Imaginemos o centro do Recife sendo preservado desde a segunda metade do século XIX, e os bairros circunvizinhos, ampliando a cidade num crescimento horizontal, respeitando e dando ênfase à sua história urbanística inicial, com seus edifícios, ruas, pontes, cais e outros recantos; seria pensar uma cidade que apontasse uma beleza tropical incomparável.
Mas o nosso caminho foi o inverso: começamos a destruir grande parte da cidade que poderia lembrar um Recife como vemos em fotografias antigas. Com a ânsia da modernidade desorganizada, entendemos que aquelas velharias de edificações teriam que ser destruídas para surgir um novo Recife e construímos estruturas que são verdadeiros aleijões, hoje, na paisagem urbana no centro de nossa cidade. Deixamos, apenas — e ainda damos graças! —, significativas obras, talvez porque não pudemos arrancá-las facilmente, como os fortes, as igrejas mais importantes e o Bairro do Recife, que ainda estava ativo no início e na metade do século XX.
O que segura a impressão de beleza da nossa cidade é, principalmente, a sua paisagem vista por cima, aérea, que nos dá a oportunidade de contemplar os rios e as suas pontes, as ilhas e o imenso mar que banha o seu litoral. Porque, na hipótese de aterrissar ali, na Av. Guararapes, e caminhar pelo centro, teremos uma decepção! As suas calçadas tristemente malconservadas; os edifícios sem uma fiscalização eficaz — se quiserem constatar, entrem em um deles e verifiquem as instalações elétricas —; a sujeira nas ruas, com plásticos e papéis de toda espécie; e a poeira característica da falta de limpeza urbana. O centro do Recife está numa aparência que nos sensibiliza como artista. Não sabemos se está a caminho para se tornar um só entulho. Basta olhar a Av. Dantas Barreto, que não sabemos exatamente para que veio, porque é uma obra dantesca que ficou para sempre instalada no coração da cidade. Para realizar aquilo, destruímos quase toda uma memória, com a sua igreja, a dos Martírios, e a tradição natural do bairro de São José. Lastimável.
A impressão que temos é que empurramos essa paisagem urbana com a barriga, sem nenhum planejamento. É como se a cidade estivesse em estado quase terminal, nesse aspecto. Como se não tivesse um jeito, nem político nem científico, para consertar as coisas. Os urbanistas franceses estiveram aqui e tentaram ajudar com a experiência deles, lá em Paris, num convênio com a Prefeitura, que não sabemos no que deu. Mas preferem, os daqui, dizer: “Vamos emendar!”. Essa é a ordem, presumimos. Às vezes, podemos — porque se supõe que há emergências para certos assuntos — até consertar nessas tentativas, porém muito raramente, claro, e temos as desculpas prontas para defender o administrador se o coitado não for bem assessorado, porque a chance é de não resolver da melhor maneira. Como, por exemplo, o calçadão de Boa Viagem. Tiraram as pedras portuguesas e colocaram as ridículas lajotas de cimento, que destoam da paisagem marinha, quando antes existia o desenho tão poeticamente pensado de barcos sobre as ondas. Como denunciou, com propriedade e conhecimento, no artigo Pedras portuguesas, o artista e crítico Raul Córdula, uma das mais fortes expressões da arte nacional: “No meio cultural não se troca seis por meia dúzia. Um símbolo visual criado por alguém e aplicado no dia-a-dia das pessoas não pode ser simplesmente trocado por outro de outra autoria, a não ser que esta troca seja justificada por razões importantes…”. Aliás, uma obra pobre na concepção: bastava ampliar o que já tinha sido feito; mas uma das coisas necessárias para os políticos é mostrar que está quebrando, para dizer que está fazendo, e tome gasto!
“A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal”, constatou Baudelaire, no século XIX, olhando para as cidades européias, que são sumamente preservadas, principalmente quanto ao aspecto cultural. Só que, aqui, não só se muda, como se tenta destruir a memória material de nossa cidade. É a força de um inconsciente político que não sabemos donde partiu. Se cada cidadão contar os prédios que consideraram belos que, hoje, não se vêem mais e que lhe trazem uma recordação qualquer, verá que a lista ficará imensa. Percebemos que, para nós, o centro do Recife não tem a expressividade que deveria ter e, atualmente, as cores estão bastante pingadas com negro-de-marfim e a predominância é o cinza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário