"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand
Francisco Brennand
terça-feira, 10 de julho de 2012
Vicente, o inventor
O pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899–1970) tinha o espírito renascentista em sua verve criativa, isto é, a diversidade do olhar sobre a arte, como os grandes artistas do quattrocento italiano; nele, estavam o pintor, o escultor, o artesão, o ilustrador, o poeta, o editor, o diagramador, o tipógrafo, o fotógrafo, o figurinista, o cineasta, o jornalista, o radialista, o professor, enfim, o inventor, como está nos versos de João Cabral de Melo Neto: “Que quando a mim/ Alguém pergunta/ Tua profissão/ Não digo nunca/ Que és pintor/ Ou professor/ (Palavras pobres/ Que nada dizem/ Dessas surpresas)/ Respondo sempre:/ É inventor/ Sonha ao sol claro/ De régua em punho,/ Janela aberta/ Sobre a manhã”.
Mas a parte central do percurso como criador foi a pintura, tendo o desenho como um elemento fundamental para construir as ideias nas linguagens que selecionava.
Em 1911, estava em Paris iniciando os contatos com a vanguarda parisiense. Esses primeiros anos, junto ao irmão Joaquim, deram-lhe a base sólida para formar pensamento próprio, mesmo com a influência que recebeu dos movimentos estéticos revolucionários. Nesse alicerce pôde ver a cultura do seu país como um dos motes importantes para a visão plástica que iria desenvolver na série de estudos indianistas, através da cerâmica marajoara, sendo um dos primeiros artistas brasileiros a se interessar pela vida e pelas lendas indígenas de forma mais sistemática. Ou seja, um dos artistas modernos a antecipar o ideário da Semana de Arte Moderna de 1922, como também um dos participantes da mostra paulista.
A década de 1920, no conjunto da obra de Monteiro, foi uma das mais criativas e sólidas, porque, além dos trabalhos representativos indianistas e da participação na Semana, realizou uma pintura também considerada definitiva para consolidar o pensamento pictórico do artista, com uma conotação plástica realçando os volumes das figuras, construindo um aspecto quase escultural da forma, partindo de temas religiosos, como A Crucifixão (1924), Pietà (1924) e, em seguida, trabalhando variados temas, como animais, assuntos proletários, alegóricos... É com essa técnica que Vicente é mais universalmente conhecido e representa a nossa cultura como um dos artistas mais férteis, deixando um patrimônio imensurável que não se resume só a esta fase: até o final do seu percurso, as suas realizações são múltiplas e seminais para todas as gerações de artistas que o sucederam, tornando-o uma espécie de unanimidade nacional como uma das árvores mais frondosas da arte brasileira.
sábado, 16 de junho de 2012
Picasso e Guernica
Quando no início dos conflitos da Guerra Civil Espanhola — 17 de julho de 1936 —, Picasso estava plenamente afinado com o governo republicano legítimo, que, vitorioso nas eleições, em fevereiro de 1936, retornou ao poder, democraticamente, como Frente Popular, contrariando os nacionalistas, falangistas — que eram os simpatizantes do nazifascismo – e os antirrepublicanos, apoiados por Franco, o chefe dos militares.
Foi encomendada, em janeiro de 1937, a Picasso, pela Frente Popular, a realização de um afresco para ornamentar o Pavilhão Espanhol da Exposição Universal, que seria concretizada no mesmo ano, em Paris. O bombardeio de três horas e meia à cidade de Guernica, no País Basco, comandado pelos alemães com o apoio de Franco, destruindo-a materialmente e, principalmente, ceifando vidas humanas, o que trouxe consequências dramáticas ao povo daquela terra considerada santa pela Espanha, fez Picasso mudar de projeto e consolidar a ideia de pintar uma obra com uma dimensão monumental, no conteúdo e nas proporções, que denunciasse esse crime contra a humanidade, de repercussão em escala mundial: representaria o horror da Guerra Civil Espanhola.
O artista se empenhou no trabalho com sangue, paixão e, sabendo da importância daquele momento e da sua história na arte, organizou as sessões de pintura e desenhos de uma forma que todas as etapas fossem registradas. Por exemplo, temos hoje registros, em todos os livros sobre o assunto, das oito fotografias que descrevem as várias passagens de Guernica. Para iniciar essas sessões, Picasso realizou 45 estudos rigorosamente datados. E foram cinco semanas ininterruptas para finalizar a grande obra. Cada etapa era uma transformação, um acréscimo ante o plano inicial. Também se utilizou do seu percurso pictórico. Era como se reunisse todas as fases, principalmente as que dão uma ideia do inconfundível estilo picassiano.
Picasso explorou, com óleo, os negros intensos, os tons cinza e o branco para dar uma passagem direta para a luz, numa tela de 349,3 x 776,6 cm. O cavalo é centralizado na composição como um elemento de forte dramaticidade; a cabeça do animal expressa algo de dor, de desespero; a língua é um elemento pontiagudo para dar mais ênfase à cena. Acima da cabeça, uma luminária, talvez como símbolo do olho, daquele que tudo vê, a iluminar grande parte da composição em linhas invisíveis e abstratas, que formam um triângulo partindo do centro. Embaixo, nas patas do cavalo, uma estátua quebrada em várias partes, simbolizando a destruição.
Ao lado direito, uma figura com as mãos levantadas para o alto e perfis com olhares desesperados, surpresos pelo acontecimento; à extrema esquerda, uma mulher segura uma criança nos braços, olha para cima, e a cabeça da criança inerte como se estivesse morta. Acima dessa mulher, o olhar de um touro para o espectador e o seu corpo perdido entre os negros e o cinza. Mesmo com toda a dramaticidade, há uma simetria de valores, como se tentasse harmonizar a dor humana.
domingo, 10 de junho de 2012
Cícero viu o mundo
Filho da aristocracia canavieira pernambucana, Cícero Dias, o pintor-poeta, como alguns críticos o veem, surgiu no mundo com um olhar agudo a todas as impressões que iriam enriquecer a sua obra, a partir da sua terra natal: a cidade de Escada. Ali viveu experiências de uma infância privilegiada dentro do universo rico de pessoas, da cultura local, do mar imenso dos canaviais, das terras dos engenhos Noruega, Contendas e Jundiá — em meio à arquitetura das casas-grandes —, de propriedade da família, principalmente o Jundiá, que foi, segundo o artista, a capital de sua infância: “Lá recebi o sopro da vida. A vida que levei nesses engenhos foi estimulante para as obras que mostrei mundo afora”.
Das terras da cana-de-açúcar, o jovem Cícero partiu, como era tradição nos engenhos, para estudar no Rio de Janeiro, e, estabelecido no colégio São Bento, o diretor informou aos pais que o aluno só se interessava em pintar. Quando souberam da notícia, perguntaram-lhe: “O que você quer ser?”. Com coragem, Dias respondeu: “Pintor”. Os pais ficaram “parados no ar”, mas terminaram aceitando.
É na Escola de Belas-Artes que a sua personalidade como artista se consolida, realizando uma obra com estilo independente e discordante do naturalismo que os acadêmicos apregoavam. Nessa fase, entra em contato com nomes importantes da história cultural do País, tais como Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Graça Aranha, Villa-Lobos, Lucio Costa, entre muitos outros que o admiravam por apresentar uma concepção plástica considerada única.
São os mesmos nomes que ficaram impressionados com a grande tela Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926–1929), que o colocou no centro e no palco da cultura no Rio de Janeiro, até mesmo de forma polêmica, porque alguns falsos acadêmicos entraram em guerra contra a obra. Esses artistas, no entanto, o apoiaram defendendo-o e incentivando-o. Nela, Cícero explodiu em imagens que lhe rondavam a mente: eram recordações do início da sua vida, histórias fantásticas; a sua força telúrica e transparência solar fazem lembrar um Chagall dos trópicos. Após a tela ser exposta no Rio de Janeiro, Cícero Dias foi motivado — com uma carta de apresentação a Gilberto Freyre — por Manuel Bandeira a expor suas obras no Recife.
O sociólogo encanta-se com os quadros do artista, e logo surge uma afinidade que permaneceria por longo tempo. Gilberto Freyre fez-lhe mostrar que os verdes que utilizava nas obras eram os dos mares pernambucanos, o que muito impressionou Cícero e o fez indagar-se: “Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros?”.
A partir daí, segue outra história: por questões políticas, é forçado a viajar para Paris, conhece artistas da Escola de Paris, Picasso, Léger, Jean Arp... E se torna o universal Cícero Dias.
sábado, 12 de maio de 2012
Tempos de Picasso
O artista Pablo Picasso (1881-1973) já fazia, com quatorze anos, uma pintura madura, com uma concepção privilegiada do olhar, apesar da tenra idade. Nesse período, influenciado pelo pai, Dom José Ruiz Blasco, pintor e professor de desenho, assinava as obras como Pablo Ruiz, a exemplo da pintura Primeira Comunhão, em cuja tela estão representados, segundo rígidos padrões acadêmicos, o pai e a irmã, Lola; com ela, foi admitido na Escola de Belas-Artes de Barcelona, onde se destacou como um dos estudantes mais talentosos.
O considerável acervo que a família conseguiu preservar dos primeiros ensaios de Pablo nas artes visuais, como criança e adolescente, foi posteriormente doado ao Museu Picasso: 213 pinturas a óleo sobre tela, cartão ou outros materiais; 681 desenhos, pastéis e aquarelas sobre papel; 17 cadernos de esboços e álbuns; 4 livros ilustrados de desenhos; uma água-forte; e diversos objetos. Num desabafo, Picasso diz de si próprio esta fase: “É bastante surpreendente que eu jamais tenha feito desenhos infantis. Nunca. Nem mesmo quando eu era um rapazinho”.
Tudo foi muito acelerado no processo de sua obra em 81 anos de trabalho e 92 de longa a vida, porque com 11 já estava criando obras, como atesta o acervo dessa época. Sua mente não comportava os cânones acadêmicos, estava muito além daquelas regras e do tempo, que não o acompanhava. Uma das últimas pinturas com esse perfil teve como título Ciência e Caridade (onde também estavam representados o pai e a irmã), pela qual recebeu comentários elogiosos e uma medalha de ouro em Málaga. Ainda ganhou outras medalhas na própria Málaga e em Madri, com o quadro Costumes de Aragão. Foi, então, incentivado a fazer o concurso na classe superior da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, em Madri, mas logo se decepcionou com aquele ensino acadêmico, abandonando a Academia para grande desgosto do pai.
À medida que Pablo vai se distanciando do universo acadêmico de Dom José Ruiz Blasco, assume o nome da mãe, assinando, aos poucos, P. Ruiz Picasso, P. Picasso ou simplesmente Picasso. É a partir daí que expressa a sua personalidade definitiva como artista. Em Barcelona, é aceito num círculo de intelectuais do café-cabaré El Quatre Gats, entre eles o seu futuro fiel secretário, Jaime Sabartés, o pintor Carlos Casagemas — que se suicidaria em Paris, o que para Picasso será um fato traumático a ponto de fazer uma obra em sua homenagem, Evocação: O enterro de Casagemas — e os irmãos Fernández de Soto.
Paris foi o seu mundo, estava destinado a ele. Foi ali que manteve contato com toda arte e com artistas que lhe dariam respaldo para ser o Picasso de sempre: com o cubismo, as esculturas, as experiências pictóricas, gráficas, deixando o gênio livre para inventar até o final da sua vida.
sexta-feira, 30 de março de 2012
Duchamp e a transgressão velada
Tudo começou com Marcel Duchamp, no início do século XX, quando afirmou que o seu urinol era arte e a inteligentsia cultural aplaudiu e institucionalizou que tudo o que dissermos que é arte, a partir de então, passa a ser um pensamento estético concretizado. O pioneirismo do artista francês não deixa de ser intrigante ao inventar que uma ideia vale mais que toda a prática da arte acumulada durante séculos: desde as cavernas — em que os artistas representavam a sua impressão ante um mundo repleto de caça, praticando a magia pictórica para conquistar o objeto de sua sobrevivência, representando-o como se fora já o animal capturado — até a sofisticada malha de gênios que deixaram marcas na pintura, na escultura, na arquitetura e em todas as pesquisas valiosas no âmbito da arte e comprovadas na história, presentes há séculos no imaginário do planeta.
Mas a transgressão que Duchamp veio instalar virou moeda corrente e, hoje, está consolidada e institucionalizada com a força e o poder do capital (quem diria!), dando respaldo junto a governos prontos a repeti-la à exaustão.
A transgressão institucionalizada virou tema de doutorados nas academias, inundando a mídia e a cabeça de toda uma geração cujo lema é violar. Mas o que ainda transgredir? Como tudo isso se tornou um sistema bastante fortalecido, não vejo nenhum daqueles que praticam essa meta atingir o centro desse poder avassalador, o que seria uma verdadeira transgressão; ao contrário, quando os importantes curadores dessa linha de pensamento visitam o nosso país, eis que toda uma plêiade de seres criadores se ajoelha e os reverencia como divindade e salvador da pátria quanto aos caminhos estéticos a seguir. Não, os devotos, a estes não se diz nada.
Creio que a National Gallery de Londres cometeu uma real transgressão na contemporaneidade ao montar uma mostra importantíssima para o mundo cultural — Leonardo da Vinci, Pintor na Corte de Milão —, que esteve em cartaz até fevereiro de 2012 e reuniu as mais importantes obras desse artista que deixou um patrimônio imensurável para a humanidade. Ainda bem que há o outro lado da moeda para transgredir a transgressão institucionalizada.
A volta aos grandes mestres universais é um fato e essa é uma das violações a uma institucionalização que já virou um “feijão com arroz” insuportável. No Brasil, temos pensadores que, corajosamente, se colocam na contramão dessa falsa transgressão, como Ferreira Gullar, com a obra Argumentação contra a Morte da Arte; Affonso Romano de Sant’Anna, com Desconstruir Duchamp; Luciano Trigo, A Grande Feira; e Ângelo Monteiro, com seu recente livro, publicado pela É Realizações Editora, Arte ou Desastre, obra de impacto para aqueles que pretendem se deliciar com os pensamentos do poeta e ensaísta nordestino.
Mas a transgressão que Duchamp veio instalar virou moeda corrente e, hoje, está consolidada e institucionalizada com a força e o poder do capital (quem diria!), dando respaldo junto a governos prontos a repeti-la à exaustão.
A transgressão institucionalizada virou tema de doutorados nas academias, inundando a mídia e a cabeça de toda uma geração cujo lema é violar. Mas o que ainda transgredir? Como tudo isso se tornou um sistema bastante fortalecido, não vejo nenhum daqueles que praticam essa meta atingir o centro desse poder avassalador, o que seria uma verdadeira transgressão; ao contrário, quando os importantes curadores dessa linha de pensamento visitam o nosso país, eis que toda uma plêiade de seres criadores se ajoelha e os reverencia como divindade e salvador da pátria quanto aos caminhos estéticos a seguir. Não, os devotos, a estes não se diz nada.
Creio que a National Gallery de Londres cometeu uma real transgressão na contemporaneidade ao montar uma mostra importantíssima para o mundo cultural — Leonardo da Vinci, Pintor na Corte de Milão —, que esteve em cartaz até fevereiro de 2012 e reuniu as mais importantes obras desse artista que deixou um patrimônio imensurável para a humanidade. Ainda bem que há o outro lado da moeda para transgredir a transgressão institucionalizada.
A volta aos grandes mestres universais é um fato e essa é uma das violações a uma institucionalização que já virou um “feijão com arroz” insuportável. No Brasil, temos pensadores que, corajosamente, se colocam na contramão dessa falsa transgressão, como Ferreira Gullar, com a obra Argumentação contra a Morte da Arte; Affonso Romano de Sant’Anna, com Desconstruir Duchamp; Luciano Trigo, A Grande Feira; e Ângelo Monteiro, com seu recente livro, publicado pela É Realizações Editora, Arte ou Desastre, obra de impacto para aqueles que pretendem se deliciar com os pensamentos do poeta e ensaísta nordestino.
quarta-feira, 28 de março de 2012
Goya e a Inquisição
No século XVIII, na Espanha, era impossível não se declarar católico, até mesmo porque o Santo Ofício, o braço fortalecido da Inquisição — que exercia maior poder no século XVII —, ainda disposto ao ritual de julgamentos e a incitar a acender fogueiras nutridas de carnes humanas para iluminar a própria obscuridade, estava atento a qualquer deslize e sacrilégios dos cidadãos comuns e de pessoas que representavam importância na sociedade.
Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.
Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.
A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.
Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pregavam a abstinência, hipocritamente.
Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.
Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.
Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.
A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.
Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pregavam a abstinência, hipocritamente.
Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.
quinta-feira, 15 de março de 2012
Michelangelo e Lourenço, o Magnífico
Foi no jardim de Lourenço de Medici, o Magnífico (1449–1492), “príncipe sem coroa de Florença”, que Michelangelo, aos quinze anos, o conheceu: uma das personalidades mais importantes do século XV, estadista e diplomata, soberano de fato da República Florentina no Renascimento italiano, patrono de pintores, escultores, arquitetos, poetas, filósofos e pensadores políticos, que o buscavam como grande mecenas e homem da cultura.
Michelangelo esculpia uma cópia da cabeça de um fauno antiga, e il patrono ficou impressionado com a inteligência e habilidade daquele garoto, que ainda estava recebendo a sua formação do escultor Bertoldo di Giovanni — que montou ateliê entre as sombras das árvores do jardim — após ter saído do ateliê do famoso pintor Domenico Ghirlandaio, onde aprendeu o ofício da pintura em suas várias técnicas, mas pensando sempre em esculpir. Naquele jardim, Michelangelo começou a estudar as esculturas greco-romanas colecionadas pelo Magnífico Lourenço, inebriando-se com a beleza e o paradisíaco estúdio ao ar livre.
O jardim, denominado Hortus Laurentii de Medicis, adornado de ciprestes, pinheiros e imagens clássicas, foi centro de atenções e presenças de arquitetos, pintores e escultores que fizeram história no Renascimento; entre eles, em épocas diferentes, Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci; este último, discípulo de Verrocchio, conviveu, em sua juventude, com a corte dos Medici, no palácio Via Larga, e recebeu as melhores influências, como os que viria depois usufruir, Michelangelo Buonarroti, um artista bem mais jovem.
Ao observar o fauno que Michelangelo havia terminado, Lourenço disse-lhe em tom paternal que a escultura parecia-lhe mais um jovem romano que um sátiro. O artista, então, trabalhou a peça retirando um dente e perfurando a gengiva, aperfeiçoando a ideia de um fauno; esperou no dia seguinte que Lourenço visse aquela representação, e, logo que o Magnífico a viu, interessou-se pelo jovem escultor e o admitiu em seu palácio, permitindo-lhe conviver com a cultura provinda dos seus habituais filósofos, poetas, artistas, arquitetos, políticos e todo o refinamento da corte, oferecendo-lhe instalações para que convivesse com os seus filhos e partilhasse a sua mesa, que, a época, era uma verdadeira distinção. Para Michelangelo, foram os mais felizes anos de sua tumultuada vida de artista independente e rebelde até mesmo ante o poder pontifício do extraordinário papa guerreiro Júlio II.
No palácio Via Larga, encontrou não somente a proteção primordial do Magnífico, como recebia as melhores orientações do escultor Bertoldo, que era responsável pela coleção dos objetos preciosos de Lourenço, além de gozar de sua amizade pessoal, era uma espécie de assessor para assuntos das belas artes no palácio. Também Angelo Poliziano — poeta e um dos pensadores admitidos pela corte dos Medici — exerceu uma forte influência sobre Michelangelo, sugerindo assuntos literários para os trabalhos em escultura, como no relevo Batalha dos Centauros, tema mitológico inspirado pelo poeta. Ali, o escultor formou a sua base para perpetuar o seu gênio em obras-primas que exerceram uma forte permanência no imaginário da humanidade, principalmente em nossos tempos decadentes.
Michelangelo esculpia uma cópia da cabeça de um fauno antiga, e il patrono ficou impressionado com a inteligência e habilidade daquele garoto, que ainda estava recebendo a sua formação do escultor Bertoldo di Giovanni — que montou ateliê entre as sombras das árvores do jardim — após ter saído do ateliê do famoso pintor Domenico Ghirlandaio, onde aprendeu o ofício da pintura em suas várias técnicas, mas pensando sempre em esculpir. Naquele jardim, Michelangelo começou a estudar as esculturas greco-romanas colecionadas pelo Magnífico Lourenço, inebriando-se com a beleza e o paradisíaco estúdio ao ar livre.
O jardim, denominado Hortus Laurentii de Medicis, adornado de ciprestes, pinheiros e imagens clássicas, foi centro de atenções e presenças de arquitetos, pintores e escultores que fizeram história no Renascimento; entre eles, em épocas diferentes, Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci; este último, discípulo de Verrocchio, conviveu, em sua juventude, com a corte dos Medici, no palácio Via Larga, e recebeu as melhores influências, como os que viria depois usufruir, Michelangelo Buonarroti, um artista bem mais jovem.
Ao observar o fauno que Michelangelo havia terminado, Lourenço disse-lhe em tom paternal que a escultura parecia-lhe mais um jovem romano que um sátiro. O artista, então, trabalhou a peça retirando um dente e perfurando a gengiva, aperfeiçoando a ideia de um fauno; esperou no dia seguinte que Lourenço visse aquela representação, e, logo que o Magnífico a viu, interessou-se pelo jovem escultor e o admitiu em seu palácio, permitindo-lhe conviver com a cultura provinda dos seus habituais filósofos, poetas, artistas, arquitetos, políticos e todo o refinamento da corte, oferecendo-lhe instalações para que convivesse com os seus filhos e partilhasse a sua mesa, que, a época, era uma verdadeira distinção. Para Michelangelo, foram os mais felizes anos de sua tumultuada vida de artista independente e rebelde até mesmo ante o poder pontifício do extraordinário papa guerreiro Júlio II.
No palácio Via Larga, encontrou não somente a proteção primordial do Magnífico, como recebia as melhores orientações do escultor Bertoldo, que era responsável pela coleção dos objetos preciosos de Lourenço, além de gozar de sua amizade pessoal, era uma espécie de assessor para assuntos das belas artes no palácio. Também Angelo Poliziano — poeta e um dos pensadores admitidos pela corte dos Medici — exerceu uma forte influência sobre Michelangelo, sugerindo assuntos literários para os trabalhos em escultura, como no relevo Batalha dos Centauros, tema mitológico inspirado pelo poeta. Ali, o escultor formou a sua base para perpetuar o seu gênio em obras-primas que exerceram uma forte permanência no imaginário da humanidade, principalmente em nossos tempos decadentes.
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