, o surrealismo — então, fui confirmar”.

Ariano Suassuna, na época da segunda exposição individual dos desenhos da artista, realizada no Masp, organizada por Pietro Maria Bardi, em 1964, relata sua impressão: “Os desenhos de Maria Carmen causam-me a sensação de que foram retirados — como acontece, aliás, com toda obra de arte verdadeira — de sua carne, de seu sangue, de suas entranhas. Lembro-me perfeitamente da grande impressão que me causaram, quando vi, pela primeira vez, aquelas estranhas formas que enchiam papéis enormes e que, de longe, pareciam abstrações terrificantes”. E o crítico francês Edouard Jaguer esclarece sobre o automatismo da sua escrita gráfica: “A mão de Maria Carmem, entretanto, diferente da dos médiuns, guia o sonho até nas suas ramificações pelo menos tanto quanto por ele se deixa guiar”.

A partir das exposições individuais, lança-se a intensificar os estudos contínuos no desenho. Alimentava-se da experiência em cada realização e encontrava os caminhos inesperados, uma força da natureza que a impulsionava, apresentando uma geometria circular, que alguns identificaram como “mandalas”, termo escolhido por Thermira Brito, ou “a loucura organizada”, no conceito de Adão Pinheiro, ou “magiado circulares”, na visão de João Câmara, e que Maria Carmem os intitulou simplesmente “redondos”.  É preciso ressaltar que o desenho permanece — mesmo quando constrói sua obra em outras técnicas e linguagens — fazendo parte, em separado, de sua produção. Neste ano, já foram realizados vários desenhos que lembram a escrita dos primeiros.

São Paulo foi a cidade que lhe ofereceu guarida, onde encontrou admiradores fiéis que lhe deram sustentação para toda uma realização nos 50 anos como artista. Excelentes admiradores, vale salientar. Intelectuais, artistas, marchands, jornalistas, críticos. A começar por Bardi, o diretor e fundador do Museu de Arte de São Paulo, que, entusiasmado pelos desenhos, pede-lhe para trabalhar com ele, no Museu, possibilitando-lhe um ateliê, e, dois anos após, organiza-lhe a exposição no Masp, consagrando-lhe no centro das atenções artísticas. À época, Maria Carmen publica os desenhos no jornal O Estado de S. Paulo, numa seção diária, atraindo o olhar mais exigente da metrópole. Um momento rico em seu percurso ao encontrar as afinidades e o apoio. O crítico Walter Zanini, acompanhando as publicações, interessa-se em conhecer a autora dos desenhos e faz-lhe a proposta de participar de uma exposição coletiva que circularia o mundo, do Grupo Austral do Movimento Internacional FHASES, inicialmente realizada no Museu de Arte Contemporânea da USP, importantíssima mostra que marcaria a história cultural da cidade.

O nascimento da pintura e da cor surgiu dos seus trabalhos de padronagem para estamparia — em fábricas de tecidos —, como desenhista e colorista, na companhia do poeta Orley Mesquita, em Pernambuco. Foi essa experiência (anteriormente ela realizava pintura direta no tecido para confecção de vestidos), com as misturas das cores para uma boa padronagem, que lhe deu a intimidade com as nuanças, os contrastes, os contornos, a composição plástica modelada. A partir daí acrescenta ao seu olhar, impondo ao desenho — tão familiar e obsessivo — outro fator que seria determinante como elemento de expressão: a cor. Mais uma vez aí a presença da ligeira similitude com o expressionismo, porque prossegue o desenho com o acréscimo das vibrações da luz e da cor e as pinceladas rápidas que brotam da sua natural concepção, percorrendo toda a superfície do suporte num só fôlego. “Nos meus trabalhos de pintura que realizei nesse período, eu vejo, hoje — não sei se os outros percebiam —, os desenhos e as esculturas e fiz questão que aparecessem com a força das cores e os reflexos dos volumes”, lembra Maria Carmen. Maria Isabel Branco Ribeiro testemunha o mergulho da artista na pintura: “[Maria Carmen] começou a pintar em 1972, e o sentido da cor em sua obra está relacionado ao trabalho que desenvolveu criando padrões para a indústria têxtil. A pincelada incisiva e a manutenção da linha de contorno são sobrevivências do desenho em sua pintura, que registra aspectos do cotidiano, da flora e da paisagem do Agreste.”

A pintura foi também o seu veículo libertador. A coragem com que penetrou nos mistérios pictóricos surpreendeu a todos. Maria Carmen encontrou na técnica do óleo — e, depois, da tinta acrílica — um veio natural, dando-lhe uma nova perspectiva. São frutos, nus, paisagens, partes da natureza, cabeças, atos de amor, flores, santos. Sempre a pincelada como um selo de identificação, uma escrita que ninguém lhe pode negar. Apenas num pedaço da pintura podemos reconhecer a autoria. Os olhos amendoados das cabeças, a quebra das regras anatômicas das figuras, os frutos feitos como corpos sensuais, as flores como sexos e a força que sai de uma luta entre pinceladas: nada se revela fácil, e ela acredita que dói, no ato criador, uma dor que liberta a luz e que faz a artista herdeira de uma tradição que vem desde as pinturas rupestres, da necessidade de a humanidade deixar o seu sangue impresso na criação. Renato Carneiro Campos, o amigo e extraordinário cronista que animava a vida cultural do Recife, disse sobre sua pintura: “Florais, santos, cópulas, nus, naturezas-mortas, estranhas cabeças judaicas, ela vai pintando, errando, acertando, dando a impressão, no conjunto, pelo menos a mim, de que se trata, sem dúvida nenhuma, de uma das maiores artistas que este país já possuiu”.

Três cidades foram importantes para a consolidação da obra de Maria Carmen: Recife, São Paulo e Olinda. Apesar de ter usufruído, no Rio de Janeiro, da convivência com outros artistas e, principalmente, das aulas de escultura — que lhe foram úteis para a modelagem e o volume, ainda lembrados na pintura, a exemplo do desenho que está presente em maior ênfase — com o escultor Humberto Cozzo e ter realizado exposições individuais em galerias importantes, foi nas outras cidades mencionadas que o seu trabalho encontrou um prolongamento de sucessivos fatos que deram a base, o lance e a estabilidade na sua vida como artista.
São Paulo deu-lhe a expansão e a solidez crítica, e o Recife, o encontro e início de um conhecimento construtivo com uma geração de artistas de primeiríssimo time que sustenta, até hoje, em valor, um produto inigualável e difícil de retornar com o mesmo entrelaçamento de trabalho e idealismo. Esses artistas, nos seus ateliês coletivos, compartilhavam idéias e concepções, reuniam-se em encontros. Fizeram história, a exemplo da criação do Atelier Coletivo, na década de 1950, liderado por Abelardo da Hora, e do Movimento de Cultura Popular. Em sua residência, na Rua das Crioulas, reunia-se a nata. Escritores, poetas, desenhistas, pintores, críticos e músicos. Uma verdadeira embaixada para os críticos que vinham a Pernambuco. Como também foi no ateliê de José Cláudio, com as famosas caranguejadas oferecidas aos amigos, recheadas de humor e música. E, sempre aos domingos, nos anos 1960, no Engenho São Francisco, na casa de Francisco Brennand.

Olinda, cidade que recebeu várias gerações de artistas, foi o contato e o prolongamento da convivência, através do Atelier +10, na Rua do Amparo, 164, com Vicente do Rego Monteiro, Anchises Azevedo, Jorge Tavares, Liêdo Maranhão, Montez Magno, Wellington Virgolino, João Câmara e Vera Bastos, sua filha. A cidade abriu-lhe a vegetação para o trabalho. As flores, os frutos, os troncos, o azul e o verde da paisagem deram-lhe o substrato para penetrar na pintura com prazer e intensa cor. E, até hoje, é lá que tem instalado o seu ateliê, onde exerce o ofício diariamente, atendendo ao universo que sempre esteve em turbulência no seu mundo interior e, no dizer de José  Cláudio, “[sendo] animista, acredita, como um bruxo, numa selva espiritual que a liga — e a todos nós — aos bichos, às pedras, aos espaços, aos seres vegetais, e a sua pintura é uma espécie de umbanda por meio da qual chama a divindade das coisas…”.