"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Reflexões e arte na quarentena




A arte é um oceano para aqueles que pretendem mergulhar em suas riquezas. Com o passar do tempo, mais experiente, o artista chega à conclusão de que um dos fatores essenciais para construir uma obra é a simplicidade de percepções que captam caminhos, naturalmente porque não há um programa de dar uma direção à concepção; a própria arte oferece o tom, as decisões para uma trajetória. O criador segue as determinações dessa prática, desse exercício contínuo de plena atividade, e essa mecânica individual o faz dar passos para o nascimento de algo inesperado para trabalhar, aprofundando os pensamentos, sem cálculos exatos, claros, mas abstratos e múltiplos. Assim surgiram as séries que realizei, e assim vejo em muitos outros artistas.

Quando consolidava uma das primeiras séries, a de nus, com modelos – uma imensa quantidade de quadros–, as imagens dos corpos vinham à minha mente inteiras, fechadas, como num foco de uma lente onde só interessava os detalhes das superf ícies e dos contornos, em pinceladas nervosas e matéria densa de pastas de tinta, sem prestar atenção ao que estava ao redor desses corpos. As soluções eram monocromáticas, com terras, preto e branco, e a luz era determinada na mistura dos brancos e ocres, raramente outra cor. Trabalhava como um fanático e tinha dias em que realizava até três obras, numa velocidade impensável nos dias de hoje. Com a prática, na repetição do tema, fui abrindo os corpos em linhas e massas tornando o nu quase abstrato. Dei o título Composições da nudez por achar que eram mais estruturas pictóricas que formas sensuais...

Aconteceu algo paralelo, logo em seguida, com a série Partes de Corpo Animal, quando desenvolvi uma visão do animal, individualmente, no início, e supostamente no campo, representando a cabeça do boi quase realista – “quase” porque naquela época (1980) era impossível fazer um trabalho realista – até a sua morte, no matadouro, formando imagens de esquartejamento. As cores eram colocadas na superfície, puras, da forma como estavam nos tubos de tinta, com as variações entre terras, pretos, ocres, azuis e vermelhos. Também uma série longa, com muitos trabalhos. A pintura sempre me atraiu pelas suas sensações nos movimentos dos pincéis e pelo entrelaçamento das cores; esse exercício invade o corpo e se integra ao pensamento numa só força. Essa é uma das minhas características que se prolonga aos dias atuais no instante do encontro com uma superfície quando pretendo dar cor e forma, sem pretensões maiores que o prazer do trabalho.

Lancei mão de vários temas com essa percepção e concepção, admitindo paisagens, retratos, nus, representações de animais, naturezas-mortas, assuntos sociais, abstrações... Há algo de que o artista não pode fugir: é de si próprio; o que lhe pertence deve perseguir e preservar para manter a coerência do trabalho – uma lição que aprendi.

Quase sempre uma série surge, vagarosamente, nas tentativas mais simples, como um músico que dedilha um teclado ou cordas, quando surgem os sons que lhe agradam, e aquilo aumenta numa tensão que o faz anotar e compor; assim também a pintura dá essa sensação. Ao iniciar a série Mare Nostrum, comecei a trabalhar em quadros de pequenas proporções, criando naturezas-mortas com peixes, um assunto que sempre esteve presente no meu imaginário por ser um praieiro nato. Aqueles pequenos trabalhos foram me tomando nas proporções das telas, como se eu aproximasse o olhar aumentando os detalhes daqueles peixes, daquelas agulhas, daqueles peixes- -espadas, das cavalas, das ciobas, das arraias... A partir daí, a série tomou outro aspecto, talvez um encontro com o simbolismo que só consegui enxergar muito depois. Era uma relação hipnótica que tive com a temática e a técnica; não havia espaço para explicações daquilo que estava fazendo. Dos quadros pequenos surgiram os de maiores dimensões, e era um seguido de outros, uma relação apaixonada e cheia de significados inconscientes que só percebi quando acordei daquele sonambulismo...