"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Noventa anos


 
                                                                        Maria Amélia

Minha mãe nasceu em 12 de setembro de 1923, na cidade de Paulistana, Piauí. Descendente das famílias Léda e Palhano, esta última de origem italiana, que chegou ao País com a grafia Pagliano. Neta do poderoso lendário político republicano das terras do Maranhão, chamado coronel Leão Léda. Seu nome de solteira era Maria Amélia Léda Palhano. Quando encontrou o meu pai — falecido em 1980, no Dia do Professor, aos 60 anos —, Humberto da Costa Soares, estudava no Colégio Diocesano, em Petrolina. Ele, jovem professor daquela instituição, vindo dos estudos do Seminário de Olinda. Quase se tornou padre. Saiu com o conhecimento suficiente para ensinar latim, francês e português, aos 18 anos. Um trabalhador da educação que deixou marcas na história da formação de pessoas na cidade sertaneja. Aqui, no Recife, também como professor, chegou a dar doze aulas por dia, nos três expedientes, em vários colégios tradicionais, sendo contemporâneo de outros, que, à época, eram nomes de destaque na Educação, ele era um dos mais jovens. Terminou os seus dias terrenos como magistrado.

 A jovem estudante Maria Amélia irradiava uma beleza contagiante, perfil delicado, olhos castanhos-claros, cabelos ondulados finos, e de temperamento leve. Conseguiu reunir muitos amigos desse tempo, que permaneceram ao longo de sua vida como bons companheiros. Nessa relação entre professor e aluna, surgiu a afinidade que se consolidou em casamento. Tiveram os primeiros filhos em Petrolina, dois deles. E o restante no Recife. Como meu pai foi filho único, optou em fornecer sêmen, produzindo sete filhos. Para manter essa descendência, tiveram que dar muito duro. Gastaram as solas dos sapatos para garantir a nossa gororoba e paciência para educar cada cabeça!

Mas Saturno — o deus romano do tempo, que a tudo consome; em grego, Cronos — é cruel, confirma-nos pensar que a vida é uma ilusão. Como permaneci, após a morte do meu pai, convivendo com Maria Amélia Palhano da Costa Soares, nesses últimos 30 anos, fui notando nos seus olhos a perda do brilho, após infartos e cirurgia para implantar um marcapasso. Hoje, nos seus 90 anos, vejo-os nublados, como sinais do tempo, que nos traz principalmente dor...

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Luz domada

                                                                  Oswaldo Goeldi

Oswaldo Goeldi (1895–1961) representa um dos artistas brasileiros da maior expressão na xilogravura, que expandiu a sua arte, internacionalmente, para importantes centros culturais. Economizava em seus cortes na madeira para proporcionar uma precisão magnífica na definição das formas xilográficas. A luz sai do preto, como que irradiando uma luminosidade noturna.  Uma luz como se a víssemos atravessar num bloco escuro ou penetrar numa caverna. Uma magia impressa e uma visão própria do mundo. Os temas são a simplicidade. Animais domésticos, cenas de rua com homens anônimos, trabalhadores, a morte, o crime, pescadores que labutam em ondas bravias, peixes. Nunca o artista descreveu os prazeres da burguesia, o que o interessava era o trabalho ou o vazio dos transeuntes. A sua integração com os materiais do ofício era de um mestre que observava todos os meios para atingir a perfeição; os instrumentos cortantes e as madeiras eram selecionados de forma que oferecessem as melhores possibilidades técnicas.

                                                                Oswaldo Goeldi

Nasceu no Rio de Janeiro e aos seis anos partiu para a Suíça com os pais. Goeldi não foi um artista precoce. Só em 1915, aos vinte anos, após abandonar a Escola Politécnica de Zurique, começa a se dedicar às artes plásticas. O contato com a Europa forneceu o veículo para encontrar grandes artistas que o influenciaram. Mas o seu empenho foi transitado pelo autodidatismo, realizando desenhos preciosos, para, então, abrir esses contatos. O primeiro artista a influenciá-lo foi Alfred Kubin, um ilustrador austríaco com quem o artista brasileiro manteve correspondência durante toda sua vida;  indiretamente recebeu as influências de Guaguin, Van Gogh, Edvard Munch e James Ensor.

Na volta ao Brasil, em 1919, recebe crítica pesada dos conservadores da Academia Imperial de Belas-Artes que não aceitaram as influências sobre a obra do artista, vindas do expressionismo alemão. É aqui que ele inicia as suas atividades como gravador e aperfeiçoa a xilogravura de forma brilhante. Realiza ilustrações para jornais, revistas, livros, que foi uma das formas que encontrou para manter a sobrevivência, sua e da arte. Com o tempo, Goeldi faz a ponte com escritores, poetas e intelectuais, fornecendo ilustrações para suas obras. Drummond o descreveu como “o pesquisador moral sobre a noite física”.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Cidade dos artistas

                                            Bajado (1971) - Um artista de Olinda

Uma das obras essenciais para a compreensão e o registro histórico sobre os movimentos culturais da cidade de Olinda é o livro Utopia do olhar, de autoria do artista plástico e crítico Raul Córdula, uma das mais expressivas e fortes personalidades no âmbito da arte e da cultura, sempre presente no conceito e na concreção de manifestações visuais no País e na Região Nordeste. O texto é uma narração dos fatos que marcaram a cultura olindense e obedece a uma sequência desde os idos dos anos 1950 até a contemporaneidade, com um ritmo excelente para o leitor. Raul faz um levantamento monumental, nas artes visuais, de movimentos e nomes, sem omitir nenhum de seus pares, procurando ouvi-los e consignando depoimentos de forma harmônica e elegante, porque esse é o seu estilo.

                                               
Olinda se tornou Patrimônio da Humanidade, principalmente por sua história, sua beleza arquitetônica e o destaque da sua paisagem natural. Mas creio que também a presença de artistas na cidade contribuiu e impulsionou a conquista desse título, porque o próprio Aloísio Magalhães  — à época como secretário-geral do Ministério da Educação e da Cultura (MEC) —, um desbravador em várias vias culturais, principalmente quanto ao design no País, foi um artista que utilizou sua arte como um dos instrumentos para essa empreitada. Realizou dez litografias, através de seus registros fotográficos sobre Olinda, e um tríptico, isto é, três litografias conjuntas com o perfil completo do Sítio Histórico. Para cada imagem, cem reproduções. Aloísio reuniu 21 conjuntos dessas litografias assinadas por ele, a obra de Gilberto Freyre Olinda – Segundo guia sentimental de uma cidade e o conjunto de fotografias de Pedro Lobo. Distribuiu esse material com os 21 membros do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Cimos), da Unesco, para convencimento da conquista do título universal.

                                                              OLINDA

Mas até chegar a essa conquista foi uma longa história de movimentos e mobilização de artistas em Olinda. A gênese foram as primeiras presenças de artistas importantes na década de 1950, o Movimento da Ribeira, que foi fundamental para unir e dinamizar exposições e consolidou uma história nutrida por talentos que fixaram seu ateliê na cidade e repercutem nos âmbitos local e nacional; assim como, em paralelo, pelas vias governamentais, a criação de museus e a restauração de monumentos históricos; tudo isso alcançando a atualidade, que da utopia virou realidade como forças culturais e políticas que imperam e influem na cidade dos artistas.

domingo, 4 de agosto de 2013

Piedade Moura

                                                           Piedade Moura



Conheci a pintora Piedade na década de 1970, em uma visita que me fez, pelo fato de a artista ter lido uma entrevista minha. Desde então, consolidamos um laço que permanece vivo nas lembranças.

O seu sorriso vem logo à memória: largo, intenso, sonoro; os olhos brilhantes e inteligentes de quem gostava de ler, de falar intensamente, de viver, de acompanhar os melhores filmes, de ir às peças teatrais — e lá estava Piedade, às vezes nos bastidores, por ser amiga dos atores e por ter irmãos no ofício, como Nilson Moura, um dos criadores do Mamulengo Só-Riso, e Gilson Moura; uma família de artistas.

Piedade era assim, intensa, tudo o que fazia era como a sua pintura, com fortes pastas de tinta, cores saídas do tubo diretas e entregues ao suporte, com pequenas interferências de brancos e negros, para criar as sombras ou clarões que vinham de sua mente, como os amarelos que apreciava evidenciar. Rasgava as composições com pinceladas como meteoros, numa interferência proposital; tudo tinha o seu valor para o olhar da pintora, enxergava as coisas com uma visão própria e deixava-se levar pela força da ação gestual.

Pintávamos juntos nessa energia vibrante, paisagem, pessoas, temas variados. Era magnífico como encarava as paisagens. Dava o tom que queria e como via, sem nenhuma preocupação com a captação natural — em sua cabeça não havia nenhum mestre para se influenciar. A pintura de Piedade poderia, hoje, por exemplo, estar presente no que conceituamos sobre a arte contemporânea, ou melhor, pintura contemporânea. Estaria caminhando estreitamente com artistas desse veio atual.

Nesse entrelaçamento de trabalho e amizade, convidei-a para que posasse para mim. Ela concordou de imediato. Realizei uma série imensa com Piedade como modelo. Série que me deixou tomado por cada quadro realizado. Eram soluções pictóricas que encontrava, ora penetrando numa sequência abstratizante, ora captando as formas um pouco realistas. Mas a meta era dar o ponto exato da expressão.

No dia 21 de janeiro de 1984, acordei de madruga, e, naquele dia, o sol nasceu de cor dourada, com tons avermelhados, numa aparência de dor profunda, o meu sentimento é que havia perdido alguém tão importante que não poderia acreditar naquela fatalidade. Era um dia após a morte de Piedade Moura, nunca mais pude ter a alegria do seu convívio...

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O universo de Dalí




O pintor catalão Salvador Dalí (1904–1989) foi um talento precoce: aos 6 anos pintou uma paisagem dos arredores de sua cidade natal, Figueras, iniciando naquela obra o percurso de uma das personalidades artísticas que influenciaram o século XX e a arte universal, na mesma dimensão de Picasso, Matisse, Duchamp, Malevich e outros modernistas. A sua independência já transparecia, na pré-adolescência, sinal de ideias avançadas e segurança em si próprio para o trabalho que iria realizar. Aos 10 anos descobriu o impressionismo e começou a desenvolver pinturas luminosas com aquela matéria espessa e característica dos impressionistas.

Entusiasmado, partiu para o pontilhismo e iniciou uma série de paisagens da região de Cadaqués, com pescadores, barcos, retratos dos familiares e autorretratos. Aos 18 anos, conhece o cubismo, o futurismo e os artistas que estavam na vanguarda do seu tempo, como Picasso, Matisse, Miró, Juan Gris, Morandi, Severini, Chirico, Carrà; o poeta de Granada Federico García Lorca — por quem teve amizade e paixão —; e o cineasta Buñuel. Com este, futuramente, realiza o filme O Cão Andaluz. Todos se tornaram amigos do jovem artista. Nesse período as influências de Picasso e Miró são fortes. Aparecem quadros cubistas e as lembranças das formas de Miró, mas sempre com a marca do olhar e do cérebro agudos de Dalí.

Em 1929 inaugura a sua fase surrealista com duas obras: O Enigma do Desejo – Minha Mãe, Minha Mãe, Minha Mãe e O Jogo Lúgubre; será um entusiasta e protagonista desse movimento liderado pelo poeta e teórico André Breton. A partir daí, a obra de Dalí se expande.

Admirador da cultura e da arte renascentista, elabora trabalhos surrealistas com imagens inspiradas nos grandes mestres. Aqui, no Recife, na Caixa Cultural, foram expostas 100 xilogravuras realizadas, sob a supervisão do pintor, por dois gravadores, Raymond Jacquet e Jean Taricco. Eles reproduziram, com perfeição técnica, as ilustrações em aquarela do artista sobre A Divina Comédia, de Dante Alighieri, encomendadas, na década de 1950, pelo governo italiano para as comemorações do 700º ano do nascimento do poeta. Os italianos desistiram da encomenda, mas Dalí continuou a obra. Um trabalho complexo e de grande envergadura, testemunho vivo do gênio surrealista.



terça-feira, 9 de julho de 2013

O Grito

                                                                 

Este é o título de uma obra do pintor norueguês Edvard Munch (1863–1944), realizada em 1893, na qual utilizou uma técnica mista, com óleo sobre tela, têmpera e pastel, uma das mais significativas do expressionismo mundial. Pintura realizada em um período difícil do artista, que refletiu em nosso século como uma expressão máxima de angústia, talvez por isso nos toque tão profundamente por vivermos num tempo em que o cidadão é oprimido por todos os lados: pelo desenvolvimento desordenado, pelo Estado sem uma definição ideal para a sociedade e pelas imensas tragédias que assolam o planeta.

Hoje, esse grito é multiplicado por milhares de pessoas em vários países, inclusive no nosso. Vozes que clamam contra a corrupção; por justiça social; diminuição da criminalidade, que amedronta o cidadão todos os dias; melhoria nas condições de vida, na educação, na saúde, no transporte, na moradia, no salário, na política; a redução de impostos, cujo retorno não vemos... A esperança — apesar de o povo brasileiro ser otimista e paciente — foge-lhe das mãos, numa cena de muita tristeza.

Mas essas vozes têm a sua demonstração de grandeza através das redes sociais. É ali que o cidadão diz tudo. Fala mal dos governantes, mostra-lhe os erros. Também dos parlamentares, apontando as deformações do Congresso, que finge não saber o que o povo quer. Levanta bandeiras de ordem. Organiza-se para se manifestar nas ruas e falar do que precisa. Este é o verdadeiro plebiscito.

A leitura que é feita nessas páginas na Internet dá para interpretar a voz do povo. Só não vê e ouve quem não quer. Está sendo um verdadeiro dragão de poder democrático, talvez o quarto a partir de agora. É a sociedade, com toda sua força, colaborando com os políticos para que eles trabalhem como ela quer. Uma verdadeira democracia forjada pelo povo, e não pelos governantes.

E as ruas é a materialização das vozes cidadãs. Milhares caminham com a vontade de verdadeiras mudanças. Para trás as velhas políticas! É isso que o povo quer: saciar as suas necessidades emergentes. Nada em longo prazo. Mudanças já! Não há como esperar. O tempo se esgotou.

                                                                       

domingo, 23 de junho de 2013

O mal em nós

                                          A Escola de Atenas,Rafael Sanzio -1509

A maldade humana é um fenômeno natural. Na essência somos assim: próximos ao mal. Se não fôssemos, não haveria necessidade de existir, na história, tantos filósofos, profetas e iluminados, com a finalidade de nos lembrar do lado ético, despertando-nos os exercícios de bondade e compaixão, como Sócrates, Platão, Krishna, Confúcio, Moisés, Buda, Jesus, Maomé; além das tradições hindus e os exemplos de indivíduos que marcaram a modernidade com a consolidação de ideias avançadas de direitos humanos, de equilíbrio e preservação do planeta.

 É difícil nos reconhecermos dessa forma: como criaturas capazes de praticar o mal. Pretendemos ser reconhecidos, no verniz social, como pessoas do bem, de respeito, espelho, para os outros, de moral e inteligência. Ficamos indignados quando nos colocam uma lente de aumento e mostram o lado podre de nossas ações. Mas apontamos facilmente o dos outros. Estamos também cegos para o sofrimento dos semelhantes, aqueles que representam o “inferno”. E apreciamos os personagens maus, representados na dramaturgia.
 
Em todas as faces da sociedade existem essas sementes do mal, nas religiões, na política, na ciência, na arte, na comunicação... Movemo-nos nessas forças das várias escalas profissionais e dos relacionamentos humanos com um tom de diplomacia que beira, quase sempre, uma franca hipocrisia. Nesse instante, pensamos logo e só nas relações políticas, quando alguns políticos se cumprimentam com as tapinhas nas costas e o sorriso fácil dos acordos mais esdrúxulos. Mas, se aumentarmos o grau de nossas lentes psíquicas, veremos que em muitas dessas relações humanas há tramas de armadilhas.
 
As criaturas humanas que transcendem essa maldade intitulamos como heróis, e estas são perseguidas, pisadas, maltratadas, porque não estão no mesmo patamar do mal, e, depois que as destruímos, pomo-las nos altares da humanidade. E os maus famosos e mais próximos ao nosso século, por exemplo, os que assassinaram grande parte da humanidade, como Hitler, Mussolini, Stalin, Pol Pot e outros, cobrem uma multidão de maus menores, que são homicidas, ladrões, mesquinhos, maledicentes, egoístas, ambiciosos, preconceituosos, invejosos... Com a devida vênia, excelências e eminências, o mal ainda predomina em nós!