"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Raízes da arte



A vida é enraizada em conflitos, por isso existem a arte e o artista, para transcendê-la ou adentrá-la mais densamente. A visão que tenho sobre o mundo contemporâneo é de como se estivéssemos imersos em ondas que se quebram sobre nós, num ritmo permanente. A dor é espalhada no planeta, e bilhões de indivíduos atingem o cume da miséria, da fome e de todas as doenças possíveis, que os levam a condições sub-humanas; ainda enfrentam fundamentalismos religiosos, às vezes, cruéis, guerras étnicas e a violência generalizada. A cada pessoa, uma história concretizada em percursos impregnados de imprevistos raramente bons e invariavelmente maus.

Os artistas Francis Bacon e Lucian Freud representaram a angústia, a carne humana, num simbolismo da prisão em que a humanidade se encontra. Como na obra O Grito, de Edvard Munch, que é a representação da agonia, principalmente do próprio pintor, que, ao realizar essa obra, estava em desespero. Van Gogh percebeu na pele toda a força da vida, da natureza, e extraiu o ouro dos astros solares, das árvores contorcidas, das igrejas, como se estivessem em pleno terremoto. O chão tremeu em pinceladas expressas através de uma das almas mais sensíveis do século XIX. Picasso representou a injustiça e a perversidade dos bombardeios em Guernica, em 1937, realizando uma das suas obras-primas — símbolo da nossa era, em que impera a amargura coletiva. Goya, ao observar a guerra na Espanha, deixou um patrimônio que fala do homem e seus instintos na série de gravuras Os Desastres da Guerra.

É essencial lembrar não só a história dos grandes artistas que deixaram a sua marca e seus testemunhos sobre a vida, com seus percalços, mas também lembrar a história das pessoas que crescem, vivem em família e lutam pela subsistência. Aquela dos homens comuns. Que são pegos nas ondas que mencionei e que são açoitados por essas investidas até deixá-los sem forças. Que sonham um mundo melhor, mais justo, e recebem o troco da péssima política dos poderosos, corruptos e hipócritas, como se para eles, não valesse a luta que continuamente desempenham. Que são abandonados pelo Estado em todas as assistências. E só encontram a desilusão. Combalidos, procuram o consolo nas religiões e são explorados por guias cínicos e ambiciosos que lhes tiram o dinheiro, valendo-se do nome de Deus em vão. Esses cidadãos vilipendiados habitam no Brasil.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Arte e liberdade

                                                                               Stalin

A arte de Picasso, apesar dos seus laços com o comunismo, principalmente o soviético, não seguia os preceitos estéticos do realismo socialista, adotados pelo partido. Conta-se que na conferência de Wroclaw, na Polônia, em 1948, o artista foi atacado pelo Sindicato dos Escritores Soviéticos por causa do seu estilo, considerado decadente para o consumo da massa comunista e para ser reproduzido em jornais do sistema. Mesmo assim, Picasso negou-se a fazer concessões à ortodoxia comunista. Françoise Gilot, a sexta das suas oito mulheres, dizia que a Rússia odiava o seu trabalho, mas amava a sua política; e os EUA amavam a sua arte e odiavam a sua política. Um retrato de Stalin desenhado pelo artista e reproduzido em Les Lettres Françaises, logo após a morte do ditador soviético, causou um mal-estar no partido, porque o representou de forma sintética; o pintor dizia que era odiado por todos os lados, talvez por ser um criador, e encarava esse embate como uma alavanca para expandir a sua obra.

A Revolução Russa de 1917, nos primeiros momentos, entusiasmou os artistas que a apoiaram oferecendo ideias para estabelecer um movimento que desse uma nova dimensão à cultura. Os artistas bolcheviques estavam dispostos a criar com liberdade. Mas logo vieram os obstáculos. Malevich fez um monumento em homenagem a Lenin: reuniu peças agrícolas e industriais e máquinas. No topo da pilha, pretendeu pôr a imagem de Lenin em forma de um cubo. Mas aí cobraram o realismo na representação do líder. Como é que o povo iria entender que o cubo era Lenin? E começaram a determinar aos artistas uma propaganda mais direta, como no realismo soviético, para o povo entender a arte. Logo em seguida à morte de Lenin, iniciaram-se as perseguições, prisões, os assassinatos e a consequente fuga dos artistas para outros países europeus. Um deles que viveu esse movimento foi Marc Chagall, que emigrou para Paris.

Os estados totalitários no século XX foram desfavoráveis à arte e aos artistas. O nazismo é um dos fortes exemplos. Como no realismo soviético, produziu-se um horror de esculturas e pinturas, sem a forma e o conteúdo das verdadeiras obras de arte. Com ódio à arte moderna, por avaliá-la como judaica e comunista, o nazismo realizou uma exposição, em Munique, em 1937, intencionalmente caótica e a intitulou de Arte Degenerada, incluindo obras de artistas como Mondrian, Otto Mueller, Kandinsky, Max Ernst, Lasar Segall, Klee, Otto Dix e muitos outros.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Memória pernambucana



                                                                          José dos Santos

O livro “Fotografias da Memória Pernambucana – Coleção José dos Santos” transportou-me para uma reminiscência da cultura católica nativa que recebi na infância; fez-me relembrar de rituais e celebrações, imagens, crucifixos, santuários, adornos das igrejas barrocas de Olinda e do Recife, e do Convento de Santo Antônio — localizado no Ipojuca, na Região Metropolitana do Recife. Acompanhado por meu pai, natural daquele município, ex-seminarista, era levado para venerar a imagem do Santo Cristo, uma tradição que recebeu dos seus ancestrais. Da religião romana, ficou a visão cultural; a admiração pelos santos e, atualmente, pelo Papa Francisco; a beleza plástica das obras-primas que constam no Vaticano e em igrejas do mundo; a grandiosidade histórica; e o tradicional batismo firmado, do qual não dou conta.

Voltando ao livro, o que me abismou mesmo foi a capacidade de José dos Santos — conhecido também como Zé Santeiro — de reunir durante toda a vida uma coleção notável, principalmente de imagens e símbolos católicos, também de peças raras em cristais, pratarias, miniaturas, fragmentos, peças de engenho, obras de artistas populares e outras, que provam um olhar agudo do colecionador, consolidado com a experiência. Nascido na cidade do Cabo, logo cedo aprendeu, nas oficinas especializadas em restauração e conservação de imagens, no Recife, a penetrar nas leis que regem esse campo do conhecimento. Tornou-se um dos maiores antiquários do País, pesquisado por gente especialista, como Pietro Maria Bardi, que foi um dos muitos que constataram o valor da sua coleção.

Grande parte do conjunto é um registro da nossa história, da nossa cultura, da maneira como procurávamos eternizar a fé predominante. Homens e mulheres escravos, oprimidos, apelaram às mesmas imagens católicas que a aristocracia canavieira reverenciava para amenizar os seus sofrimentos — ou simplesmente porque eram coagidos. Acompanhavam as senhoras de engenhos nas rezas ante os oratórios das casas-grandes, com imagens das Virgens Marias, dos Cristos crucificados e dos santos; muitas dessas peças estão na rica coleção de José dos Santos. Dentre tantas fundamentais, existe uma que me chamou a atenção: um “tronco-prato”, de pedra, com forma cilíndrica, para prender até três escravos, com correntes de ferro que os aprisionavam, entre as quais se alimentavam, através da abertura acima, onde se colocava a ração. Creio ser essencial a preservação, pelo Estado de Pernambuco, para que esse patrimônio renasça como um museu cultural e sacro.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Universos criadores

                                                         Lucian Freud, autorretrato

A mente do artista está ligada às coisas e aos seres; dependendo da abrangência individual, será mais intensa ou menos. É nessa sintonia que se dá o tom do pensamento criador. Torna-se uma leitura pessoal e diferenciada no mundo. Dessa forma, são construídos os vários conceitos na história da arte. Os exemplos são inúmeros de criadores que emitiram uma visão própria e permitiram uma rede complexa sobre a arte. Eis uma pequena amostra.

Cézanne dizia de sua percepção: “O que tento traduzir-vos é mais misterioso, entranha-se nas próprias raízes do ser, na fonte impalpável das sensações...”. Para a época, essa interpretação era abstrata, mas antecipou o modernismo do século XX, com outra famosa visão que influenciou diretamente o cubismo: “Permita-me repetir aqui o que eu lhe dizia: abordar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de modo que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central...”. Matisse, um dos que refletia sobre a arte, disse: “Os meios mais simples são aqueles que melhor permitem ao pintor exprimir-se...”. Por isso, os traços magníficos das figuras que criava, com linhas ondulantes que viajavam no espaço do suporte numa interpretação sintética da obra; o que o levou a dizer em outra oportunidade: “O meu desenho a traço é a tradução direta e mais pura da minha emoção...”. Dentre tantas declarações sobre o tema, Picasso nos diz: “A arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade”. Ecoa também do século XV a voz de Da Vinci: “O pintor não é digno de louvor se não for universal”, antecipando um pensamento contemporâneo sobre o papel do artista no seu tempo.

Lucian Freud, que, apesar de nascido na Alemanha (falecido em 2011, em Londres), é considerado um dos artistas britânicos de maior repercussão na Europa e nos EUA, expressou: “Eu quero que a pintura seja carne. Para mim o quadro é a pessoa”. Esses modelos eram as pessoas de sua família ou amigos que frequentavam o seu ateliê. A pintura que realizava era trabalhada com pastas espessas de tinta e elaborada em tempos longos, às vezes, levando até anos para finalizá-la. Por sua vez, Francisco Brennand menciona Balthus em um fragmento do seu diário, publicado na “Revista Continente”, em junho de 2001, no qual afirma tê-lo conhecido jovem em 1946, quando o pintor surrealista De Chirico dizia que Balthus pretendia fazer um surrealismo à maneira de Courbet, abordagem que alguns críticos não aceitaram. A pintura de Balthus reflete um artista sábio com exímio conhecimento pictórico a ponto de induzi-lo a uma constante reflexão, representando, além de paisagem e interiores, meninas numa pura sensualidade em composições clássicas. De sua parte, o mestre Francisco Brennand disse, numa rara entrevista sobre a essência de seu próprio universo criador: “Sou um escultor que tem o coração de pintor”.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A matéria da luz



Quando a fotografia surgiu no século XVIII em suas primeiras experiências, sendo depois aperfeiçoada no século XIX para captar a luz e materializar melhor a imagem do mundo e das pessoas, alguns críticos consideraram que a pintura do retrato tinha cumprido a sua missão. Mas, essa nova técnica foi se aliando à pintura e trocando interesses. Hoje, a fotografia é uma das artes independentes com dimensões admiráveis, e o artista fotógrafo é considerado um criador de ponta. Não é por menos que a primeira exposição impressionista, em 1874, foi no estúdio de um dos fotógrafos de proeminência em Paris, amigo dos artistas, que ofereceu o espaço para que fosse realizada a mostra; isso porque os impressionistas, nesse período, não eram aceitos nem nos salões oficiais de arte nem nas galerias. O fotógrafo era Félix Nadar, que também exercia a função de caricaturista em jornais e foi fundador de alguns veículos de imprensa.

Nadar fez o registro fotográfico de eminentes personagens contemporâneos, a exemplo de Baudelaire, Gustave Courbet, Delacroix, Corot, Jules Verne... E o próprio autorretrato. Muitos pintores começaram a utilizar a fotografia como dado de imagem para realizar as obras. Cézanne era um deles, embora não conseguisse, por timidez, pintar nus ao natural; precisava de fotos para pintá-los. Toulouse-Lautrec se baseou em diversas imagens fotográficas. Degas era um amante da recente tecnologia e pintou cenas via essa fonte. Na modernidade do século XX, para Picasso e outros, a fotografia foi substrato em algumas obras.

Roberta Meira Lins elegeu a fotografia como uma arte sua, que envolve olhar, técnica e rigor. A temática são pessoas, cenas sociais, a arquitetura, a paisagem... Às vezes cria detalhes das coisas numa captação de luz adequada. Faz o seu trabalho com verve, mas depois de analisar todos os resultados sob o controle do olhar e do cérebro. Procura expressar o belo que encontra na natureza e explode no inconsciente. Se for uma marinha, ela dá voz e vida às ondas do mar para que dialoguem com as cores celestes das nuvens ensolaradas e voluptuosas e com as faixas arenosas. Reúne esses elementos e cria o mundo que lhe pertence. A fotógrafa armazenou durante a vida uma cultura do olhar: nasceu no meio de obras, de artistas, de escritores; a estética e a superfície pictórica não lhe são estranhas, não precisou “ir atrás” para compreender as artes; cresceu vendo obras de Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres... Só precisou escolher a maneira de dizer sua arte. E diz a matéria da luz com os poderes dionisíaco e apolíneo.

domingo, 12 de outubro de 2014

Corot


                                                                              Corot

O pintor francês Jean-Batiste Camille Corot (1796–1875), mais conhecido simplesmente como “Corot”, por assim assinar suas obras, é considerado um dos paisagistas mais representativos da pintura europeia da primeira metade do século XIX. Inicialmente, teve uma formação clássica, acadêmica, mas logo se libertou após a sua viagem à Itália. Criou uma maneira de interpretar a paisagem com linguagem única, ao pintá-la ao natural, captando uma realidade luminosa e delicada que antecedeu o movimento impressionista e influenciou alguns de seus artistas, como Pissarro, Sisley, Renoir... É considerado um dos precursores do estudo da cor e da luz, fundamento daqueles pintores que se reuniam por essa ideia.

Seu pai, um comerciante abastado que não tolerava e não acreditava no seu talento, porque queria vê-lo nas atividades do comércio, dizia-lhe que era inútil a pintura por não produzir dinheiro suficiente. Corot passou bastante tempo com dificuldades, sem conseguir ser aceito no mercado e, principalmente, no salão oficial parisiense, que, na época, era o teste essencial de todo pintor para ser acolhido pela comunidade artística, crítica e pelos mercadores de arte. Mas, tardiamente, conseguiu alcançar o sucesso de mercado e crítica. Mesmo cercado por invejosos, a demanda era excelente para a venda de suas obras, fato que, infelizmente, não foi de conhecimento do seu pai. “Para mim é maravilhoso ouvir ser chamado, agora, de ‘um homem eminente’. Que lástima que não tenham dito antes ao meu pai, que odiava tanto a minha pintura e que a julgava inútil porque não se vendia”, disse a um dos seus contemporâneos.

Apesar de rigoroso com a sua obra, conta-se que Corot era de uma generosidade constante com todos aqueles que conviviam com ele. Tinha no bolso um exemplar da “Imitação de Cristo” e lia-o todas as noites. Dizia que esse livro lhe ensinou que nenhum homem deveria se orgulhar de seus talentos. O artista era incapaz de uma atitude que prejudicasse, de alguma forma, os semelhantes. Certa vez, um cidadão foi mostrar uma obra com a sua assinatura e queria saber se o quadro era autêntico. Corot reconheceu que era falso. O comprador se enfureceu com o comerciante que lhe vendeu e avisou que iria tomar as providências. O pintor disse-lhe que não fizesse isso porque poderia prejudicar a vida do vendedor e de seus filhos. Então, pediu-lhe a obra, levou-a ao cavalete, aplicou as pinceladas definitivas e afirmou: “Pronto, agora você tem um Corot”.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Judas de Da Vinci

                                                              Judas - Leonardo da Vinci

Sabe-se que Leonardo da Vinci tinha um temperamento, como pintor, que o induzia a trabalhar com vagarosidade, na concepção, nos desenhos preparatórios, nas pinceladas, com camadas de tinta inferiores finas, a ponto de algumas vezes abandonar obras que permaneceram inacabadas. A pintura a óleo ― uma novidade no século XV, atribuída ao flamengo Jan van Eyck (c. 1390–1441) ― era a mais adaptada para o processo de elaboração pictórica do artista. E às vezes utilizava uma técnica mista, com têmpera. Quando partiu de Florença ― sua terra natal, que lhe deu a formação necessária no ateliê de Andrea del Verrocchio para se tornar um mestre ―, foi para Milão e se aproximou do duque Ludovico Sforza, o Mouro, o senhor da capital da Lombardia. Ofereceu-lhe, numa carta de apresentação, primeiro as suas habilidades inventivas na engenharia, na arquitetura e nos projetos de armas bélicas e, por último, na música, na pintura e na escultura. Apesar de Ludovico se interessar mais por outras engenhosidades, como as militares, e ainda dar-lhe tarefas variadas, fez-lhe uma encomenda para ser realizado o mural A Última Ceia, no refeitório da Santa Maria delle Grazie, em Milão, igreja e convento dos dominicanos. A pintura, a têmpera, ficaria na parte central, mais alta e iluminada do ambiente.


Leonardo faz as anotações, por escrito, do drama da Ceia, em que Cristo diz: “um dentre vós me trairá...” (Mt 26.21). Concebeu o estudo de cada apóstolo, de como seriam representados na reação à premonição do Mestre. Como se movimentariam em conjunto, ressaltando suas particularidades psicológicas. Para melhor retratar os apóstolos, desenhava pessoas que pudessem representá-los. Há alguns testemunhos de que, quando trabalhava na obra, o mergulho era tanto que se esquecia de se alimentar. Deixou o Cristo e o Judas por último. E nessa fase ia diariamente observar o mural para estudar como decidiria pintá-los. O prior dos dominicanos foi se queixar a Ludovico que o artista só estava contemplando a obra e não trabalhava, pedindo-lhe que falasse com o pintor para que a finalizasse. Da Vinci foi chamado à presença do duque de Milão e do prior. Leonardo explicou que estava num momento muito delicado, porque procurava modelos que pudessem representar os dois personagens, mas que, ali, já tinha encontrado quem iria representar Judas: o próprio prior. O duque deu gargalhadas.

domingo, 14 de setembro de 2014

Com José Cláudio

                                                                                  José Cláudio

Vi aquele senhor, sentado num banco, com a voz forte e jeito de quem gostava da vida, apoiando as mãos sobre os joelhos, a observar um quadro de José Cláudio — cena testemunhada em seu ateliê —, a dizer, virando-se para mim: “Hein! Que maravilha! Hein!”. Eu, um interlocutor ali por casualidade, jovem, que visitava o pintor sem pedir licença, e era hábito essa audácia, concedida pelo artista, por morarmos perto. A pintura era um nu feminino. O aficionado tratava-se de Renato Carneiro Campos. Foi a primeira vez e última que o vi. Só o acompanhava através das suas crônicas, sempre aos domingos, que ficou posteriormente como título do livro — capa ilustrada por José Cláudio —, publicado pela Editora Massangana - Fundaj. Sobre Renato Campos, também o escritor Sérgio Moacir de Albuquerque falava-me muito; eram grandes amigos, e tive o prazer de ouvir bem-humorados casos. Sérgio era outro vizinho na praia de Rio Doce, onde mantenho o atual ateliê, e já casado com a poetisa Lucila Nogueira.

Nessa época em que eu frequentava aulas de direito e trabalhava numa empresa federal de processamento de dados, com passagem breve pela Escola de Belas Artes na intenção apenas de me integrar às artes, um ateliê de um artista, principalmente da dimensão de José Cláudio, era um verdadeiro campo de fortalecimento. O meu primeiro interesse pela arte foi através de leituras sobre movimentos e criadores. Praticava desenho e pintura como autodidata. As visitas ao seu ateliê foram marcadas por momentos que ficaram anotados na memória. Gostava de ver os materiais, as tintas, os pincéis, os pedaços improvisados como paletas... As esculturas em madeira de jaqueira. E sempre a nutritiva conversa. Tudo respirava uma nova visão. O artista era paciente com o jovem frequentador do seu ateliê. E expressava atitudes de fraternidade e compreensão. Certa vez, percebi que tinha novas pinturas e comecei a arrumá-las na sala para observá-las, comentando entusiasmado o que estava vendo — e José Cláudio calado, só olhando por cima dos óculos. Foi mais de uma dezena de obras. Passei um tempo apreciando-as. Então, disse-me: “Plínio, vem cá, toma aqui esses tubos de tinta, que não vou usar, e você poderá aproveitar”. A tinta era maravilhosa. E ansioso para experimentá-la, quando ia saindo, lembrou: “Não esqueceu nada?... Devolva os quadros ao mesmo lugar, meu caro”.  

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O código das formas



Eudes Mota tem um olhar atento e o cérebro em atividade contínua. Alimenta, assim, o seu trabalho com as informações que foi recebendo em sua trajetória. Percebe o mundo através da matéria que trata. É um artista-artesão. À semelhança dos renascentistas, que tinham a habilidade de conceber obras de arte na concepção e no domínio das técnicas: um criador.

Conheci a maneira como o artista maneja os seus instrumentos, que beira a um ritual de um pesquisador em sua lida diária. Um trabalhador que persegue a ideia com força e só descansa quando conclui a obra. Meticuloso, olha bem perto o objeto de criação como se quisesse entrar nos mínimos detalhes, entranhar-se nos meandros do trabalho, da superfície à profunda e última parte. Para o artista, a preparação dos utensílios é tão importante quanto a obra. Com as telas, as madeiras, os papéis, as tintas, os pincéis ou outros materiais, tem intimidade e arte ao manuseá-los.

O artista, quando jovem, conheceu um dos pintores brasileiros de maior dimensão: Vicente do Rego Monteiro. Após passar — por incentivo dos pais — pela Escolinha de Arte do Recife, que lhe deu os primeiros impulsos na arte, o contato com Vicente foi promissor. Essa oportunidade abriu, para ele, os movimentos e artistas da modernidade do século XX. Como Rego Monteiro era um artista múltiplo — dentro da arte penetrou em várias linguagens —, atingiu Eudes dando-lhe uma nova visão. Creio que o interesse inicial pela concepção geométrica partiu desse contato. Os volumes, os sombreados e as luminosidades, que lembram o Cubismo e que estavam na pintura de Monteiro, influenciaram o artista. Nessa fase, permaneceu figurativo, mas com marcas de elaborações geométricas, nas composições e nos detalhes. Em segundo tempo, o mestre Montez Magno, naturalmente, fez-lhe notar a arte abstrata geométrica com mais amplitude. A semente estava plantada para o que viria brotar como uma árvore com frutos do seu pensamento e de sua arte. 

Eudes mergulhou na arte contemporânea e encontrou o seu real universo, com todos os instrumentos de um artista preparado no ofício e na concepção, e se tornou um dos poucos artistas de destaque desse veio da arte atual, porque de suas mãos nasce, é materializado e permanece consistente o objeto da arte. O foco das intenções que o move é concretizar o pensamento. Nutre-se com os pilares da criação do seu tempo e segue consolidando o legado da sua obra...    

domingo, 10 de agosto de 2014

Renoir e Cézanne

                                                                          Renoir
                   
                                                                             Cézanne

Como se sabe, Cézanne e Renoir foram pintores provenientes do impressionismo, que, após a fase de amadurecimento do pensamento de cada um deles, criaram seus próprios caminhos, fora dos dogmas radicais que caracterizavam aquele movimento.  Apesar dos estilos diferentes, os dois artistas se admiravam e eram companheiros nas sessões de pintura que praticavam ao ar livre. A intenção de Cézanne era fazer com que a natureza, representada na obra, desse uma ideia de massas concretas e, como nessas paisagens, submetesse as representações humanas e coisas à esfera, ao cilindro e ao cone, isto é, a uma geometrização do mundo, criando valores diferentes, até então desconhecidos na história da arte, que alcançaram as bases do cubismo e seus precursores, Braque e Picasso, que o desenvolveram e o expandiram.

Renoir e Cézanne representaram visões próprias quando pintaram juntos o Monte de Santa Vitória, em L’Estaque. Renoir dissolvia tudo em manchas luminosas, enquanto Cézanne construía as rochas como uma pirâmide. É claramente visível a diferença dos enfoques deles: Cézanne cria uma solidez nas pinceladas e dá forma múltipla e paralela; Renoir, ainda influenciado pelo impressionismo, manchas leves, luminosas, e elas compartilham uma captação geral do tema.

O processo de Cézanne ao elaborar a obra, segundo depoimentos de contemporâneos, como Ambroise Vollard, marchand dos dois artistas, que por eles também foi retratado, era trabalhado em dezenas de sessões, como aconteceu no seu retrato, que ainda foi considerado inacabado pelo artista; sobre o Monte de Santa Vitória foram realizadas 30 pinturas a óleo e 45 aquarelas. Para concluir As Grandes Banhistas (2.10 x 2.51 m), considerada uma das suas obras-primas, custou-lhe 7 anos de trabalho (1898–1905). Vê-se nos movimentos das massas pictóricas dessa obra uma estrutura sólida, piramidal.

A obra de Renoir explode em sensualidade. Uma das melhores descrições do pintor foi feita pelo seu filho Jean Renoir, que lhe preparava o diluente para a pintura: disse que o pai diluía bastante a tinta e ia desenvolvendo as formas, sem nenhum desenho; era pintando e saindo o motivo, com a tinta fresca e expressiva. O gesto de um mestre.


sábado, 2 de agosto de 2014

Adeus, Santander Cultural


Foi anunciado, através de carta da equipe do Santander Cultural, no início do ano passado, aos seus caros amigos, que o edifício que o abrigava iria passar por uma grande reforma, que envolveria a restauração completa de sua fachada e importante requalificação interna. Também foi informado que a casa seria reaberta em maio de 2014, já no ritmo e na emoção da Copa do Mundo. Até aí a comunidade cultural ainda vibrava por crer que o importante centro das artes visuais, após vinte anos de participação na cidade do Recife, com exposições e curadorias direcionadas a apresentar o melhor da arte pernambucana e do País, iria, finalmente, dar um passo fundamental para se consolidar no Estado.

O baque foi grande ao alcançarmos o futuro no prometido maio de 2014. Os artistas, tendo conhecimento de que o Santander iria fechar as portas, clamaram para que o banco mantivesse as instalações e os equipamentos para que a vida cultural na cidade continuasse. A alta cúpula do banco respondeu que considera o edifício muito limitado para as exposições e que iria usar o Museu do Estado de Pernambuco (Mepe) para investir na arte e na cultura, tendo já firmado um contrato de três anos com o Museu. O Santander tem o direito de investir o seu dinheiro da melhor forma que indicar a sua estratégia financeira. A nós cabe apenas lamentar o fechamento de uma das instituições mais vivas do Recife, que já fazia parte de nossa cultura, relacionando-se com muitas outras em âmbito nacional.

O seu coordenador, Carlos Trevi, tornou-se uma das pessoas mais próximas dos artistas pernambucanos, principalmente por realizar exposições significativas e dar uma dimensão real da arte do Estado e do Nordeste para o País. As mostras eram organizadas no padrão excelente de apresentação, de curadoria; os catálogos, com grande qualidade gráfica e textos didáticos, críticos e de elevado nível. Poderia citar várias delas como exemplo, mas uma das que, no meu ponto de vista, marcaram foi Zona tórrida – certa pintura do Nordeste, que trouxe uma visão da pintura que se desenvolveu na Região. Uma liderança que Trevi exercia com discrição e elegância, admirada por todos que conheceram a sua coordenadoria. Tornou-se, assim, também um cidadão pernambucano pelo seu trabalho e pela sua dignidade.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Adversário político


Há uma tradição, no Brasil, de que o antagonista político deve ser completamente derrotado; se possível, mesmo que veladamente, nutrindo um desejo de morte física e, principalmente, de ideias do já considerado inimigo. Isso vem de longo tempo.

Aquele que diverge dos pensamentos de certas facções é um indivíduo que não deve sobreviver à política após embates de campanhas numa disputa eleitoral. Armam-se estratégias para induzir o povo a pensar que o oponente é detentor das piores qualidades como pretendente ao cargo eletivo. Por isso surgem, nesses períodos, calúnias e iniciativas precipitadas, abertura dos cofres públicos e todo tipo de guerra eleitoral. Tudo vale para conseguir o poder.  Pouco se discute ideias e interesses coletivos; a centralização está simplesmente nessa fome de domínio. Quando o vitorioso é instalado na função, inicia uma etapa para desqualificar o antecessor. Nada de aproveitar as obras positivas anteriores: os projetos são abandonados, gerando prejuízos para o erário público.  A ânsia é expor as mazelas do governo anterior para sobressair como herói, dizendo que veio para salvar a nação, o estado ou o município. A maioria pensa assim, com o olhar fora da realidade, esquecendo-se do essencial, que é a vontade do povo de sobreviver às dificuldades. Com isso entendemos que o respeito à pluralidade de ideias no País não é uma praxe. Quase sempre os políticos são obrigados a admitir a existência de outros grupos que não pensam da mesma forma, porque estamos numa democracia. E só se unem com outros partidos por interesses de poder.  O governo de países que não aceitaram outras ideias está consolidado como um estado forte e predominante sobre a vontade da sociedade, levando-a a uma tragédia social, cultural, por perder a sua identidade e força.

E é em nome do povo que todos justificam estar no poder. Nenhum deles diz que conseguiu estar lá porque seu partido quis conquistar o máximo nem deixa transparecer que está com a ambição afiada. Dizem que estão ali por idealismo. Até os mais descarados na história contemporânea da política brasileira revestem-se com uma pele de cordeiro bem-adaptada para o momento, unindo-se com antigos desafetos, entre abraços e batidas nas costas, deixando a opinião pública revoltada com essas demonstrações de hipocrisia. O essencial é o povo se libertar das armadilhas do Estado para escolher melhor seus representantes

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Crime coletivo



A experiência do pintor Francisco de Goya (1746-1828), a partir de uma doença que o deixou surdo, em 1792, mergulhando-o no silêncio, fazendo-o se comunicar apenas por sinais ou escrevendo, tornou a sua visão mais aguçada. Esse fato, para os biógrafos e estudiosos da sua obra, é considerado como uma alavanca para despertar-lhe a genialidade, induzindo-o a concentrar o olhar sobre o mundo e os sentimentos humanos. Foi com esse espírito que ele realizou obras assombrosas de imaginação e de concepção em pinturas, gravuras e desenhos. Uma das mais fortes interpretações da violência bélica constituiu a série de gravuras Desastres da guerra. Essas gravuras foram produtos de seu testemunho sobre a invasão das forças napoleônicas, descrevendo a violência e animalidade da guerra; a fome em Madri, no mesmo período; e a reação dos espanhóis na expulsão dos franceses do seu território. Cada uma dessas gravuras aborda um aspecto humano quando está sob a pressão de um conflito. Goya dá título genérico à série: Fatais consequências da guerra sangrenta na Espanha contra Bonaparte e outros caprichos impressionantes. Com a verve própria, descreve as decapitações, os fuzilamentos, os roubos, os enforcamentos, os estupros e todas as inconsequentes ações e reações das guerras. O interesse do artista foi demonstrar que dos dois lados a brutalidade não tinha pátria, o importante era evidenciar o ponto animalesco nas duas forças. Individualmente, as gravuras eram batizadas com títulos esclarecedores quanto à complexidade humana: E são feras, Bem feito para ti, Mãe infeliz!; entre outros, surge o título Populacho, como tentando ressaltar a sombria ação do povo nessas circunstâncias. E, com essa indução, poderíamos confirmar o dito romano Voz do povo, voz de Deus?

Hoje, nós temos o jornalismo para mostrar as guerras e a violência humana. No mês de maio, aconteceu uma das cenas de barbárie em nosso país. A vítima, Fabiane Maria de Jesus, inocente, foi espancada até a morte, resultado de uma calúnia multiplicada nas redes sociais. Fotografias e vídeos do ato violento contra Fabiane comoveram a sociedade. Uma mulher indefesa e a multidão insana a lhe esbofetear a face, a feri-la com todos os instrumentos. Ela, ali, representando todos os Cristos, os mártires, como símbolo de mais uma vítima da maldade humana. Não estamos em guerra nem em revolução; talvez em convulsão social...


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Arte e concepção



No século XX, principalmente nas décadas a partir de 1950, iniciou-se a aceleração de invenções nos campos teórico e prático da arte, que é notável. Em todo o planeta, o pensamento artístico é colocado cada vez mais à frente das últimas novidades.  Os movimentos são revividos com intensidade, e revoluções estéticas surgem num passe de mágica. Ainda sob a herança de Marcel Duchamp, a arte conceitual tomou uma dimensão irreversível, e, nos dias atuais, repetem-se concepções vividas por artistas nas décadas anteriores. A arte de agora também se revela como fonte de questionamentos sobre os fenômenos sociológicos. Passou da coisa plástica materializada para revelar abstrações do mundo real, tentando modificá-lo sob a ótica ideológica. O artista deixou de valorizar o ofício como o entendemos no âmbito das habilidades artesanais, sobrepujando-o pela ideia, por uma argumentação teórica. E se alimenta através de uma suposta ciência para valorizá-la como algo duradouro. Tudo está em função dessa ideia. A tecnologia, os materiais mais inusitados, as rupturas, mesmo com o que possa ser considerado belo, estão a serviço dos conceitos de uma visão temporal.

Os artistas do Renascimento italiano caminhavam no sentido oposto. Foram considerados artistas-artesãos. No estúdio, com o auxílio dos colaboradores aprendizes, produziam vários apetrechos da vida prática, como celas para cavalos, sinos, móveis, o que se poderia imaginar de coisas úteis para o cotidiano, em arquitetura, engenharia, fundição, ourivesaria e tantos outros conhecimentos da habilidade humana. Além, claro, da pintura, da escultura, do afresco, que se colocavam como a prima obra. Parece-nos, hoje, que aqueles artistas se apresentavam com um poder criativo que ultrapassava o homem comum, e é quase incompreensível para as nossas mentes atuais concebê-los capazes de realizar tantas façanhas. Pensar em artistas como Da Vinci, Michelangelo e Rafael Sanzio — citando apenas os exemplos mais evidentes do Renascimento italiano do século XV — é ver um mundo de obras que permaneceu e que é testemunho de uma elevada cultura que marcou a história da humanidade. Esses artistas receberam a formação nos ateliês dos mestres Andrea del Verrocchio (Da Vinci), Domenico Ghirlandaio (Michelangelo) e Pietro Perugino (Rafael Sanzio).

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Petição aos santos


O cidadão encontra-se sob o domínio de um sistema que o oprime a cada dia. A começar pelo Imposto de Renda, que alcança quase 40% dos rendimentos. E aí começa o encadeamento com outros que encarecem o custo de vida. Nos municípios, são vários. Bem, mas estão dentro da lei, e é difícil consertar. Aqueles parlamentares que são eleitos com o fim de nos representar são os mesmos que criam a legislação e protegem governos. Ou se submetem a decretos acionados pelo Executivo. Não me refiro apenas aos impostos, mas também à máquina do sistema, que engloba empresas estatais ou privadas que prestam serviços, como os bancos, companhias de água, de luz, telefonia, saúde, etc. Um dos maiores empecilhos é a comunicação dessas empresas. Quem tem a experiência de ligar fica preso ao telefone ouvindo músicas inconvenientes à espera de uma solução para resolver o necessário. A saúde está abandonada, com os pacientes nos corredores dos hospitais. A Justiça age com passos lentos... Parece-nos uma força além do cidadão comum, por tantas tiranias do sistema. Há muito tempo, os governos prometem um paraíso... Mas estes são liderados por chefes que venderam ilusões e retrocederam. Então, recorrer a quem?

Como neste mês de abril a Igreja Católica irá consolidar a canonização dos três beatos, padre José de Anchieta, João Paulo II e João XXIII, irei apelar com uma petição, dividindo-a em temas para cada um dos novos santos. Iniciando pelo jesuíta José de Anchieta, que esteve bem próximo a nós e encontrou a nossa terra ainda nos primórdios da colonização, com a missão de catequizar os índios, encaminhando-os à doutrina da fé católica. Viveu e sofreu por eles, fundando o Colégio de Piratininga, pedra fundamental da cidade de São Paulo. Pela sua história, entende-se que ele terá possibilidades de atender ao meu pleito. Serei sucinto. Pedirei a interferência nos impostos e na educação, soprando na elite política mais seriedade para esses segmentos de governo, que estão um desastre. A João Paulo II, vitorioso contra as frentes ideológicas, quando papa, que possa reestruturar o Congresso e derrubar a corrupção. E a João XXIII, homem piedoso que trabalhou para as questões sociais, zelar pela saúde do povo, interferindo junto aos dirigentes do País com o fim de tirar a saúde da lama. Clamo também a todos os outros santos para ajudarem o Brasil!

sábado, 5 de abril de 2014

Matéria transfigurada


A matéria de trabalho do artista plástico pernambucano Fernando Ferreira de Araújo é a memória. Ele revive, nessa última fase, a sua trajetória. São experiências em vários setores da vida, transfiguradas. Pictóricas ou não. Como se montasse um impactante jogo. Uma montagem de imagens fragmentadas num entrelaçamento vibrante. Os artistas que perpassaram por suas retinas e seu espírito estão presentes de modo espontâneo, a exemplo de Mark Tobey, Jackson Pollock, Willlem de Kooning, entre outros do expressionismo abstrato, sem os dogmas nem as prisões ao estilo de nenhum deles. A cultura em que mergulhou no seu próprio país e nos Estados Unidos da América — em particular, pelo fato de ter morado numa cidade metropolitana e cosmopolita como Nova York — é um mote natural.


Compreendeu que, acima de tudo, a arte se constitui de trabalho intenso. Só se constrói uma obra com empenho e permanência, parece nos dizer ele através dos gestos pictóricos que adquiriu nesse garimpo da cor e das intrincadas pastas de tintas. Aprumou o seu leme com verve e enfrentou os embates do fazer. Os pincéis foram suas mãos. Tão bem orquestradas que refizeram essas sinfonias da alma. Toques ligeiros e mágicos semelhantes às sonoridades musicais. Como nas cordas das harpas, dos violinos, nos teclados. Pintura é música. É o que se evidencia quando olhamos as pinturas atuais do artista. Ele está mais próximo de si mesmo. Conseguiu codificar uma linguagem plástica que é dele principalmente. É a partir daí que renasce em sua arte e define o seu caminho.

Em princípio, na percepção do espectador, são concepções abstratas que incitam a imaginação a tentar identificar elementos conhecidos da natureza ou coisas elaboradas pelos homens. Às vezes, lembram o espaço com astros e asteroides; outras, mapas ou uma visão de topo das paisagens terrenas, tudo isso são apenas sugestões para leituras em alta velocidade, e é por isso que nós não podemos nos  deter em nenhuma dessas interpretações, só há o aspecto do todo. São igualmente signos que estão no mundo secreto do artista. Uma deliciosa mostra por saber que ali estão as digitais de um artista que realiza uma obra que fala do mundo e dos seres, de forma única e onírica.

terça-feira, 25 de março de 2014

Conceitos da arte


Estava eu presente numa aula, quando jovem, em que um eminente professor de Direito Penal citou exemplos de artistas que amenizavam a tendência homicida no exercício da Arte; entre eles, Van Gogh. Os meus colegas olharam para mim, por simples humor juvenil, porque era o artista da sala. Não sei em que se baseou o mestre para fornecer essa afirmação. Hoje nós temos, disseminadas no mercado, obras de arte de homens e mulheres, serial killers, presos, que, no meio cult, nos países desenvolvidos, são celebrizados como seres  criativos. E paga-se caro para adquiri-las, porque nesses países há bilionários que gastam com excentricidades. Parte delas foi apresentada na exposição Sensation, realizada em 1997, na Royal Academy of Arts, em Londres, que teve repercussão mundial, organizada pelo publicitário e, hoje galerista Charles Saatchi. Mas, após essa aula, como estava envolvido com a pintura, e só pensava nos problemas estéticos — por isso manuseava os códigos com estranheza —, comecei a refletir sobre a natureza do artista. Levei muito tempo para elaborar no cérebro essa questão e não tive repostas plausíveis. Apenas mantive o projeto de concretizar a Arte. O caminho para mim, então, foi lançar o olhar sobre os artistas históricos para decifrar o enigma.
   
Geralmente a Ciência tem uma resposta prática para aquele que a estudou.  Na Medicina, a cura. No Direito, a dialética nos tribunais. Na Engenharia, as invenções de utilidades. Na Biologia, o resultado nas pesquisas. Como na Física, na Matemática e outras ciências. Mas os artistas que mergulharam na Arte oferecem diversos conceitos, portanto a sua complexidade em todos os tempos. O pensamento deles nos dá a chave, o resto somos nós que devemos semear e ter a própria visão. Picasso era tão acelerado que dizia não procurar, mas encontrar.  Matisse, o seu maior concorrente, trabalhava a Arte para uma harmonia que conduzisse o homem ao bem-estar, ao conforto do espírito, após um dia de luta. Van Gogh buscava uma salvação para ele e a humanidade, através da Arte. Cézanne queria reduzir as coisas ao cilindro, à esfera e ao cone, antecipando o cubismo e influenciando a arquitetura moderna... E em cada um deles, um conceito próprio, quase infinito. Entretanto, os artistas que mostraram respostas imediatas foram aqueles que realizaram as pinturas rupestres tematizando o fim da caça, alimentando a si próprio e a sua aldeia.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Arte e ciência


Leonardo da Vinci (1452–1519) foi impedido de frequentar universidades. Por ser um filho bastardo, não lhe eram permitidos os estudos naquelas instituições. Nasceu da união de um bem-sucedido notário (que seria, no século XV, uma síntese de tabelião e advogado), Piero da Vinci, com uma camponesa, Catarina, em Florença. Seu pai, ao saber que Leonardo estava destinado às Artes, um dos estudos permitidos, encaminha-o, com 17 anos, para o ateliê do escultor, ourives e pintor Andrea del Verrocchio. Mas, antes, já tinha demonstrado o talento para o desenho e a pintura, conferido pelo mestre. Segundo os biógrafos, Da Vinci demonstrou sempre uma inteligência arguta. Desenhava com a curiosidade de cientista. Criou um hábito de anotar, em cadernos, as impressões e os pensamentos sobre os problemas com os quais se defrontava. Foram 13 mil páginas de tratados científicos e artísticos. Quando foi considerado um dos mentores do Renascimento, teria afirmado que o seu conhecimento se baseava nas investigações diretas da natureza, enquanto os sábios das universidades estudavam as ciências conquistadas por outros. Penetrou em várias ciências, permitindo um legado ainda pesquisado em nossos dias.


Foi um dos precursores nos estudos de anatomia e fisiologia, por exemplo.  Nesses estudos, conseguia cadáveres encomendados para dissecação em noites iluminadas por velas e de anotações de desenhos detalhados.Todo o corpo humano foi dissecado e desenhado com precisão técnica e didática, o que constitui um dos patrimônios científicos. Também os animais foram estudados, principalmente a anatomia do cavalo. Uma pesquisa solitária e constante, que custou uma denúncia à Inquisição pelo fato de utilizar corpos humanos, e só não foi condenado por interferências poderosas.

Leonardo apresentava um aspecto alquebrado, por excesso de trabalho, nos anos finais de sua trajetória, como demonstra o autorretrato realizado por volta de 1512/1515, que o faz parecer muito mais envelhecido para a idade que tinha. Um artista que colocou a Arte em sintonia com a Ciência. Em todas as obras realizadas, o aspecto científico estava presente. A cor, a perspectiva, a anatomia dos corpos... Dizia que a Arte teria que imitar a natureza segundo a visão da Ciência. Talvez um precursor dos princípios da luz e da cor apregoados no século XIX e concretizados pelo Impressionismo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

As redes


A cada era, a arte dá os seus sinais e nos diz a que veio. Na das cavernas, havia os artistas que matavam os animais, digamos, virtualmente, antecipando a caça, em pinturas nas pedras. Uma espécie de fé cega e instintiva que os fazia acreditar que o animal já estava metade morto. Imperava aí a sobrevivência. Nas civilizações antigas, as representações de seres e homens que indicavam uma severa hierarquia e uma mística de deuses múltiplos. Na clássica, a harmonia das proporções e a imitação da natureza exatamente ou mais próximo possível na sua representação. Na Idade Média, o mergulho na mística cristã. No Renascimento, a volta aos ideais da arte greco-romana. E assim continuamos num processo que, a cada mudança ou novidade, seria como uma forma de modernidade. Quando desperta uma invenção, vem esse conceito do moderno. A arte é velha e moderna ao mesmo tempo. Isso segue até os movimentos do início do século XX, quando se despertou a várias concepções.

Estamos no ápice nos conceitos e na materialidade da arte? Não sabemos, porque somos ainda o presente e temos, à frente, supostamente milhões de anos em que, certamente, haverá mudanças com revoluções estéticas e sociais inimagináveis; caso antevíssemos a arte do futuro terrena, seríamos comparados a um homem na Idade Média que não compreenderia a nossa era se, na possibilidade de fazer uma viagem ao tempo, em visita, começasse a tentar decifrar os nossos códigos atuais.

Um dos conceitos sobre a arte estabelecida como contemporânea é de que todos os atores que envolvem a arte estão como em redes de comunicação. A sua maior característica é o intercâmbio de informações que envolvem todos os agentes dessas redes. Faria uma imagem como a de um plano líquido em que caíssem simultaneamente pedras sobre aquela superfície e que, ao alcançarem-na, entrassem em ondas e se entrecruzar. Não há hierarquia nos valores desses personagens. Todos estão no mesmo plano e importância. Artista, curador, jornalista cultural, marchand, publicitário, mercado de arte, público, colecionador, aficionado, enfim, todos aqueles envolvidos da produção até a divulgação das obras de arte ou simplesmente com o ato criativo, sem materialidade. A pirâmide dos séculos anteriores — na qual o brilho absoluto estava nas mãos dos artistas — ruiu; hoje, a arte está em um imenso plano.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

País das festas

                                                                   

No Brasil, as temporadas de festejos ocupam quase o ano inteiro. Ao entrar em janeiro, já na noite da passagem de ano, as músicas são como prévias carnavalescas, que acompanham todo esse mês. E ainda tem fevereiro quente, com os anúncios e as propagandas de clubes que realizam as suas antecipações dos dias de Momo. O povo extravasa num delírio coletivo de alegria. Mesmo terminando o Carnaval, continuam os bacalhaus na vara, como querendo eternizá-lo nos últimos suspiros de vida. E ainda há os carnavais fora de época, que acontecem nos intervalos festivos. Depois de concretizados os finais da festa, lá para o mês de maio, começam-se a anunciar as fogueiras juninas. Aí vêm as quadrilhas mal caracterizadas, cheias de novidades que não são da tradição, com danças e balés improvisados por coreógrafos que parecem vir de outro planeta. O intervalo até o Natal é preenchido com invenções de todas as formas. Quando novembro se anuncia, o Papai Noel, estranho à nossa cultura, aparece.
 
Admiro as manifestações festivas e culturais genuinamente populares e autênticas dos períodos. Chamo a atenção para as deformações que nossas festas estão sofrendo e para a alimentação do exagero, concretizado pelas administrações públicas. No Carnaval, por exemplo, há uma invasão de ritmos que não fazem parte de nossa cultura. Mas os políticos financiam essas deformações porque precisam dar ao povo circo e pão de todo jeito, para mantê-lo sempre como eles querem: alienado.

Este ano, então, em termos de festas e eventos, será inimaginável. Teremos a mais as eleições e também a Copa do Mundo, que, na visão de muitos críticos especialistas no assunto, talvez seja um desastre de organização, de gastos, de desvio de verbas...

Mas a verdadeira alegria do povo seria poder manter seus filhos em escolas públicas dignas, para receberem uma formação exemplar que os ensinassem das letras à educação do meio ambiente; poder ir aos hospitais e ser recebido com todos os equipamentos necessários ao atendimento, para que ninguém morresse na porta; ter uma Justiça eficiente, que ofereça respostas precisas, sem os erros tão evidentes; ter um Poder Legislativo que sirva com honestidade, sem as tortuosidades proclamadas na imprensa; e poder contar com os poderes democráticos em prontidão para todas as suas necessidades, e não as enganações de projetos para mantê-lo em uma situação degradante. O povo quer mais!

sábado, 25 de janeiro de 2014

Sou Michelangelo Buonarroti

                                                                Michelangelo


Um dos escultores representativos do Renascimento não gostava de ser apresentado apenas como um artífice. Corrigia o interlocutor e dizia: “Não sou o escultor Michelangelo. Sou Michelangelo Buonarroti” (1475-1564), isto é, sou um gênio. E até hoje não há quem discorde disso. Talvez reagisse assim por ter sido reprimido pelo pai ao encontrar a sua vocação tão cedo — considerada, à época, uma atividade menor. Desprezava o latim e a geometria escolares, pretendendo ser um artista. E o pai, mesmo irado por essa escolha, com ralhos e gritos, encaminha seu filho à oficina do pintor Ghirlandaio. Lá, por pouco tempo, aprende a arte da pintura e a magia do afresco, que lhe serão úteis no futuro. A paixão maior era a escultura. Logo aos 6 anos, num canteiro de obras no jardim da casa dos pais, onde brincava manejando o escopo e o martelo junto aos artesãos, desenvolveu o tato próprio dos escultores, sentindo a rugosidade das pedras e tentando entender como retirar delas imagens.
 
Foi na oficina do escultor Bertoldo que mergulhou na matéria mais apreciada para se expressar. Tornou-se um operário da pedra a partir daí. A oficina do mestre escultor era uma das iniciativas do mecenas Lourenço de Médici, o Magnífico (1449-1492), que forneceu obras antigas de suas coleções para a formação nas artes plásticas e não fazia distinção, na educação, das artes literárias. Um príncipe sem coroa de Florença. Reunia todos os sábios em seu palácio e entendeu de imediato o gênio Michelangelo, abrindo as portas, para o jovem artista, daquele mundo do mecenato, onde se respirava a beleza, a cultura e a tradição. O artista recebeu o impulso inicial e realizou obras-primas renascentistas. Um dos filhos de Lourenço, Giovanni de Médici, tornou-se o Papa Leão X, em 1513, e também foi um aficionado da arte e da cultura.
 
 O encontro fundamental na arte de Michelangelo foi com o Papa Júlio II. O papa encomenda-lhe um afresco no teto da Capela Sistina. Michelangelo resiste. Diz-lhe que não era pintor, mas fundamentalmente escultor. Júlio II revida dizendo-lhe que ele aprendeu, sim, na oficina de Ghirlandaio, a arte do afresco; portanto, ele iria realizar o trabalho. O artista revolta-se ao ponto de tentar deixar Roma. Mas cede ao rigoroso cetro papal e concorda realizar a imensa obra com a composição de 520 m2, em 4 anos de trabalhos ininterruptos, entre crises e lutas. Inicia com alguns auxiliares, mas dispensa-os e realiza na solidão da Capela o grande universo! Outros papas lhe proporcionaram realizar mais obras-primas. Clemente VII,  a Capela dos Medici e o grande sonho do artista: a tumba de Júlio II. E Paulo III o afresco do Juízo Final, na parede do altar da Capela Sistina...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Crime desmaterializado

                                                                       Caravaggio


Costumo sempre viajar ao interior do Estado, mais pela gentileza das pessoas e por causa das belas paisagens. Em uma oportunidade encontrei um amigo. Desabafou-me que sofreu um atentado há algum tempo. Portando uma arma branca, o algoz, seu próprio irmão, avançou sobre ele com a intenção de matá-lo, não consolidando o intento delituoso por circunstâncias alheias à sua vontade, inclusive, com os gritos de sua mãe, idosa, segurando-lhe a mão, suplicando-lhe que não praticasse o crime.  

Para preservar a vida, deu parte na delegacia local. O inquérito se estabelece. O delegado viu indícios como crime de tentativa de homicídio, proporcionando os primeiros passos à história processual da vítima. O algoz apresentou-se. Negou o crime, como quase todo réu. Inventou uma narrativa totalmente diferente. O delegado, experiente, convocou a polícia científica e rastreou o fato, contraditório à historieta do acusado. Concluídos os trabalhos do inquérito, encaminhou ao Ministério Público como tentativa de homicídio por motivos fúteis. 

O promotor de plantão pediu a prisão preventiva do réu, mas o magistrado negou. Ainda era cedo. Nas audiências, um promotor diferente em cada uma delas. Um disse à vítima, quando esta foi lhe pedir orientação, que contratasse um advogado. Outro afirmou que preferia trabalhar sem advogado. E o juiz, com boas intenções, disse-lhe que ele não precisava de advogado, porque existiam excelentes promotores. Apesar da verdade dos fatos, as testemunhas, dois irmãos de ambos — vítima e réu —, simularam, em conluio sórdido com outras, dizendo que não viram a arma do crime, desmaterializando-a do processo – caracterizando-se, assim, um caso raro do fenômeno “paranormal” de desmaterialização – por interesses próprios principalmente, entre outros, para se vingar da vítima, pelo fato da denúncia da real tentativa de homicídio; e afirmaram que a vítima quis prejudicar o réu, por denunciá-lo, defendendo o seu próprio direito à vida. Na prática, constatou-se a intenção de anular o crime e culpar a vítima, que muitas vezes, morta ou viva, é a culpada nos processos penais no Brasil.

Eis a parte das alegações finais técnicas aceleradas de mais um dos promotores atuantes no processo, que, em um momento do texto, confunde o réu com a vítima: a arma do crime não existiu, porque as testemunhas e o réu confirmaram. Portanto, o código penal não o atinge, acreditando que a justiça será plena. Então, o amigo expressou: “Fui vítima três vezes: no atentado, nos falsos testemunhos e nas ações tramadas na clandestinidade. Isto incentivará o algoz a repetir o crime?”