"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

domingo, 18 de outubro de 2009

A força plástica de José Cláudio

O tecido pictórico na obra de José Cláudio tem uma marca inconfundível, formada por uma trama de captações rápidas, diretas e precisas das coisas da natureza, através das ferramentas utilizadas pelo pintor, que se movimentam em suas mãos construindo o tom da sua visão plástica: como os toques dos pincéis — de preferência redondos — na superfície do suporte escolhido (telas, eucatex) que traçam vibrações na matéria da pintura, que volteiam, que pontuam, que riscam, que esmagam as pastas intensas de cores;   das espátulas que cortam em gestos uma cena , um registro qualquer; ou mesmo algum outro instrumento que o faça expressar o pensamento pictórico, como a utilização  dos  panos, na tentativa de apagar uma solução imprevista no trabalho, e  que o faz, de imediato,  deixar, naquela ação, uma  forma definitiva: o que ele pretende, na verdade, é o resultado, a captação do espírito e a concreção do que ver, nada de soluções óbvias que tragam uma acomodação, mas que escancare uma boa batalha para o espectador, indicando que a pintura veio com a força natural.

Os temas escolhidos para as obras foram se confirmando ao longo de sua história, desde quando convivia na loja do seu pai, em Ipojuca, onde tinha a oportunidade de observar o movimento do povo e desenhá-lo, nos papéis de embrulho, tentando captar as cenas diretas, frescas, um flagrante que permanece nas pinturas posteriores que é uma rede de forças que nos incita àquela matéria — que se faz carne nas representações dos frutos, das folhagens, do mar, da brisa marinha, dos pássaros, das nuvens, da luz… — para tocá-la com o prazer tátil, porque não se pode apenas contemplar uma pintura de José Cláudio como algo estável, ali tem uma vida, um movimento que o olhar percorre acompanhando cada centímetro de pincelada, como moléculas que se interagem em estado vibrante.

Essa captação assumida pelo próprio pintor — “Eu dependo como pintor do que flagrar…” — resultam, em todas as temáticas das pinturas, dois fatores que observamos de imediato: o primeiro é a matéria densa que constroem as formas, numa pincelada definindo um tronco de coqueiro, um peixe, um pássaro, um fruto, um rosto, uma passista do frevo numa cena coletiva; o segundo é a captação do que envolve esses elementos separados jogando-os numa luz, num ar, que parecem movimentar na estrutura do quadro — é quando vemos uma paisagem na qual os coqueiros balançam com suas folhagens; nos peixes, ainda frescos vindos do mar, brilham; os frutos prontos para degustação; os pássaros saltam ante o nosso olhar num espaço luminoso; corpos das passistas dançam ao som da música; e os retratos de pessoas que são colocadas numa verdade particular de sua natureza que sabemos que são elas por terem sido captadas em algo que transcendem a simples aparência física.

Soma-se a toda essa força plástica a sua visão de homem refinado, culto, que está presente em seu tempo, fortalecido dentro de uma tradição que não paralisa, mas impulsiona para o futuro, proporcionando-lhe uma liberdade de quem sabe o que está fazendo e nada o tira de sua meta de captar e dizer do olhar sobre as coisas. Por isso, conversar com José Cláudio e ouvi-lo sobre os grandes artistas, como quem fala de um companheiro de sua proximidade, também é uma arte. Revela-se íntimo, encontra coisas e fatos que nos surpreende, gravando em nossa memória, porque, principalmente, diz com propriedade. Quem desfruta desse outro aspecto do artista sabe o quanto é prazeroso conversar e dividir algum conhecimento com ele, porque também o artista tem a arte de ouvir e observar o que o seu interlocutor tem a acrescentá-lo.
O Museu do Estado de Pernambuco inaugurou, no dia 7 de outubro, uma retrospectiva do pintor, na qual podemos observar grande parte da sua produção, com um impacto digno de sua arte; e lançou um belo livro, de excelente feitura, com textos de Marco Polo sobre a obra e vida do pintor, paralelo à exposição, que destrincha as suas fases. Muitos artistas de várias gerações estiveram lá para cumprimentar o pintor, desenhista, escultor, escritor, José Cláudio, sinalizando a admiração e o respeito por um artista que dá uma contribuição avaliada com a dimensão que merece a sua obra.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Em defesa dos brinquedos artesanais

O Nordeste do Brasil é uma fonte inesgotável da criação do artesanato em nosso país, juntamente com outras regiões. Isso está bem claro para as pessoas e, principalmente, no meio acadêmico e governamental. Essa específica produção do universo popular é também uma das concretas riquezas do turismo nacional, que eleva essa atividade, na América Latina, como uma das mais importantes e comunica, para todo o resto do mundo, o imaginário de uma cultura diferenciada.

Além disso, há o aspecto do suporte social, o qual envolve milhares de pessoas que sobrevivem dessa via de produção. Assim, o artesanato conquista, a cada dia, um público consumidor, seja nacional ou estrangeiro, que nele encontra um prazer, levando as peças adquiridas como parte viva de nossa terra.
Em sua própria região, o artesão sobrevive com imensas dificuldades para vender e veicular os seus trabalhos, mas espera que esses produtos desenvolvam sempre o mercado específico e o faz com a preocupação de atender os consumidores da melhor forma possível, aperfeiçoando a sua arte, consequentemente, oferecendo o mais alto nível do seu trabalho para que clientes possam retornar e adquirir mais produtos. Muitas vezes, para tanto, o artesão envolve toda a família nessa empreitada, donde retira o sustento para os seus.

Dentro desse universo, há uma grande produção de brinquedos artesanais caracterizados por uma bela simplicidade, sendo alguns deles centenários, que se desenvolvem e acompanham gerações, auxiliando a criança na sua formação e motivando-a, às vezes, a imitar os brinquedos dos artesãos, pelo contentamento de manuseá-los.

Os brinquedos artesanais fazem sucesso, hoje, em todo o País, porque têm a marca direta das mãos do artesão e a sua criatividade, que estimula a inteligência, humanizando as brincadeiras. Talvez, a amplidão desse segmento do artesanato tenha despertado alguns incômodos e incentivado, através de denúncias, os órgãos competentes a atuarem com severa fiscalização; como, por exemplo, está acontecendo aqui, em Pernambuco, impondo dificuldades no trâmite das vendas desses brinquedos, prejudicando, assim, o artesão na sua subsistência.

Cremos que há um equívoco, quanto ao foco social, em se ter a mesma legislação sobre os brinquedos feitos por artesãos e os fabricados por grandes indústrias. Cabe aos nossos legisladores observar esse assunto, porque se trata, no primeiro caso, de objetos do artesanato para utilização como brinquedos. Pois não se pode comparar, em termos de fiscalização e cobranças de impostos, por exemplo, um brinquedo criado pela tradição secular que é o artesanato — uma das expressões do povo que dinamizam a sua cultura — com a série de brinquedos fabricados por máquinas respaldadas por poderosos recursos, infinitamente superiores aos dos artesãos de todo o Brasil.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Memórias da Pele

Intitulei esta nova série de Memórias da Pele, buscando um significado na solidão do mergulho na pintura.
No meu primeiro salto para esse exercício no caminho pictórico, e com os conceitos da arte, busquei, quando jovem, encontrar um paraíso espiritual, talvez águas límpidas e temperadas, na paisagem incomparável, numa ideia à Paul Gauguin. Mas a surpresa foi me deparar com lavas, revoluteadas, nada que lembre um paraíso calmo e translúcido, apenas movimentos semelhantes a braçadas numa matéria vulcânica, como na tentativa definitiva de sair de uma espiral que apresentasse sempre uma equação interminável, como se fosse, a resolver, um inferno dos símbolos e dos números. Porque, a pintura, nunca nos deixa em paz, quando estamos tão próximos dela. E surpreendo-me ouvir de algumas pessoas que a pintura não tem mais o que dizer; aliás, já disseram a mesma coisa no século passado, várias vezes…

Mas para mim a pintura permanece com múltiplas questões, atraindo com a força que lhe é natural. E essas afirmações nunca me impressionaram nem me convenceram, porque eu testemunhava, com a própria experiência, que aquilo era uma inverdade. E não seriam as palavras autorizadas e influentes que iriam me convencer.

Ainda bem que o artista tem o seu universo e, quando está em seu momento de trabalho — refiro-me aos que desenvolvem o seu pensamento —, acredita naquilo que, para muitos, seria algo desprezível; e a história de muitos artistas vem corroborar o que digo.
E o que também publicam hoje é que a pintura está “retornando”; quando não é nenhuma novidade para mim: continuo coerente, como outros artistas, realizando a pintura de forma independente.
Ao utilizar o couro do boi para as impressões nas grandes lonas dessa série, pensei que seria como um pincel que deixasse as marcas de um conceito que voltasse o olhar para a experiência da pintura dos nossos ancestrais e para o gesto que pudesse registrar símbolos do sangue, da carne, da vida e da espiritualidade, como se abrisse um livro passando suas páginas numa velocidade que mostrasse todas as ilustrações em uma percepção de palimpsestos nervosos que desse uma ideia compacta de conjunto da História, desde as primeiras pinturas em que se desejava a caça, na invocação da magia, ao conceito que vivemos, hoje, da imagem e do pensamento plástico, existente em nossas mentes.

A cor predominante é trabalhada numa exaustão em que procuro tirar dela não somente a sua carga simbólica, mas as suas vibrações naturais umas sobre as outras num ritmo pensado e elétrico, para entrelaçá-las e equilibrá-las nas forças. A cor terra queimada como sombra da carne, da matéria, para ressaltar as marcas negras da forma do couro inteiro e das partes que recortei dando forma às máscaras, aos símbolos geométricos, a cabeça e as patas do animal, nas quais faço referência a Picasso, do seu “toro” majestático, em Guernica, que vibra na mente como um dos maiores símbolos da arte do século XX. Introduzi impressões com outras cores para sugerir um dinamismo e sair do quase monocromatismo, que desse outras visões, na mesma série, como os vermelhos puros, os ocres, os dourados, os bronzes, os azuis, deixando os seus significados produzidos pelo inconsciente.

Aos poucos, à medida que os trabalhos eram realizados, tentava decifrar o que realmente estava fazendo; só hoje consigo, de fato, uma leitura aproximada e ter um olhar mais apaziguador, porque, no processo de construção, vem-me sempre um dado impulsionador para realizar “aquela” específica obra, sem uma razão aparentemente racional. As imagens, as texturas, as cores, o motivo, aparecem sem nenhuma conotação clara, mas obscura, talvez vindas das manifestações da memória, que depois se aclaram na compreensão natural da vida.

Olinda, maio de 2009

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Mamam é nosso

O Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) tem como ação expandir — principalmente no Recife — as manifestações artísticas e culturais que nos atingem na contemporaneidade e, como o nome aponta, na mesma medida, as do modernismo. É um agente importante das informações da história atual e, por conseguinte, supõe-se (ou deveria ser) conectado aos artistas e produtores que a realizam: o Museu não poderá fugir da missão primordial de convergir com essas forças múltiplas da cultura visual e plástica no município.

Desde o seu início, como Galeria Metropolitana de Arte Aloísio Magalhães, a sua participação tem sido fundamental na tentativa — ainda não alcançada — de se entrelaçar à sociedade e à comunidade artística, para que se torne uma instituição viva.

O Museu é nosso, queremos todos vê-lo cada vez melhor com permanentes ações que facilitem a participação dos vários segmentos artísticos e sociais, liderados por uma direção que pudesse consolidar uma estratégia na qual unisse as diversas opiniões para os campos de sua atuação.
O que é fundamental, em um museu, é a voz do artista, a dos que pensam a arte em sua cidade, e a da sociedade que freqüenta as suas salas: sem essa participação, estará sempre em águas mornas, na inutilidade do pretenso elitismo controlador, desprezando os talentos que poderiam acrescentar ao crescimento da instituição.
Portanto, é preciso convocar essas pessoas que podem realizar um museu para encontros, debates, palestras, fóruns, seminários, etc., e dar-lhes uma injeção de ânimo para entrarem em ação efetiva de plena contribuição ao Mamam, como é a tendência universal da prática dos museus, no mundo desenvolvido, porque, acima de tudo, o museu é a casa do artista e do público.

Não se pode concretizá-lo sem essa participação democrática, que deveria agir com plena liberdade, autonomia cultural, sem a subserviência a curadores que tentam influir (e influem) em outras regiões, cumprindo, os daqui, o papel de discípulos, enquanto aqueles se aliam aos grandes e poderosos internacionais que lhes ditam o que devem fazer e pensar em seus países: constituem a hierarquia da curadoria, que inicia com os curadores municipais; em seguida, os estaduais, os federais, os continentais e os intercontinentais…

Nós entendemos que deve haver uma oxigenação cultural com outras regiões, outros artistas e curadores, isso é saudável e natural. Ali, estiveram em exposição obras de grandes nomes internacionais, como as gravuras de Picasso; as de Goya; as de um dos nossos maiores gravadores nacionais, Gilvan Samico; as esculturas de Rodin; as pinturas de Monolo Valdés; e as de Jean-Michel Basquiat, e a participação de curadores que contribuíram, nessas amostras, com mérito. Mas o que é prejudicial são as oxidações nocivas, paralisantes, da hegemonia de curadores que não acompanham as expressões e particularidades da história da arte local e do Nordeste. Basta o bom senso para ter uma visão aberta e definir o caminho do meio para a ação do Mamam.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Uma visão sombria do Recife

Imaginemos o centro do Recife sendo preservado desde a segunda metade do século XIX, e os bairros circunvizinhos, ampliando a cidade num crescimento horizontal, respeitando e dando ênfase à sua história urbanística inicial, com seus edifícios, ruas, pontes, cais e outros recantos; seria pensar uma cidade que apontasse uma beleza tropical incomparável.

Mas o nosso caminho foi o inverso: começamos a destruir grande parte da cidade que poderia lembrar um Recife como vemos em fotografias antigas. Com a ânsia da modernidade desorganizada, entendemos que aquelas velharias de edificações teriam que ser destruídas para surgir um novo Recife e construímos estruturas que são verdadeiros aleijões, hoje, na paisagem urbana no centro de nossa cidade. Deixamos, apenas — e ainda damos graças! —, significativas obras, talvez porque não pudemos arrancá-las facilmente, como os fortes, as igrejas mais importantes e o Bairro do Recife, que ainda estava ativo no início e na metade do século XX.

O que segura a impressão de beleza da nossa cidade é, principalmente, a sua paisagem vista por cima, aérea, que nos dá a oportunidade de contemplar os rios e as suas pontes, as ilhas e o imenso mar que banha o seu litoral. Porque, na hipótese de aterrissar ali, na Av. Guararapes, e caminhar pelo centro, teremos uma decepção! As suas calçadas tristemente malconservadas; os edifícios sem uma fiscalização eficaz — se quiserem constatar, entrem em um deles e verifiquem as instalações elétricas —; a sujeira nas ruas, com plásticos e papéis de toda espécie; e a poeira característica da falta de limpeza urbana. O centro do Recife está numa aparência que nos sensibiliza como artista. Não sabemos se está a caminho para se tornar um só entulho. Basta olhar a Av. Dantas Barreto, que não sabemos exatamente para que veio, porque é uma obra dantesca que ficou para sempre instalada no coração da cidade. Para realizar aquilo, destruímos quase toda uma memória, com a sua igreja, a dos Martírios, e a tradição natural do bairro de São José. Lastimável.
A impressão que temos é que empurramos essa paisagem urbana com a barriga, sem nenhum planejamento. É como se a cidade estivesse em estado quase terminal, nesse aspecto. Como se não tivesse um jeito, nem político nem científico, para consertar as coisas. Os urbanistas franceses estiveram aqui e tentaram ajudar com a experiência deles, lá em Paris, num convênio com a Prefeitura, que não sabemos no que deu. Mas preferem, os daqui, dizer: “Vamos emendar!”. Essa é a ordem, presumimos. Às vezes, podemos — porque se supõe que há emergências para certos assuntos — até consertar nessas tentativas, porém muito raramente, claro, e temos as desculpas prontas para defender o administrador se o coitado não for bem assessorado, porque a chance é de não resolver da melhor maneira. Como, por exemplo, o calçadão de Boa Viagem. Tiraram as pedras portuguesas e colocaram as ridículas lajotas de cimento, que destoam da paisagem marinha, quando antes existia o desenho tão poeticamente pensado de barcos sobre as ondas. Como denunciou, com propriedade e conhecimento, no artigo Pedras portuguesas, o artista e crítico Raul Córdula, uma das mais fortes expressões da arte nacional: “No meio cultural não se troca seis por meia dúzia. Um símbolo visual criado por alguém e aplicado no dia-a-dia das pessoas não pode ser simplesmente trocado por outro de outra autoria, a não ser que esta troca seja justificada por razões importantes…”. Aliás, uma obra pobre na concepção: bastava ampliar o que já tinha sido feito; mas uma das coisas necessárias para os políticos é mostrar que está quebrando, para dizer que está fazendo, e tome gasto!

“A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal”, constatou Baudelaire, no século XIX, olhando para as cidades européias, que são sumamente preservadas, principalmente quanto ao aspecto cultural. Só que, aqui, não só se muda, como se tenta destruir a memória material de nossa cidade. É a força de um inconsciente político que não sabemos donde partiu. Se cada cidadão contar os prédios que consideraram belos que, hoje, não se vêem mais e que lhe trazem uma recordação qualquer, verá que a lista ficará imensa. Percebemos que, para nós, o centro do Recife não tem a expressividade que deveria ter e, atualmente, as cores estão bastante pingadas com negro-de-marfim e a predominância é o cinza.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Wellington Virgolino, a marca inconfundível

O Atelier Coletivo (1952–1957), que foi o desdobramento, ou a criação, da Sociedade de Arte Moderna do Recife, nascido numa espontaneidade de um grupo de jovens artistas ligados àquela sociedade, sob a orientação de Abelardo da Hora, incorporou uma dimensão que supera a sua matriz na visibilidade e proporcionou, para muitos desses artistas, hoje consagrados, um impulso na consolidação das suas obras; por conseguinte, uma importância na história da arte em Pernambuco e no Brasil. Deve-se isso ao fato de ter sido uma oficina prática da arte moderna, com idealismo e vontade, descrevendo o universo nordestino por dentro, falando do povo, do seu movimento no trabalho, na religião de origem africana, nos tambores expressivos dos maracatus, no carnaval, na relação social, nas lutas políticas; enfim, da gente operária que faz a vida produtiva e a cultura de uma nação.

Foi ali que Wellington Virgolino (1929-1988), junto aos companheiros, encontrou o seu destino como artista. Além das sessões de poses rápidas com modelos para captação no desenho, incentivado por Abelardo, aquele ambiente também lhe deu a oportunidade do contato com os materiais mais sofisticados, como o suporte devidamente preparado, a aplicação da tinta, o diluente, a mistura das cores, a composição, a idéia do que realmente era arte. Até então, só desenhava porque era uma necessidade espiritual, um imperativo de sua natureza desde os tempos de estudante, fazendo sucesso entre os colegas com as caricaturas dos professores, realizando para estes os cartazes solicitados em função do encaminhamento didático nas aulas, mas tudo sem uma direção concreta, claro, de uma obra de arte. A base no desenho era-lhe nata, não havia nenhuma dificuldade em representar a figura humana e movimentá-la, se desejasse. A segurança estampava-lhe na força natural do jovem atraído por uma arte que ainda não conseguia perceber o que e onde alcançar com aqueles traços.

O exercício permanente era tentar descrever e flagrar o movimento do povo, dignificando-o à maneira dos muralistas mexicanos José Clemente Orozco, Alfaro Siqueiros e Diego Rivera, que na Revolução Mexicana utilizaram obras monumentais para tornar a arte acessível às grandes massas populares, transformando-as em  veículos de conquistas políticas. Rivera se sobrepõe aos outros muralistas como mote de inspiração no Atelier, porque José Cláudio (como narra em seu livro Memória do Atelier Coletivo) conseguiu, através de um amigo, um livro com o título Diego Rivera, com reproduções de obras do pintor, produzindo uma forte influência sobre grande parte dos membros, inclusive o próprio Abelardo, satisfeito com essa permanência de Rivera que vinha ao encontro dos seus ideais e a dinâmica que implantava em suas orientações.
Assim como na obra de Portinari, também os pernambucanos queriam dar uma contribuição à efervescência de idéias tão em voga nas artes plásticas, na década de 1950, que faziam os lápis e pincéis desses jovens artistas darem formas às figuras representadas dos trabalhadores, homens e mulheres do povo, exaltando-os na representação física, alargando os volumes dos braços e das pernas num simbolismo do trabalho exaustivo, em cores terra, ocre, soturnas e contornando-as, às vezes, com o negro para ressaltar as posturas, os movimentos dos corpos. Estavam unidos, os artistas, no mesmo idealismo, não havia o sentido de competição declarada, estavam para compartilhar o mundo que viam no Nordeste, em particular — mas que refletia todo o País —, como a dizer que pretendiam torná-lo belo e justo, numa harmonia entre a poética e a sobrevivência.

“Não aceito a idéia de um artista divorciado do povo. É o mesmo que se separar da própria arte. Sou e pretendo ser um pintor popular”, disse Wellington, em 1955, numa entrevista significativa ao jornal Evolução, em que indicava claramente o espírito do Atelier e a formação que recebeu, preparando-o para o caminho que pretendia trilhar. Os trabalhos que representam essa fase são plenos de um vigor especial e consciente, de forte expressividade, representando o trabalhador imponente, seguro, dono de um mundo ideal; sem nenhuma hesitação, o pintor dava-lhe uma vida que poderia surpreender aquele trabalhador por ser representado com tanta dignidade nos quadros, sabendo que era pouco remunerado naqueles anos de 1950, e sofrivelmente assistido — como hoje — na educação e na saúde. Os títulos das obras falam também dessa visão: Pescadores do Capibaribe, Calçando a rua, Cortadores de Cana, Calceteiros, Estivadores, Acidente do Trabalho, Engomadeiras, Emigrantes e O tirador de cocos.

Desde a época do Atelier, Virgolino demonstrava uma disposição no desenho, com um forte traço, lembrando — além dos muralistas mexicanos —, as histórias em quadrinhos, de forma desenvolta, como num natural gesto de sua verve criadora. Sentia-se motivado quando a oportunidade de desenhar lhe surgia e captava a forma humana e as coisas com uma característica segurança. Solicitassem dele, os amigos poetas, escritores e jornalistas, um desenho para ilustração, ele, com um sorriso largo na aceitação da proposta, iniciava logo o trabalho pensando em dar forma concreta, visual, à narrativa do autor ou a um tema para desenvolver nas comemorações públicas.

Numa reprodução no noticioso Imprensa Popular com data de 9 de outubro de 1954, na II Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, destaca-se, atrás dos conferencistas, um trabalho de grandes proporções realizado pelo artista e, abaixo, na página, registra a caneta: “O mural que decora a conferência é de minha autoria”, com um certo orgulho e a vontade inconsciente de tornar material e histórica aquela presença da obra artística, talvez prevendo que o sopro dos fatos quase sempre apaga, ou pretende apagar, as ilustrações dos artistas. Também em outubro do mesmo ano, na comemoração do 30º aniversário da Coluna Prestes, na Folha do Povo, junto ao seu irmão mais novo — o artista plástico Wilton de Souza (um dos mais atuantes membros do Atelier), presente com um desenho vigoroso, reproduzindo os armados seguidores da Coluna —, Wellington desenha Prestes montado num cavalo igualmente heróico (pelo menos passa essa idéia) domado pela força do braço do personagem, segurando com a outra mão, a direita, um rifle e, atrás deste, mãos levantando rifles e estrelas surgindo em perspectiva, finalizando em seguida a representação do Cavaleiro, e, abaixo, com suas letras bem desenhadas, escreve: Ilustração de Wellington.
Vê-se, nesse trânsito entre o desenho e a pintura, a habilidade que tinha Wellington Virgolino na ilustração, na história que narra pela imagem; fator que se acoplou ao seu trabalho em todas as fases. A impressão que temos é de que, na concepção que o envolvia em cada obra, estava presente um enredo, um fato, numa conotação do humor, do trágico, do romântico, do sensual, do histórico, até mesmo do bíblico. Ele era um pintor que queria ser direto, sem nenhum esoterismo ou mistério técnico ou que demonstrasse um laivo sequer de intelectual discutindo estética em seus quadros, era ele mesmo pleno com o que realizava, partindo, quase sempre, de uma ponta do nirvana, livre dessas prisões que escravizam os espíritos saturninos, filosóficos.

Isso é tão presente em sua obra que, na VI Bienal de São Paulo, em 1961, ele procurou, por todo o edifício da exposição, os seus trabalhos, encontrando-os, com muito sacrifício, embaixo de uma escada, junto a artistas como Heitor dos Prazeres, Manezinho Araújo, entre outros pintores primitivos. Os críticos vigentes colocaram-no junto a esses artistas julgando-o um deles no estilo; e o pintor, meio aturdido, sem entender a ligação, continuou feliz por estar ali como o único escolhido, em Pernambuco, para participar do grande acontecimento das artes plásticas internacional, também pelo fato alvissareiro de ter vendido todos os trabalhos expostos, através da Galeria Astréia, uma das mais importantes, à época, em São Paulo. Ainda mais: saiu de São Paulo com uma boa encomenda de obras — sim, encomenda, como um profissional que lutou sempre para vender os seus trabalhos, seguindo o exemplo da humildade e da genialidade do artista-artesão do Quatrocentto florentino, a quem se encomendava na sua bottega não somente a excelente pintura ou a obra-prima escultórica, mas tudo o que se realizava naquela fábrica de engenho: um serviço de arquitetura, de ourivesaria, de fundição; ornamentos para cofres e cavalos; candelabros; desenhos para tapeceiros e bordadores; louças de noivado; peças de armadura; sinos; e outros utensílios, e, com os séculos, não diminuiu, na história, nomes como Donatello, Botticelli e Ghirlandaio, por fazerem essa concessão.
A partir da Bienal, o trabalho de Virgolino entrou em circuito no mercado de arte nacional, entre o Rio, São Paulo e Pernambuco, despertando o interesse também da crítica, numa enxurrada de textos sobre a sua obra. Sheila Leirner indaga: “Seria o pintor um primitivo, um cartunista? Difícil enquadrá-lo, Virgolino é um pintor sério… de interpretação própria, rica e imaginativa”. “O mundo de Virgolino se espraia por nossas margens contidas e aplica à nossa contenção a gota de mel da transfiguração… estamos diante de um artista que, antes de mais nada, conquistou o privilégio de possuir uma linguagem própria e inimitável”, escreveu Walmir Ayala. E diz Frederico Morais: “[...] trata-se de um pintor com bastante personalidade, que faz uma pintura figurativa diferente, lembrando, às vezes, alguns artistas primitivos, mais pela forma do que pela cor. A matéria é curiosa, e o tratamento da figura, original”. “Na pintura atual de Wellington Virgolino, resultante de um desenvolvimento de cuidadosa coerência, mesclam-se funcionalmente a base arcaica popular e os sinais armados de contemporaneidade. Seu fundamento telúrico-crítico concretiza-se mais no registro da festa, da harmonia e do lirismo do que na dinâmica quase expressionista do primordial e do fantástico”, conceitua Roberto Pontual.

O imaginário poético de Wellington Virgolino percorreu vários temas, como os Signos do Zodíaco (1969 e 1978), O Circo (1971), A Bíblia (1973), Brincadeiras da Infância (1979), Os Sete Pecados Capitais (1977), uma série sobre a enchente que ocorreu no Recife, descrevendo telas boiando, etc., outra sobre Santana — a mãe de Maria —, abordando-a em várias circunstâncias, e obras avulsas que falam do cotidiano com títulos como A Máquina de Escrever, O Jardim, O Telefone, O Namoro, O Viajante, O Iluminador, Piloto de Provas, Uma Tenista Indecisa, Jovem Aprendiz de Juiz e outros, fazendo sucesso no mercado de arte que o marchand Carlos Ranulpho, ao longo dos anos, acompanhou como seu agente imediato, a quem Virgolino se referia, com humor, quando as pessoas iam procurá-lo no ateliê para comprar diretamente, dizendo “Fale com o meu empresário”.

Firmaram contrato verbalmente, mas mantinham uma relação profissional respeitável pela fidelidade que ambos tinham em cumprir as suas partes; construíram uma amizade, e o marchand se emociona ao lembrar o artista, afirmando que praticamente iniciou as atividades com Virgolino em 1969, realizando a primeira exposição associada à Galeria Ranulpho, que se instalava à beira do Capibaribe, perto do antigo cinema São Luís: “O resultado foi muito bom”, diz o marchand, “vendemos a exposição toda, com uma excelente divulgação”. Desde então, propôs um contrato de exclusividade: Virgolino trabalhava e entregava a Ranulpho toda a sua produção. Essa sociedade veio a calhar: Wellington necessitava de um intermediário para negociar a sua obra, pela imensa demanda, para poder trabalhar com mais tranqüilidade, sem a preocupação de ter que receber os clientes, deixando o trabalho do ateliê; e Ranulpho necessitava de um artista que pudesse dar impulso às atividades como marchand, com o prestígio de um Virgolino, que permaneceu, ao longo da história da galeria, o artista de maior interesse de circulação nas vendas, apesar de outros também participarem de exposições individuais e coletivas, como os pernambucanos Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e outros do Sudeste.

No seu trabalho, Virgolino, na essência, continuou o mesmo: o desenho materializado na pintura, com a linha em contorno delineando as figuras e contando as suas histórias; a cor transborda e sai daquela economia dos terra e ocre dos primeiros tempos do Atelier. O que ele explora nas obras seguintes são as idéias que dão à sua visão uma alegria, uma transfiguração, com a mente voltada para as lembranças, como uma criança que se diverte falando de um mundo todo especial, na naturalidade que alcança o espanto, como quem viu uma parte do paraíso e quer transmitir, aos olhares e coisas reais, um humor próprio dos seus pincéis. Talvez, como Monet — fazendo um paralelo quanto à felicidade —, que pintava interminavelmente o lago de nenúfares no jardim em sua propriedade, porque também aquele pintor encontrou o belo; Wellington permaneceu íntegro com o universo que construiu, sem mudar uma só vírgula do seu texto pictórico, e dizendo simplesmente que essa era a maneira — e apenas essa — de expressar o seu pensamento na pintura, fazendo-se presente na história da arte de Pernambuco e do Brasil como uma marca inconfundível.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O poder onírico em Maria Carmen

Um dos pilares da obra de Maria Carmen é o desenho. Nele, iniciou o seu caminho como artista criadora com um universo próprio, único, que a fez percorrer uma espiral ascendente de realizações na pintura, na gravura, na escultura, na estamparia e na sua visão humana sobre as coisas e a vida. Tão surpreendentemente — como ela confessa, ao se sentir em estado de iluminação, quando dos primeiros passos nos desenhos — que não tinha consciência da importância das imagens que lhe saíam da mão, da magia encontrada na sua natureza, no seu castelo, nas suas moradas: animais partidos; corpos humanos; vegetais; mundos ínfimos; traços; pontos; ângulos; a noite; a luz; a explosão em lavas de um psiquismo que só esperava um nascimento; mapas não decifrados em palavras, mas para o prazer do olhar na teia de puro grafismo — o encontro do seu ser, sem máscaras, com uma verdade que não poderia ser negada.

Só os mais próximos, aqueles que têm um olhar límpido e crítico, despertaram-na da escrita automática, mostrando-lhe o valor daqueles desenhos realizados: “O bico da pena saía da sua mão como uma ave desesperada, ora navalha, ora facão, teias e ranhuras, o linear e as massas de claro-escuro, densidade às vezes indevassável e que não perdia a finura, copas que se abrem em transparências de fios de seda — um concerto para violino e orquestra —, uma inesgotável germinação de arabescos e seres surpreendentes, infernos que se multiplicam e que não poderiam ser forjados: Maria Carmen trazia a marca de uma autenticidade que talvez àquela época a ela própria escapasse” — como diria José Cláudio, na apresentação, em 1962, da exposição inaugural da artista, através do Movimento de Cultura Popular, na Galeria de Arte do Recife, pertencente ao Movimento.  E, nesse mesmo ano, recebe o Primeiro Prêmio de Desenho e Escultura, no Museu do Estado de Pernambuco. José Cláudio foi um dos primeiros a divulgar o trabalho de Maria Carmen em Pernambuco; posteriormente, em São Paulo, apresentou-lhe os amigos pontas-de-lança, como o desenhista, gravador, escritor e jornalista Arnaldo Pedroso d’Horta. Na mesma mostra, estavam as esculturas, fruto dos cursos orientados pelo escultor Humberto Cozzo, no final da década de 1950, no Rio de Janeiro.

Relacionar os desenhos e todo o seu percurso artístico a movimentos, estilos, escolas internacionais ou brasileiras é um trabalho que se distancia da realidade da artista. A similitude identificada é com o expressionismo — e alguns especialistas fazem menção ao surrealismo, pelo fantástico das imagens elaboradas em sua obra. Mas diríamos que Maria Carmen possui o seu expressionismo na maneira de ver e concretizar as coisas e os seres no desenho, na gravura, na pintura, na escultura: um expressionismo natural. É como um Vincent van Gogh, que, mesmo influenciado pelo impressionismo, querendo realizar obras impressionistas, não conseguia a essência daquele movimento, mas ser ele próprio, vangoghianamente, em pinceladas. Como Maria Carmen nos diz: “Só fui ter conhecimento dos movimentos artísticos e, especificamente, do expressionismo, depois da realização dos trabalhos; aí resolvi ler e visitar os grandes museus onde encontrava aquelas obras sobre as quais comentavam o parentesco com os meus desenhos e as minhas pinturas. Fiquei curiosa quando começavam a lembrar Chagall, Van Gogh, o expressionismo, e, alguns, o surrealismo — então, fui confirmar”.

Ariano Suassuna, na época da segunda exposição individual dos desenhos da artista, realizada no Masp, organizada por Pietro Maria Bardi, em 1964, relata sua impressão: “Os desenhos de Maria Carmen causam-me a sensação de que foram retirados — como acontece, aliás, com toda obra de arte verdadeira — de sua carne, de seu sangue, de suas entranhas. Lembro-me perfeitamente da grande impressão que me causaram, quando vi, pela primeira vez, aquelas estranhas formas que enchiam papéis enormes e que, de longe, pareciam abstrações terrificantes”. E o crítico francês Edouard Jaguer esclarece sobre o automatismo da sua escrita gráfica: “A mão de Maria Carmem, entretanto, diferente da dos médiuns, guia o sonho até nas suas ramificações pelo menos tanto quanto por ele se deixa guiar”.

A partir das exposições individuais, lança-se a intensificar os estudos contínuos no desenho. Alimentava-se da experiência em cada realização e encontrava os caminhos inesperados, uma força da natureza que a impulsionava, apresentando uma geometria circular, que alguns identificaram como “mandalas”, termo escolhido por Thermira Brito, ou “a loucura organizada”, no conceito de Adão Pinheiro, ou “magiado circulares”, na visão de João Câmara, e que Maria Carmem os intitulou simplesmente “redondos”.  É preciso ressaltar que o desenho permanece — mesmo quando constrói sua obra em outras técnicas e linguagens — fazendo parte, em separado, de sua produção. Neste ano, já foram realizados vários desenhos que lembram a escrita dos primeiros.

São Paulo foi a cidade que lhe ofereceu guarida, onde encontrou admiradores fiéis que lhe deram sustentação para toda uma realização nos 50 anos como artista. Excelentes admiradores, vale salientar. Intelectuais, artistas, marchands, jornalistas, críticos. A começar por Bardi, o diretor e fundador do Museu de Arte de São Paulo, que, entusiasmado pelos desenhos, pede-lhe para trabalhar com ele, no Museu, possibilitando-lhe um ateliê, e, dois anos após, organiza-lhe a exposição no Masp, consagrando-lhe no centro das atenções artísticas. À época, Maria Carmen publica os desenhos no jornal O Estado de S. Paulo, numa seção diária, atraindo o olhar mais exigente da metrópole. Um momento rico em seu percurso ao encontrar as afinidades e o apoio. O crítico Walter Zanini, acompanhando as publicações, interessa-se em conhecer a autora dos desenhos e faz-lhe a proposta de participar de uma exposição coletiva que circularia o mundo, do Grupo Austral do Movimento Internacional FHASES, inicialmente realizada no Museu de Arte Contemporânea da USP, importantíssima mostra que marcaria a história cultural da cidade.

O nascimento da pintura e da cor surgiu dos seus trabalhos de padronagem para estamparia — em fábricas de tecidos —, como desenhista e colorista, na companhia do poeta Orley Mesquita, em Pernambuco. Foi essa experiência (anteriormente ela realizava pintura direta no tecido para confecção de vestidos), com as misturas das cores para uma boa padronagem, que lhe deu a intimidade com as nuanças, os contrastes, os contornos, a composição plástica modelada. A partir daí acrescenta ao seu olhar, impondo ao desenho — tão familiar e obsessivo — outro fator que seria determinante como elemento de expressão: a cor. Mais uma vez aí a presença da ligeira similitude com o expressionismo, porque prossegue o desenho com o acréscimo das vibrações da luz e da cor e as pinceladas rápidas que brotam da sua natural concepção, percorrendo toda a superfície do suporte num só fôlego. “Nos meus trabalhos de pintura que realizei nesse período, eu vejo, hoje — não sei se os outros percebiam —, os desenhos e as esculturas e fiz questão que aparecessem com a força das cores e os reflexos dos volumes”, lembra Maria Carmen. Maria Isabel Branco Ribeiro testemunha o mergulho da artista na pintura: “[Maria Carmen] começou a pintar em 1972, e o sentido da cor em sua obra está relacionado ao trabalho que desenvolveu criando padrões para a indústria têxtil. A pincelada incisiva e a manutenção da linha de contorno são sobrevivências do desenho em sua pintura, que registra aspectos do cotidiano, da flora e da paisagem do Agreste.”

A pintura foi também o seu veículo libertador. A coragem com que penetrou nos mistérios pictóricos surpreendeu a todos. Maria Carmen encontrou na técnica do óleo — e, depois, da tinta acrílica — um veio natural, dando-lhe uma nova perspectiva. São frutos, nus, paisagens, partes da natureza, cabeças, atos de amor, flores, santos. Sempre a pincelada como um selo de identificação, uma escrita que ninguém lhe pode negar. Apenas num pedaço da pintura podemos reconhecer a autoria. Os olhos amendoados das cabeças, a quebra das regras anatômicas das figuras, os frutos feitos como corpos sensuais, as flores como sexos e a força que sai de uma luta entre pinceladas: nada se revela fácil, e ela acredita que dói, no ato criador, uma dor que liberta a luz e que faz a artista herdeira de uma tradição que vem desde as pinturas rupestres, da necessidade de a humanidade deixar o seu sangue impresso na criação. Renato Carneiro Campos, o amigo e extraordinário cronista que animava a vida cultural do Recife, disse sobre sua pintura: “Florais, santos, cópulas, nus, naturezas-mortas, estranhas cabeças judaicas, ela vai pintando, errando, acertando, dando a impressão, no conjunto, pelo menos a mim, de que se trata, sem dúvida nenhuma, de uma das maiores artistas que este país já possuiu”.

Três cidades foram importantes para a consolidação da obra de Maria Carmen: Recife, São Paulo e Olinda. Apesar de ter usufruído, no Rio de Janeiro, da convivência com outros artistas e, principalmente, das aulas de escultura — que lhe foram úteis para a modelagem e o volume, ainda lembrados na pintura, a exemplo do desenho que está presente em maior ênfase — com o escultor Humberto Cozzo e ter realizado exposições individuais em galerias importantes, foi nas outras cidades mencionadas que o seu trabalho encontrou um prolongamento de sucessivos fatos que deram a base, o lance e a estabilidade na sua vida como artista.
São Paulo deu-lhe a expansão e a solidez crítica, e o Recife, o encontro e início de um conhecimento construtivo com uma geração de artistas de primeiríssimo time que sustenta, até hoje, em valor, um produto inigualável e difícil de retornar com o mesmo entrelaçamento de trabalho e idealismo. Esses artistas, nos seus ateliês coletivos, compartilhavam idéias e concepções, reuniam-se em encontros. Fizeram história, a exemplo da criação do Atelier Coletivo, na década de 1950, liderado por Abelardo da Hora, e do Movimento de Cultura Popular. Em sua residência, na Rua das Crioulas, reunia-se a nata. Escritores, poetas, desenhistas, pintores, críticos e músicos. Uma verdadeira embaixada para os críticos que vinham a Pernambuco. Como também foi no ateliê de José Cláudio, com as famosas caranguejadas oferecidas aos amigos, recheadas de humor e música. E, sempre aos domingos, nos anos 1960, no Engenho São Francisco, na casa de Francisco Brennand.

Olinda, cidade que recebeu várias gerações de artistas, foi o contato e o prolongamento da convivência, através do Atelier +10, na Rua do Amparo, 164, com Vicente do Rego Monteiro, Anchises Azevedo, Jorge Tavares, Liêdo Maranhão, Montez Magno, Wellington Virgolino, João Câmara e Vera Bastos, sua filha. A cidade abriu-lhe a vegetação para o trabalho. As flores, os frutos, os troncos, o azul e o verde da paisagem deram-lhe o substrato para penetrar na pintura com prazer e intensa cor. E, até hoje, é lá que tem instalado o seu ateliê, onde exerce o ofício diariamente, atendendo ao universo que sempre esteve em turbulência no seu mundo interior e, no dizer de José  Cláudio, “[sendo] animista, acredita, como um bruxo, numa selva espiritual que a liga — e a todos nós — aos bichos, às pedras, aos espaços, aos seres vegetais, e a sua pintura é uma espécie de umbanda por meio da qual chama a divindade das coisas…”.