"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

domingo, 13 de novembro de 2011

Antropofagia e Arte

Parte do Modernismo brasileiro representado por Oswald de Andrade e pela pintora Tarsila do Amaral, como também pelo poeta Raul Bopp, se influenciou pelo livro do alemão Hans Staden, História Verídica, lançado, em primeira edição, em 1557, em Marburgo, Alemanha, no qual o autor relata as suas vindas ao Brasil recém-descoberto: a primeira em 1549 e a segunda em 1550, quando foi aprisionado e, por pouco, não foi comido pelos antropófagos Tupinambás, inimigos ferrenhos dos portugueses, e Tupiniquins, que, quando aprisionados pelos primeiros, eram assados e devorados com o peculiar apetite canibal. O livro foi ilustrado com xilogravuras feitas por outros artistas, com orientação do autor, e com suas próprias anotações em desenho.

A obra de Hans Staden me fez pensar nos artistas plásticos de todas as épocas que trabalharam temas dramáticos e fortes, numa tentativa de mostrar ao mundo o lado violento e autodestrutivo do homem. Começo pela obra de Caravaggio Salomé com a Cabeça de João Batista, que dá uma ideia da representação da violência, da força plástica da decapitação e do transbordante sangue na composição; a série de gravuras em metal Os Desastres da Guerra, de Goya, em que o gênio captou todas as misérias que as ambições e os instintos assassinos humanos são capazes de concretizar numa situação de defesa dos seus interesses, como, no caso, do povo espanhol ao expulsar os franceses do seu território; e a obra de Picasso Guernica, um verdadeiro campo de batalha pictórica contra o ditador Franco, este aliado às atrocidades dos alemães, que treinaram os seus aviões nos bombardeios à cidade de Guernica.

Como no título de uma gravura de Goya, O Sono da Razão Produz Monstros, tive — não sei se ainda igualmente influenciado por Staden — uma visão, em sonho, que deixou marcas para a realização de uma obra. Vi um personagem que me disse: “Venha ver uma cena que você poderia pintar!”. Entramos numa sala escura, à maneira das Pinturas Negras, de Goya, e ali estava uma velha mulher, de semblante angelical, de seus 90 anos, levitando no centro e três homens e três mulheres ao seu redor. Cada um deles exercia uma função. Era uma visão de antropofagia. Um, com o olhar esgazeado, perdido e louco, segurava, no braço, um facão amolado e era guiado por uma mulher, a mais velha do grupo, que entendia um pouco de anatomia, a indicar-lhe as partes para cortar aquele corpo; a mais nova mordia-lhe o crânio, a sorver parte do cérebro, pensando assim em chupar toda a sua alma, enfraquecendo-a; outra, gorda, a rezar uma espécie de terço macabro, do anticristo, para segurar a parte mística da ação; o mais novo entre os homens mordia-lhe o braço já decepado, em lágrimas e risos; o mais velho segurava em uma das mãos uma espécie de diploma à primeira vista, mas, depois, percebi que era simplesmente uma procuração; na outra mão, movimentava moedas num pequeno baú como a sentir o prazer tátil daqueles metais; uma sétima jovem personagem, separadamente, anotava tudo, descrevendo a cena com interpretação própria, para que não houvesse nenhuma testemunha a relatar o real crime antropofágico. Era apenas uma visão.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O mercado de arte regional

Ao se esmiuçar o mercado promissor de arte no Nordeste, constatam-se aqueles que estão na liderança ou no olho do furacão: uma elite financeira, os que giram em órbita e usufruem do potencial desse circuito, e os artistas envolvidos no sistema, em várias gradações. Apesar de percebermos aqui, no Recife, um movimento positivo em torno de galerias, marchands e artistas, há muitas perguntas que podem ser feitas. Por exemplo: existe, de fato, um mercado consolidado, a exemplo dos países desenvolvidos, onde os preços e as obras dos artistas são avaliados por um processo que inclui as referências históricas, a invenção do autor, a influência estética sobre o seu tempo, etc.?

Quando pensamos em mercado de arte no mundo, voltamos o olhar a personagens importantes do século XX, que o dinamizaram com suas iniciativas marcantes. A começar por Peggy Guggenheim (1898-1979), que se tornou uma das maiores colecionadoras das obras dos artistas de sua época e os colocou no topo do mercado, como Jackson Pollock, Max Ernst, Wasili Kandinsky, Paul Klee e muitos outros; a sua iniciativa foi precursora de toda essa força que está hoje nas grandes sucursais da fundação Salomon R. Guggenheim. Filha de milionários norte-americanos, Peggy se empenhou em gastar seus milhares de dólares, com inteligência, em artistas promissores.

Outra personalidade, Georges Wildenstein (1892–1963), marchand francês que herdou do pai, Nathan, a tradicional Galeria Wildenstein, tornou-se um dos veículos mais dinâmicos no mercado de arte para a circulação das obras impressionistas e pós-impressionistas entre os colecionadores, principalmente norte-americanos, e deixou um lastro como um marchand essencialmente consciente da cultura e dos valores espirituais da arte.

Essas são algumas das referências que nós, nordestinos, procuramos imitar mantendo as características próprias, claro, com uma história particular. Aqui, no Recife, os comerciantes tradicionais mantiveram-se desde a década de 1960 e, ao longo do tempo, foram se aperfeiçoando, criando formas novas de adaptar o mercado à atualidade. Hoje, praticamente só a elite econômica procura obra de arte com preços razoáveis nas galerias; essa é uma realidade concreta. Na década de 1970, predominava a classe média, formada por profissionais liberais ou funcionários públicos, que conseguia adquirir obras através de consórcios ou de bons parcelamentos. Os proprietários que permaneceram no mercado consolidaram seus nomes e os estabelecimentos com sacrifícios, partindo de um ponto a outro, a passos lentos. Mas quem pretende iniciar nessa atividade terá que ter segurança financeira para poder bancar os riscos e os investimentos naturais; geralmente, estes são também provenientes da elite econômica.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O artista e o seu tempo

Naturalmente, o nosso mundo vive o ápice do conhecimento científico, tecnológico, e isso influencia todas as demais áreas do pensamento humano. Nem o Manifesto Futurista, em 1909, do poeta Marinetti, que exaltava “a beleza da velocidade”, como “um automóvel rugidor”, o “voo rasante dos aviões”, a “guerra ― única higiene do mundo”, imaginava a quanto chegaríamos: ao domínio das terras, dos mares, dos ares, deste planeta; e, fora dele, nessa inimaginável velocidade, alcançando e explorando o seu satélite, enviando sondas espaciais para saber de outras explosões criativas de mundos e nebulosas, penetrando no universo ínfimo dos átomos, desenvolvendo a nanotecnologia, revelando, assim, uma nova etapa da humanidade muitíssimo mais veloz do que a era do Cubismo, Expressionismo, Fauvismo e de todos os movimentos do início do século XX, inclusive do manifesto italiano, que influenciou o Modernismo brasileiro.

O artista de agora recebe esse impacto contemporâneo com agudeza em seu espírito e tem à disposição não somente todos os meios materiais e virtuais para dar vazão ao ato criador, como também as informações, que são múltiplas e intensas, advindas de conferências, livros, revistas, jornais, etc. Os meios materiais são as novas tecnologias em computação, em vídeo; são os veículos técnicos para as expressões plásticas, como tintas e outros. Essa revolução em processo – uma rede incomensurável de circuitos concretos para a criação – seria, no mínimo, estarrecedor para a cabeça daquele modernista ou de um renascentista que preparava todos os seus materiais. Nós, que recebemos todos esses recursos em mãos, não compreendemos o que significa preparar uma cor, uma tela ou um trabalho manual que exija mais habilidade ― o que, aliás, não está em voga em certas conferências.

Mesmo o artista vivendo o seu tempo, o que permanece é o pensamento individual, a elaboração da arte que escolheu e o caminho estético para desenvolvê-la; não se pode negar que o criador ou inventor tem o poder de selecionar as suas escolhas e discuti-las e, principalmente, de refugiar-se das ideias construídas em rebanho, extremamente nocivas, onde “todos turvam as suas águas para parecerem profundas” e poucos se atrevem a discordar do coletivo. Essas ideias estão difundidas em alguns setores da cultura, do poder político e do financeiro, que dão o aval em troca da publicidade.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A história testemunha os artistas


Claude Monet foi considerado um dos artistas mais felizes, principalmente quando adquiriu a sua propriedade em Giverny, na Normandia, criando, ali, os seus jardins, com um lago e uma vegetação inspiradores para o seu trabalho como longevo impressionista. Nesse ambiente, captou os reflexos das águas daquele lago, com a ponte japonesa, onde estavam os nenúfares que reproduziu ad infinitum, numa concepção plástica abstrata das mais belas e importantes no século 20, tendo como base as ideias e teorias que formaram a revolução do Impressionismo na segunda metade do século 19.

Também outro artista que transparecia uma harmonia estética e espiritual foi Henri Matisse, este um dos que mais influenciaram o mundo da arte no seu tempo, alcançando, com a poderosa verve, até mesmo outro sensível e genial artista, que reinou soberano em suas várias fases: Pablo Picasso.

Mas nem sempre a história testemunha uma felicidade na vida dos artistas. Um dos exemplos mais dramáticos foi o de Vincent Van Gogh, que, inicialmente, trabalhou na Goupil and Co., que negociava obras de arte e foi o seu primeiro fracasso. Posteriormente, fez a sua tentativa de “ser útil à humanidade” como pastor protestante, concorrendo para a função já com 24 anos, quando seus colegas eram todos bem mais jovens. Mesmo assim, foi reprovado pelos radicais instrutores religiosos que, por um ato de “misericórdia”, mandaram-no para uma região de pobres mineiros de carvão em Borinage, Bélgica. E foi quando demonstrou uma grandiosidade humana, doando àqueles mineiros tudo de si, inclusive sua casa e suas vestes, como um São Francisco enlouquecido. Ao abandonar a religião, seguiu a segunda reprovação, esta da família, principalmente do pai, dos irmãos e das irmãs, por ser uma espécie de vergonha na tradição protestante calvinista, com as suas maneiras “grosseiras” de estar na sociedade; apenas um deles, Theo, o mais novo, manteve uma grande amizade e correspondência com Vincent. Restou-lhe a arte, e aí inicia um caminho que todos nós sabemos: a glória de uma obra que resplende sobre toda a Holanda e o mundo, como um sol de genialidade, e, naquele país, os Van Goghs estão no topo por causa única daquele tido pelos seus, à época, como enlouquecido e vergonhoso artista.

Van Gogh, no seu percurso, conhece Paul Gauguin, outro artista que teve uma história de grandes realizações em sua obra, mas também o gosto amargo por abandonar uma vida burguesa provinda de suas atividades como especialista na área financeira. Todos os caminhos da miséria, com algumas exceções, Gauguin encontra e, nas palavras de sua própria esposa, Mette, era um verdadeiro canalha. Enquanto ele tinha a certeza de que estava deixando um patrimônio para a arte, imensurável, a família da mulher o considerava o pior de todos os maridos e pai. Só existia uma pessoa a quem Gauguin dedicava sua obra e seu sentimento: sua filha Aline. Para esta, quando da sua morte, dedicou a obra-prima — De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? (1897).

DIARIO DE PERNAMBUCO

sábado, 16 de julho de 2011

O Jardim das Oliveiras de Gauguin

O pintor Paul Gauguin se autorretratou como um Cristo no Jardim das Oliveiras, porque também a sua história foi eivada de martírios e sacrifícios. Ele tentou assemelhar-se ao Nazareno como num gesto místico, indo ao encontro daquele que sofreu todas as ignomínias de que os homens são capazes, como conduzir o semelhante ao cadafalso da dor profunda, do escárnio e da torpe hipocrisia. Obra belíssima, em tons e pinceladas gauguinianos, que representa o sofrimento do Messias antes do seu martírio físico, prosseguindo até a crucificação definitiva, que o tornou a personalidade mais discutida e seguida por suas ideias e princípios. Foi ali, no Getsêmani, que anunciou a vinda do traidor que iria denunciá-lo e prendê-lo, sendo este, o Judas, o símbolo da traição humana. Como está dito em Lucas 22, 44, “aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra”; sangue que prenunciou o sofrimento das torturas por que iria passar antes e durante a crucificação.

Mas essa dor no Getsêmani não representa somente a do Cristo e a do artista, mas a de todos os seres humanos que Gauguin pretendeu representar. Mateus 26, 37 diz que, “levando consigo a Pedro e aos dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e angustiar-se”, isto é, a angústia que a todo ser humano é possível alcançar. E no versículo seguinte: “Então lhes disse: A minha alma está profundamente triste até a morte; ficai e vigiai comigo”.

A pintura representa o Cristo envolto em ocre-escuro, sentado ao lado esquerdo — em tonalidades sombrias, com variações de lilás, azul, verde —, a cabeça baixa, cabelos e barba em tons vermelhos — para dar o destaque do ser divino e profético; as árvores em massas vermelhas; ao fundo, entre as oliveiras, algumas pessoas —, transparecendo imagens de discípulos fugindo covardemente. Todo o movimento da composição da obra é de dor e de uma luz crepuscular vespertina, porque esta é a luz para a ação das serpentes.

Gauguin era envolvido com muitas teorias místicas do seu tempo, inclusive cruzava em sua mente a teologia católica e a teosofia e acrescentava, à sua maneira, o anticlericalismo e a independência do seu pensamento sobre a vida e a morte. Com o vulcão dessa própria visão, interpretou a obra Cristo no Jardim das Oliveiras: “Pintei meu próprio retrato. Mas ele representa também a luta por um ideal, e um sofrimento tanto divino quanto humano. Jesus está completamente abandonado, os discípulos estão indo embora, e o quadro é tão triste quanto a alma dele”.

JORNAL DO COMMERCIO
OPINIÃO

terça-feira, 28 de junho de 2011

A arte e a medicina em Mano Victor

Mano Victor é como assinou os seus quadros; Maninho é como todos o chamavam numa só irmandade; e Dr. Edson Victor, o seu nome como ilustre clínico que atendia com a fraternidade imensa de quem tinha a missão natural de conquistar pessoas simplesmente pelos gestos sensíveis na prática médica, em que alcançava as medidas da arte, consolidada através do conhecimento e da experiência. Mano Victor, Maninho ou Dr. Edson Victor foi um ponto de convergência entre grupos e ideias; ele, como um sol, aquecia a temperaturas consideráveis, eliminando, assim, as divergências possíveis ou se destacava como uma das mais importantes presenças para os amigos de vários segmentos da sociedade.

Um artista nato e um médico por prazer. A ciência médica, para ele, servia, acima de tudo, como veículo para se aproximar da parte essencial e humana do paciente. Nada lhe importava mais que a felicidade de quem atendia; por isso, talvez, tantos pacientes também artistas o solicitavam para tratamento. Numa consulta, além da sua perspicácia como excelente clínico, interessava-lhe, principalmente, a história do paciente de forma mais ampla. Essa prática médica absorveu, como profissão, em grande parte de sua vida, o tempo de artista, mas, com os amigos artistas, escritores, poetas, jornalistas, atores, músicos, médicos, cientistas, alimentava-se permanentemente do espírito da arte e da cultura. O humor e a inteligência que lhe pertenciam atraíam esses companheiros, que partilhavam com ele, semanalmente, a bela e famosa sopa em sua residência.

Grande parte de sua arte foi direcionada a registrar as formas arquitetônicas antigas que as cidades de Olinda e do Recife ainda milagrosamente possuem. E lamentava que o Recife estivesse perdendo espaço, em função das construções verticais — quase sempre sem a beleza artesanal daquelas edificações com detalhes e ornamentos graciosos realizados por pedreiros artistas as quais Mano Victor registrava logo, antes que fossem demolidas. Por isso, intitulou Fachadas uma das séries fundamentais da sua obra. Mas também o mar, os barcos, as pessoas, as árvores e toda imagem que humanizasse o universo do seu trabalho estavam presentes nos motivos.

Maninho — este nome foi dado carinhosamente pelos familiares — expandiu-se sobre as pessoas e a cultura das duas cidades vizinhas; onde estivesse a manifestação da inteligência e da sensibilidade, o nome Maninho estava presente como testemunha e símbolo de que aquela exposição, peça teatral, apresentação musical, centros populares de cultura, etc., estavam alcançando os objetivos da qualidade preciosa. Nome que está impresso nas nossas mentes e que marcou presença no coração dos amigos e admiradores.