"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

domingo, 18 de outubro de 2009

A força plástica de José Cláudio

O tecido pictórico na obra de José Cláudio tem uma marca inconfundível, formada por uma trama de captações rápidas, diretas e precisas das coisas da natureza, através das ferramentas utilizadas pelo pintor, que se movimentam em suas mãos construindo o tom da sua visão plástica: como os toques dos pincéis — de preferência redondos — na superfície do suporte escolhido (telas, eucatex) que traçam vibrações na matéria da pintura, que volteiam, que pontuam, que riscam, que esmagam as pastas intensas de cores;   das espátulas que cortam em gestos uma cena , um registro qualquer; ou mesmo algum outro instrumento que o faça expressar o pensamento pictórico, como a utilização  dos  panos, na tentativa de apagar uma solução imprevista no trabalho, e  que o faz, de imediato,  deixar, naquela ação, uma  forma definitiva: o que ele pretende, na verdade, é o resultado, a captação do espírito e a concreção do que ver, nada de soluções óbvias que tragam uma acomodação, mas que escancare uma boa batalha para o espectador, indicando que a pintura veio com a força natural.

Os temas escolhidos para as obras foram se confirmando ao longo de sua história, desde quando convivia na loja do seu pai, em Ipojuca, onde tinha a oportunidade de observar o movimento do povo e desenhá-lo, nos papéis de embrulho, tentando captar as cenas diretas, frescas, um flagrante que permanece nas pinturas posteriores que é uma rede de forças que nos incita àquela matéria — que se faz carne nas representações dos frutos, das folhagens, do mar, da brisa marinha, dos pássaros, das nuvens, da luz… — para tocá-la com o prazer tátil, porque não se pode apenas contemplar uma pintura de José Cláudio como algo estável, ali tem uma vida, um movimento que o olhar percorre acompanhando cada centímetro de pincelada, como moléculas que se interagem em estado vibrante.

Essa captação assumida pelo próprio pintor — “Eu dependo como pintor do que flagrar…” — resultam, em todas as temáticas das pinturas, dois fatores que observamos de imediato: o primeiro é a matéria densa que constroem as formas, numa pincelada definindo um tronco de coqueiro, um peixe, um pássaro, um fruto, um rosto, uma passista do frevo numa cena coletiva; o segundo é a captação do que envolve esses elementos separados jogando-os numa luz, num ar, que parecem movimentar na estrutura do quadro — é quando vemos uma paisagem na qual os coqueiros balançam com suas folhagens; nos peixes, ainda frescos vindos do mar, brilham; os frutos prontos para degustação; os pássaros saltam ante o nosso olhar num espaço luminoso; corpos das passistas dançam ao som da música; e os retratos de pessoas que são colocadas numa verdade particular de sua natureza que sabemos que são elas por terem sido captadas em algo que transcendem a simples aparência física.

Soma-se a toda essa força plástica a sua visão de homem refinado, culto, que está presente em seu tempo, fortalecido dentro de uma tradição que não paralisa, mas impulsiona para o futuro, proporcionando-lhe uma liberdade de quem sabe o que está fazendo e nada o tira de sua meta de captar e dizer do olhar sobre as coisas. Por isso, conversar com José Cláudio e ouvi-lo sobre os grandes artistas, como quem fala de um companheiro de sua proximidade, também é uma arte. Revela-se íntimo, encontra coisas e fatos que nos surpreende, gravando em nossa memória, porque, principalmente, diz com propriedade. Quem desfruta desse outro aspecto do artista sabe o quanto é prazeroso conversar e dividir algum conhecimento com ele, porque também o artista tem a arte de ouvir e observar o que o seu interlocutor tem a acrescentá-lo.
O Museu do Estado de Pernambuco inaugurou, no dia 7 de outubro, uma retrospectiva do pintor, na qual podemos observar grande parte da sua produção, com um impacto digno de sua arte; e lançou um belo livro, de excelente feitura, com textos de Marco Polo sobre a obra e vida do pintor, paralelo à exposição, que destrincha as suas fases. Muitos artistas de várias gerações estiveram lá para cumprimentar o pintor, desenhista, escultor, escritor, José Cláudio, sinalizando a admiração e o respeito por um artista que dá uma contribuição avaliada com a dimensão que merece a sua obra.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Em defesa dos brinquedos artesanais

O Nordeste do Brasil é uma fonte inesgotável da criação do artesanato em nosso país, juntamente com outras regiões. Isso está bem claro para as pessoas e, principalmente, no meio acadêmico e governamental. Essa específica produção do universo popular é também uma das concretas riquezas do turismo nacional, que eleva essa atividade, na América Latina, como uma das mais importantes e comunica, para todo o resto do mundo, o imaginário de uma cultura diferenciada.

Além disso, há o aspecto do suporte social, o qual envolve milhares de pessoas que sobrevivem dessa via de produção. Assim, o artesanato conquista, a cada dia, um público consumidor, seja nacional ou estrangeiro, que nele encontra um prazer, levando as peças adquiridas como parte viva de nossa terra.
Em sua própria região, o artesão sobrevive com imensas dificuldades para vender e veicular os seus trabalhos, mas espera que esses produtos desenvolvam sempre o mercado específico e o faz com a preocupação de atender os consumidores da melhor forma possível, aperfeiçoando a sua arte, consequentemente, oferecendo o mais alto nível do seu trabalho para que clientes possam retornar e adquirir mais produtos. Muitas vezes, para tanto, o artesão envolve toda a família nessa empreitada, donde retira o sustento para os seus.

Dentro desse universo, há uma grande produção de brinquedos artesanais caracterizados por uma bela simplicidade, sendo alguns deles centenários, que se desenvolvem e acompanham gerações, auxiliando a criança na sua formação e motivando-a, às vezes, a imitar os brinquedos dos artesãos, pelo contentamento de manuseá-los.

Os brinquedos artesanais fazem sucesso, hoje, em todo o País, porque têm a marca direta das mãos do artesão e a sua criatividade, que estimula a inteligência, humanizando as brincadeiras. Talvez, a amplidão desse segmento do artesanato tenha despertado alguns incômodos e incentivado, através de denúncias, os órgãos competentes a atuarem com severa fiscalização; como, por exemplo, está acontecendo aqui, em Pernambuco, impondo dificuldades no trâmite das vendas desses brinquedos, prejudicando, assim, o artesão na sua subsistência.

Cremos que há um equívoco, quanto ao foco social, em se ter a mesma legislação sobre os brinquedos feitos por artesãos e os fabricados por grandes indústrias. Cabe aos nossos legisladores observar esse assunto, porque se trata, no primeiro caso, de objetos do artesanato para utilização como brinquedos. Pois não se pode comparar, em termos de fiscalização e cobranças de impostos, por exemplo, um brinquedo criado pela tradição secular que é o artesanato — uma das expressões do povo que dinamizam a sua cultura — com a série de brinquedos fabricados por máquinas respaldadas por poderosos recursos, infinitamente superiores aos dos artesãos de todo o Brasil.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Memórias da Pele

Intitulei esta nova série de Memórias da Pele, buscando um significado na solidão do mergulho na pintura.
No meu primeiro salto para esse exercício no caminho pictórico, e com os conceitos da arte, busquei, quando jovem, encontrar um paraíso espiritual, talvez águas límpidas e temperadas, na paisagem incomparável, numa ideia à Paul Gauguin. Mas a surpresa foi me deparar com lavas, revoluteadas, nada que lembre um paraíso calmo e translúcido, apenas movimentos semelhantes a braçadas numa matéria vulcânica, como na tentativa definitiva de sair de uma espiral que apresentasse sempre uma equação interminável, como se fosse, a resolver, um inferno dos símbolos e dos números. Porque, a pintura, nunca nos deixa em paz, quando estamos tão próximos dela. E surpreendo-me ouvir de algumas pessoas que a pintura não tem mais o que dizer; aliás, já disseram a mesma coisa no século passado, várias vezes…

Mas para mim a pintura permanece com múltiplas questões, atraindo com a força que lhe é natural. E essas afirmações nunca me impressionaram nem me convenceram, porque eu testemunhava, com a própria experiência, que aquilo era uma inverdade. E não seriam as palavras autorizadas e influentes que iriam me convencer.

Ainda bem que o artista tem o seu universo e, quando está em seu momento de trabalho — refiro-me aos que desenvolvem o seu pensamento —, acredita naquilo que, para muitos, seria algo desprezível; e a história de muitos artistas vem corroborar o que digo.
E o que também publicam hoje é que a pintura está “retornando”; quando não é nenhuma novidade para mim: continuo coerente, como outros artistas, realizando a pintura de forma independente.
Ao utilizar o couro do boi para as impressões nas grandes lonas dessa série, pensei que seria como um pincel que deixasse as marcas de um conceito que voltasse o olhar para a experiência da pintura dos nossos ancestrais e para o gesto que pudesse registrar símbolos do sangue, da carne, da vida e da espiritualidade, como se abrisse um livro passando suas páginas numa velocidade que mostrasse todas as ilustrações em uma percepção de palimpsestos nervosos que desse uma ideia compacta de conjunto da História, desde as primeiras pinturas em que se desejava a caça, na invocação da magia, ao conceito que vivemos, hoje, da imagem e do pensamento plástico, existente em nossas mentes.

A cor predominante é trabalhada numa exaustão em que procuro tirar dela não somente a sua carga simbólica, mas as suas vibrações naturais umas sobre as outras num ritmo pensado e elétrico, para entrelaçá-las e equilibrá-las nas forças. A cor terra queimada como sombra da carne, da matéria, para ressaltar as marcas negras da forma do couro inteiro e das partes que recortei dando forma às máscaras, aos símbolos geométricos, a cabeça e as patas do animal, nas quais faço referência a Picasso, do seu “toro” majestático, em Guernica, que vibra na mente como um dos maiores símbolos da arte do século XX. Introduzi impressões com outras cores para sugerir um dinamismo e sair do quase monocromatismo, que desse outras visões, na mesma série, como os vermelhos puros, os ocres, os dourados, os bronzes, os azuis, deixando os seus significados produzidos pelo inconsciente.

Aos poucos, à medida que os trabalhos eram realizados, tentava decifrar o que realmente estava fazendo; só hoje consigo, de fato, uma leitura aproximada e ter um olhar mais apaziguador, porque, no processo de construção, vem-me sempre um dado impulsionador para realizar “aquela” específica obra, sem uma razão aparentemente racional. As imagens, as texturas, as cores, o motivo, aparecem sem nenhuma conotação clara, mas obscura, talvez vindas das manifestações da memória, que depois se aclaram na compreensão natural da vida.

Olinda, maio de 2009