"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

segunda-feira, 5 de abril de 2004

Entrevista para o Curso de Artes Plásticas UFPE

Entrevista realizada pelas estudantes Lílian de Carvalho Soares e Ceci Medeiros, do Curso de Artes Plásticas da Universidade Federal de Pernambuco, em abril de 2004, como pesquisa para estudos sobre História da Arte Pernambucana.


Como e quando o Sr. despertou para a arte?
Plínio Palhano – Nunca me preocupei em saber quando realmente despertei para arte; acho que sempre confundi arte e vida. Portanto, não tive tempo para me sentir despertado para a arte. O que aconteceu, na verdade, foi um primeiro contato com a literatura que envolvia a arte, como a história e vidas dos artistas, dos mais representativos e criadores. A partir dessas notícias históricas é que comecei, autodidatamente, a me interessar em trabalhar com a criação.


Qual apoio o Sr. recebeu quando decidiu ser artista plástico?
Plínio Palhano – Creio que o jovem quando se interessa por produzir algo que esteja ligado à expressão artística, ele tem mais vontade do que apoio – e isso é essencial para a sua vida inteira. É como se no início pescássemos esse apoio e terminássemos conseguindo, com a paciência daqueles que nos apóiam. Mas o importante nisso são as associações que o jovem cria com outros companheiros que idealizam para si o mesmo percurso ou paralelo; nessa associação, o jovem se fortifica e, certamente, encontra os mais experientes para apoiá-lo. No meu caso saí procurando em ateliês de artistas que já tinham uma estrada e encontrei, nos artistas José Cláudio, Francisco Brennand, Montez Magno e nos meus companheiros de mesma geração, uma fonte para alimentar e solidificar o meu caminho como artista.


Quais foram suas influências artísticas? 
Plínio Palhano – Por incrível que pareça, as minhas influências mais fortes estavam naquilo que eu conseguia pesquisar nas leituras; ficava fascinado com que os grandes artistas internacionais tinham conseguido formando movimentos, escolas, estilos, etc., e, claro, com o que acontecia aqui no Brasil, o que já tinha sido conquistado na Semana de Arte Moderna, em 1922, e todo o produto que decorreu daí, que levou a várias ramificações dentro da arte brasileira e latino-americana até os dias atuais. Dentre esses movimentos internacionais, com resquícios aqui no Brasil, foi o Expressionismo, o Fauvismo, o Cubismo, e o Neo-expressionismo já na década de 70, que mais me influenciaram. Em relação aos artistas locais, citaria: José Cláudio e Francisco Brennand.
No começo de sua carreira, o Sr. já foi rotulado dentro de algum estilo artístico?

Plínio Palhano – Sim, pelo meu interesse constante sobre o Expressionismo, fui considerado um artista com veia essencialmente expressionista, o que me deixava satisfeito, porque era o que pretendia: ser, na vida e na arte, um expressionista.
O Sr. cursou a Escola de Belas-Artes? O que acarretou a participação nesse curso em sua vida artística?
Plínio Palhano – Considero-me, acima de tudo, um autodidata, mas a importância que dou a minha breve passagem na Escola de Belas-Artes é muito mais devida ao contato que tive com os materiais e ao companheirismo de outros jovens de mesma geração, que também a freqüentavam, como Carlos Montenegro, Gil Vicente, Flávio Gadelha e outros. Não me interessei pelas formalidades estéticas que pregavam os professores, pelos quais tinha admiração e respeito, mas, sinceramente, não sintonizava com aquele rigor da linha, por exemplo, no desenho, que teria que ser representado nas aulas. Prefiro o que se estuda hoje nas escolas de Artes. Essas escolas apresentam uma maior liberdade para o jovem estudar e decidir os seus caminhos; mas também há um lado difícil para eles: é quanto ao leque imenso de possibilidades e às influências que fatalmente acontecem nessas escolas. Minha visão é de que hoje há uma volta à academia, na arte – coisa de que nos libertamos no final do século XIX e início do XX -, como se fatalmente o artista, principalmente o jovem, tivesse que passar por este currículo escolar: fazer o mestrado e doutorado; claro, por que não fazê-los? Também seria muitíssimo proveitoso para os que querem seguir a carreira acadêmica. Mas, necessariamente, o artista, não está incluído nesse caminho.


Como aconteceu a participação da artista Piedade em seu ateliê? 
Plínio Palhano – Não houve uma programação de formarmos um ateliê. Piedade leu uma entrevista  minha no Diario de Pernambuco, em 1977, quando eu falava sobre uma série que estava realizando com temática sobre o nu, e ela se interessou em me conhecer mais de perto: foi aí que tivemos uma grata satisfação em trocar idéias. Como eu tinha o ateliê em Rio Doce, convidei-a para posar para mim, com o que ela concordou; e realizei uma série imensa só com a presença dela como modelo; depois, convidamos outras pessoas para posar e nós pintávamos juntos – não somente o nu, mas também, depois, paisagens. Isso não representou um período longo, nem metódico, era tudo muito espontâneo e sem horário. Na verdade ela tinha o seu ateliê, pintava mais individualmente, o que também era o meu caso.


O Sr. poderia comentar sobre a arte e/ou o meio artístico, no início de sua carreira, em Olinda e no Recife?
Plínio Palhano – Olinda e Recife sempre formaram um dos maiores pólos da arte no Brasil, isso confirmado pelos melhores críticos nacionais. Na década de 70, era um desses pólos que mais teve influência no resto do país, pela presença considerável de artistas consagrados, que você facilmente encontrará nos livros sobre história da arte brasileira, com expressividade. Agora, o peso e a hegemonia do Sudeste sempre foram visíveis mais pela força econômica, que centraliza os melhores acontecimentos naquela região; mas se partir para um estudo individualizado de artistas, certamente se encontrarão aqui forças incontáveis. E nos anos 70 tínhamos mais visibilidade. Também existiam mais espaços para exposições, salões, etc. Foram anos de muita movimentação artística, apesar das turbulências políticas.


O Sr. poderia fazer uma análise comparativa dos movimentos artísticos locais no princípio de sua carreira e na atualidade?
Plínio Palhano - Hoje os artistas mais jovens estão extremamente ligados a uma concepção artística de forma até mais radical do que nós naquela época. Eles realizam em grupo e pensam em grupo. Creio que seja um dado novo. A questão da individualidade artística está em queda. E também há uma influência muito forte de curadores sobre eles que não os tornam independentes. Mas penso que este é o melhor momento para o artista jovem, porque eles têm a oportunidade e o poder de transformar muitas coisas que precisam ser tocadas. Como o papel do curador, por exemplo, que deveria estar mais definido: o de cuidar de uma certa amostra de arte e passar para o público a concepção do artista, e não o criador e o intérprete absoluto dessa concepção do artista. Diria que o curador deveria ser um participante invisível numa exposição; e não o que está acontecendo hoje, quando os artistas mal aparecem, porque os nomes dos curadores estão em primeiro plano; mas tudo isso está sendo repensado no mundo todo e definindo um papel exato do curador, no que vai ser bom, e que chegará muito tarde ao Brasil, como sempre.


Qual a razão de ser artista plástico?
Plínio Palhano – Ser artista é ter nascido com um olhar diferente, simplesmente se nasce.


Sua dedicação às artes gira em torno de que estilos? E o por que desses estilos?
Plínio Palhano - Considero o estilo a maneira natural como artista constrói a sua arte; compara-se a uma caligrafia ou a uma maneira de falar, de se expressar. Só mesmo a partir de todo um percurso de sua vida é que identificará o seu verdadeiro estilo. Não procuro, no meu caso, criar um estilo, deixo que se expresse com o tempo; porque estamos em constantes mutações. Sempre trabalhei em linguagens variadas e talvez tenha o mesmo estilo em todas elas.


O Sr. já pensou em desistir de ser artista plástico?
Plínio Palhano – Seria muito difícil deixar de ser artista plástico, e nunca pensei nisso.


Quais são os estímulos para a escolha das séries de suas obras?
Plínio Palhano – Os estímulos aparecem circunstancialmente, sem elaboração racional. Há que se somar ao tempo em que nasceu aquele estímulo, o meio e o objetivo que encontra. Após a realização de uma série, entro num processo de estudo, talvez para que eu possa compreender o que aconteceu.


Sabe-se que o Sr. já fez parte de ateliê coletivo. O que se ganha e o que se perde com essa participação?
Plínio Palhano – O ateliê coletivo é uma das coisas mais interessantes para o artista, desde que haja um mínimo de consonância entre os integrantes. Para mim, a experiência, quando jovem, foi muito positiva, foi quando consolidei as amizades, mas mesmo assim existia muita polêmica – o que era prazeroso – em torno de assuntos sobre arte; chega um tempo que cada participante daquele grupo procura seus próprios caminhos e aí há um distanciamento natural, ficando a lembrança de uma convivência inesquecível.


Como foi  a participação desse atelier na fundação da Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco?
Plínio Palhano -  A consolidação da AAPP-PE foi todo um esforço coletivo de artistas pernambucanos num todo e nós, do Espaço 190, participamos de sua diretoria e tínhamos Fernando Guerra como [o segundo] presidente da Associação, num certo período. Estávamos naquela vontade coletiva de formarmos uma força política, com o fim de influenciar as instituições e as secretarias de cultura. Nós, artistas, através dessa representação profissional, por exemplo, conseguimos aprovar um projeto de lei municipal, obrigando os edifícios a terem uma obra de arte, que até hoje está em vigor. Essa conquista foi um esforço muito amplo de toda a comunidade artística, sem nenhum privilégio de grupos, muito menos o nosso: fomos apenas partícipes de toda essa luta.


Como o Sr. conheceu o artista José Cláudio?
Plínio Palhano – Conheci José Cláudio em razão de nossa vizinhança na praia de Rio Doce, apresentado em 1976, por meu pai, pelo fato de ser seu conterrâneo. Daí em diante tivemos uma convivência bem próxima e fraternal. Freqüentava muito o seu ateliê. E como ele era um artista já consolidado e com uma história respeitável, procurei usufruir o melhor possível quanto aos conhecimentos de sua experiência. Lia e pintava muito nesse período. A leitura estava concentrada em tudo sobre arte, história e crítica. Trocávamos impressões quanto à pintura e o que estava acontecendo nessa área.


Quais as “cicatrizes” que o Sr. carrega? E como elas influenciam em suas obras?
Plínio Palhano – Não acredito nas cicatrizes pessoais como forças que influenciam o trabalho; a que eu carrego é igual à de todos os brasileiros: de viver num país ainda longe de todos os padrões dos países desenvolvidos, em que a cultura está em último plano; e quando um país está nessa situação as influências culturais da corte são cada vez mais fortes e, nós aqui, as recebemos como  vindas de iluminados. Mas hoje há também uma tendência muito forte ao respeito das diversidades culturais, ainda bem. Penso que cada vez mais essa hegemonia americana e européia está se enfraquecendo ante a grandeza das culturas africana, asiática, latino-americana e do Oriente, que pertencem a um veio da humanidade de importantíssima formação no pensamento humano. A arte que realizo procura se sobrepor a essa cicatriz de forma independente.


Qual a importância do fazer artístico para a arte? E qual sua análise sobre o fazer artístico na contemporaneidade?
Plínio Palhano – No campo da arte a humanidade chegou a um ponto muito importante, após tantas experiências em várias concepções na estética. Sair das cavernas – onde o artista encontrava a forma mágica na representação dos animais para a obtenção da caça – até ao que chegamos hoje, com todas as informações e tecnologia, motiva o artista a múltiplos caminhos. Ou ele revive, com a visão contemporânea, esse imenso passado, ou tenta bater na tecla do novo, que é uma utopia. O artista contemporâneo talvez encontre mais consistência em unir esse passado – que é a tradição – com os novos materiais existentes para a construção de sua obra; as linguagens são inúmeras e próprias para as variadas visões atuais da arte.


Qual a influência do mercado na arte?
Plínio Palhano – O mercado de arte é um dos pontos importantes na consistência do trabalho artístico, mas há muitas deformações nesse mercado. Por exemplo, no século XIX, os acadêmicos tinham um mercado incrível, vendiam por todos os poros, já os impressionistas ficaram, no início das suas investidas, de lado, à margem desse mercado; atualmente, uma obra impressionista, até mesmo as menos significativas, vale milhões. Nos dias atuais, muitas obras de artistas contemporâneos foram supervalorizadas e depois entraram em declínio. Nós temos que avaliar é que muitas obras geniais estiveram distantes de uma valorização no mercado, e que depois foram descobertas; é como se houvesse dois mundos: o do artista criador, que poderá ser ou não valorizado, e do mercado que pode valorizar, temporariamente, uma certa obra, e com o tempo não ter nenhum valor. Creio que o maior avaliador de uma obra de arte chama-se tempo, que também consolida o seu valor histórico. Mas, pensando objetivamente, enquanto estamos construindo os nossos trabalhos, e como todo trabalhador – os artistas não estão fora dessa realidade -, é vital um mercado em que se possa ter os meios de sobrevivência para continuar a vida de forma digna. Só que no Brasil o mercado ainda é incipiente, é preciso muitos fatores para que possamos consolidá-lo. Um dos maiores mercados de arte do mundo hoje se encontra nos EUA, Inglaterra, França, Espanha, e não por coincidência são os países onde acontecem os melhores eventos relacionados com as artes plásticas. Tenho consciência plenamente de que a arte e o artista não podem existir sem o mercado, mas a cada século mudam as concepções e os valores.


Para que serve a arte?
Plínio Palhano – Essa é uma das respostas mais difíceis que se renova a cada importante período do pensamento humano. A arte serviu às religiões, aos Estados totalitários, aos tiranos. Mas um ponto a que a arte precisa chegar é induzir o homem a pensar com independência. Pensar ela própria, sem as muletas de outras ciências ou filosofias. Estamos nessa passagem: para justificar a criação recorremos a muitos conhecimentos fora da arte, e quase abandonamos as infinitas possibilidades que ela própria oferece. A arte é conhecimento, e específico, mas muitos esquecem disso.


O que o Sr. pensa sobre a arte como comunicação?
Plínio Palhano - Desde as pinturas rupestres havia a busca da comunicação e de entendimento do homem com o seu meio. E nós hoje estamos inseridos nessa comunicação seja qual for a linguagem artística, porque faz parte das necessidades do nosso século; seria impossível, hoje, excluí-la da comunicação.


Existe algum sentimento de grupo entre os artistas plásticos? 
Plínio Palhano - Creio que sim. Mesmo havendo divergências quanto às visões artísticas, eles se unem num objetivo primeiro que é de participar de uma criação do seu tempo e nas necessidades que os envolvem na atuação como artistas. Mas no Brasil precisamos imitar artistas como os espanhóis que defendem interesses comuns na relação com o mercado de arte, instituições e o Estado; eles representam uma força em certas negociações para as concretizações de suas metas.


Qual a importância da polêmica na arte?
Plínio Palhano – Na arte não poderá existir apatia, a polêmica é de extrema necessidade para o seu desenvolvimento. Sem a polêmica, não existiriam movimentos importantes que fizeram história nem artistas que deixaram a sua marca como criadores e pensadores da arte. A polêmica é como a colheita do trigo: só fica o que é essencial.


Qual a influência do social na sua arte?
Plínio Palhano – O artista necessariamente não tem que representar o social em sua arte, mas também não pode fugir de uma realidade que está na sua criação: ela reflete o meio social, quando a arte representada passa um caráter verdadeiro. O modo como participamos como artista também se reflete no meio social e pode vir para dentro de nossa arte, independentemente do nosso julgamento.


Qual o propósito de sua arte?
Plínio Palhano – Penso que todo artista tem o melhor propósito para a sua arte e não poderia pensar diferente. Mas é melhor ficar consciente de que com os nossos melhores anseios não alcançaremos mais que uma comunicação com o público, e para isso é necessário que se passe uma verdade, que a arte não seja um pastiche de outras verdades, principalmente aquelas que nos são impostas pelos grandes centros do planeta. Precisamos acreditar que as nossas pequenas verdades em nossos quintais muitas vezes podem representar grandes realizações.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Flora Tristán e Gauguin

Flora Tristán (1803-1844), revolucionária, socialista, precursora do feminismo francês, de sensibilidade refinada, principalmente aos problemas sociais que a tocavam na pele diretamente; autodidata, acumula experiência e cultura e, por vontade e compulsão, torna-se escritora, pela necessidade de dizer ao mundo as verdades que infernizavam sua alma, fazendo-a mover-se pela Europa, realizando palestras para entidades de classe, na luta incansável contra as injustiças. Seu neto, Paul Gauguin (1848-1903), foi um artista seminal, que mudou a visão plástica do seu tempo, contribuindo, com genialidade, para a arte moderna do século XX. Essas duas vidas paralelas encontraram nos seus ideais uma razão suprema de existir. E inspiraram o escritor peruano Mario Vargas Llosa, no romance O Paraíso na Outra Esquina, publicado em 2003, em março, nas comemorações dos cem anos da morte do pintor.

Descendiam dos Bórgia de Aragão, que legaram à Igreja os papas Calixto III e Alexandre VI, este um dos maiores tiranos da Renascença e que iniciou uma geração sinônimo de perfídia e depravação; também de César Bórgia, a quem Maquiavel dedicou O Príncipe, e sua irmã Lucrécia, destacada cortesã e envenenadora. Essa ascendência, no século XIX, no Peru, na cidade de Arequipa, constituiu os Tristán y Moscoso, que deram origem a Pio Tristán  y Moscoso, governador de Arequipa (1814-1817) e último vice-rei do Peru, proclamado em Cuzco, em 1824, e irmão de Dom Mariano, que vivia na França e depois se exilou na Espanha, casando-se, em 1802, com Anne-Pierre Térèse Laisnay. Quando retornaram a Paris, um ano depois, Térèse Laisnay deu à luz uma menina, Flora.

A revolucionária Flora Tristán e o neto, Gauguin, em diferentes épocas, passaram toda uma existência em busca de um paraíso. A avó, pela liberdade e justiça social, sonhando com uma conjuntura que concretizasse uma igualdade civil entre homens e mulheres, e pelo direito de todos à educação, à saúde, ao trabalho, às relações de respeito entre os semelhantes e às leis que os dignificassem, isso num sistema socialista e numa visão de utopia; como personagem, foi atuante, com sincera motivação para mudanças no seio da sociedade, longe da filosofia dos políticos atuais.

O pintor Paul Gauguin pretendia uma nova geração de artistas que fosse ao encontro do primitivo, de um édem que revelasse uma vida e estética novas, fora dos padrões ocidentais, contaminados pelo preconceito; por isso a busca, nas viagens  infindáveis que realizou – em culturas tidas como exóticas, não-européias -, de um estimulo à verve revolucionária, impregnada das recordações paradisíacas da infância, quando permaneceu seis anos no Peru com a mãe Aline Gauguin e a irmã, Marie. O pai, que os acompanhava, Clovis Gauguin, jornalista, editor do jornal Le National, falece de um ataque cardíaco fulminante antes de chegar ao destino.

Na adolescência Gauguin entra na marinha mercante, com espírito de aventura, passando inclusive pelo Brasil, no Rio de Janeiro, como Édouard Manet em outra oportunidade. O artista, na construção da sua obra, mantém contato com diferentes recantos como o Panamá, a Martinica, a Nova Zelândia, finalizando a sua existência (e obra) no Taiti e nas ilhas Marquesas. Antes, para aprofundar suas teorias plásticas, foi encontrar, na própria França, a inocência religiosa do povo Bretão, em Pont-Aven e Le Pouldu, realizando as pinturas notáveis que foram decisivas na sua carreira artística, como A Visão Depois do Sermão ou Jacó e o Anjo (1888) e O Cristo Amarelo (1889).

Um fato importante na história dos dois foi a viagem de Flora Tristán para o Peru (1833), deixando a filha Aline em um colégio interno, a fim de tratar pessoalmente com Pio Tristán o direito à herança que lhe cabia por parte de Dom Mariano Tristán y Moscoso, seu pai. A sua presença no Peru, quanto às reivindicações, foi um fracasso, mas restabeleceu as raízes com a família na América Latina, acrescentando experiência e base para uma iniciação política, porque foi lá que adquiriu as idéias radicais que modificariam a sua visão, contribuindo posteriormente também para que o neto Gauguin alimentasse a sua poderosa imaginação nas lembranças do convívio com a mãe, a irmã e o tio-avô – o homem que dominaria a sua infância -, fazendo-o perseguir um paraíso inatingível durante toda a sua trajetória como artista.

O livro que Flora Tristán publicou dois anos após sua volta a Paris (1836), Peregrinações de uma Pária, dedicado ao povo peruano, relata os acontecimentos de viagem a Arequipa e Lima e mostra o tio como um homem avaro, ambicioso, o que fez Dom Pío Tristán  y Moscoso queimar o livro em praça pública, como num retrocesso às celebrações inquisitoriais, deixando-lhe de enviar a parca moeda como pensão, o que ela tinha consciência de que iria acontecer. Mas o livro deu-lhe visibilidade nos meios político e intelectual, como grande pensadora socialista.

A partir daí, a vida de Flora torna-se mais intensa de estudos políticos, econômicos e de lutas por justiça social. Publica, em 1843, Sindicato de Operários, um manifesto conclamando os oprimidos a tomarem iniciativa de se reunirem em sindicatos para consolidar a classe operária e fortalecê-la na União Operária, para a qual seriam arrecadadas as contribuições, inclusive as do patronato, criando escolas, ambulatórios e melhorando as condições de trabalho. Percorre a França, as cidades industrializadas, e faz sua pregação pacifista, porque, na sua utopia, opressores e oprimidos terminariam se harmonizando numa sociedade justa e equilibrada. Lutou pelos direitos da mulher, no divórcio, na participação do sufrágio, tornando-se uma das precursoras do feminismo francês. Um ano após a sua morte (14 de novembro de 1844), em Bordeaux, foi lançado o seu último livro – A Emancipação da Mulher.

Gauguin apreciava esses antepassados dos Moscoso e Bórgia de Aragão, também o suposto sangue inca que dizia ter, porque era mote para sua imaginação – “Sou um selvagem do Peru”, costumava dizer. Herdou a parte revolucionária da avó, de quem se orgulhava das lutas que enfrentou: sendo ele um revolucionário compulsivo, não se contentando com as conquistas estéticas, mas sempre caminhando no seu grande objetivo, que terminou legando à humanidade a obra que influenciaria toda uma geração do início do século XX; impressionista de passagem, criador do sintetismo com Émile Bernard, eleito o maior pintor simbolista por Stéphane Mallarmé e seus seguidores, recriador da mitologia maori, na Polinésia Francesa, e libertador das cores e formas que esse mundo tropical demonstrou aos seus olhos e cérebro.

Quando a sífilis estava destruindo todo o seu organismo, que estava num estado lamentável, viciado em morfina e álcool para suportar as dores da eczema na perna, perseguido pelo bispo católico que ficou na sua história como o implacável Bispo Martim, resistia corajosamente e considerava-se um gênio incompreendido. Isso após realizar suas últimas obras-primas com temáticas nativas e amar as suas “noivas” meninas, Teha’amana e Pau’ura, no Taiti, que foram modelos inspiradores para relatar plasticamente a exótica cultura. Com o mesmo fascínio por esse universo longínquo, também gerou um legado à posteridade nos escritos de Noa Noa, com testemunhos estéticos e narrações de suas experiências taitianas. E, finalmente, tendo por última companheira, Vaeho, em Atuona, um lugarejo da ilha Hiva Oa, nas Marquesas, morre na Casa do Prazer – como ele chamava o seu estúdio e morada -, um recanto, para o artista, belo e infeliz, no Pacífico Sul.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Gauguin: um Artista Seminal

O jovem Picasso quando chegou a Paris (1900), no propósito de ampliar os seus horizontes e manter contato com a vanguarda artística parisiense, com o seu olhar e cérebro fulminantes, absorvia tudo o que estava ao redor, incorporando ao seu trabalho a graça inconfundível do desenho de um Toulouse-Lautrec; a pincelada e cor expressionista de Van Gogh; o pós-impressionismo em voga; a geometria do espaço pictórico, de Paul Cézanne; e mais: conheceu um escultor, Paco Durrio, num círculo de artistas espanhóis exilados, que mostrou quadros do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) e forneceu uma cópia da primeira edição de Noa Noa, em que o artista relata suas experiências no Taiti; o escultor foi um guardião fiel dessas obras, a pedido do autor, enquanto o artista empreendia a sua longa viagem à Polinésia. Em seguida, acompanhou com atenção a grande retrospectiva do selvagem Gauguin, com cerca de duzentas pinturas, em 1906, no Salon d’Automne, que foi uma revelação não somente para o espanhol Pablo Picasso, mas também para Henri Matisse, Raoul Dufy, André Derain e outros artistas que ficaram impressionados com a luz do Taiti, refletida através de sua obra.

Para eles o sentido de beleza européia estava sendo colocado em xeque, e o mundo primitivo se revelava como uma nova fonte a ser explorada pela arte. Daí o interesse dos artistas do início do século XX pela arte africana e a da Oceania. Picasso colecionava esculturas africanas, que o influenciaram até o ponto de culminar na célebre pintura Les Demoiselles d’Avignon (1907), que foi a semente do que viria a se chamar Cubismo, mas o começo desse interesse deve-se ao fato de ter conhecido o caminho trilhado por Gauguin, que revelou um mundo primitivo, um novo Éden, o paraíso perdido.

As suas pinturas luminosas, gravuras, cerâmicas e esculturas revelaram a genialidade do artista que não encontrava respostas no Ocidente civilizado e pensava que a arte poderia se rebelar contra as contaminações européias e encontrar nas tradições da Oceania um universo que iria libertar e germinar uma geração de artistas que ampliaria todas as concepções anteriores : para concretizar esse pensamento, pretendia fundar um ateliê coletivo, na Polinésia, no que ele chamaria “Estúdio dos Mares do Sul.”

Revolucionário em vários aspectos – na pintura, que lançou novos caminhos; na gravura em que empreendeu técnicas admiráveis para o seu tempo; na cerâmica, introduzindo elementos de forma, cor e matéria que a diferenciava; na escultura, em que experimentou também a mistura com a técnica da cerâmica; e no entalho, revelando o mundo mágico maori. Com espírito pioneiro, antes de chegar à Polinésia, percorreu diferentes recantos, semeando idéias que fizeram nascer movimentos artísticos com a sua verve de mestre, arrebatando seguidores.

Assim foi na viagem à Martinica (1887), após experimentações impressionistas, e à Bretanha – onde esboçou o que iria se definir um estilo, na ilha do Mar das Antilhas Francesas, que seria a base para a obra que iria concretizar. Lá, Gauguin e Charles Laval – discípulo que conheceu em Pont-Aven – realizam trabalhos próximos nas temáticas e técnicas ante as paisagens tropicais. Durante seis meses, onde produziu doze quadros, captando cenas com títulos como Vegetação Tropical, O Lago, À Beira-mar, num realismo às vezes das personagens que são representadas na paisagem, em cores mais abertas, intensas, e na fatura da pintura longe dos quadros impressionistas que realizou: Interior da Casa do Artista em Paris (1881); A Neve (1883); Gauguin Diante de seu Cavalete (1885). Foi na Martinica que despertou a lembrança da passagem pelo Peru (na infância – de um até os sete anos -, com a mãe Aline Gauguin, filha de Flora Tristán, e a irmã, Marie), alimentando sua poderosa imaginação, numa recordação de luz e pessoas, que o impulsionaria a ir mais longe, pretendendo uma viagem libertadora e “renascer longe da espécie humana”, como foi a do Taiti e a das Marquesas.

Na volta a Pont-Aven, cercado de admiradores que vinham de Paris, onde formulou suas teorias, compartilha historicamente com Émile Bernard a autoria do Sintetismo. Mais tarde, Bernard o acusou publicamente, através de artigos, de que teria se apossado dos seus conceitos, amargando a ascendência do gênio e a personalidade gauguiniana. Na verdade, eles comungavam uma percepção do mundo objetivo e a abstração livre da cor. Daí a conotação que davam às suas obras realizadas na Bretanha, como se fossem pinturas inspiradas em vitrais, isto é, cores puras, separadas por linhas marcantes, como a obra divisória e importante na história de Gauguin, A Visão Depois do Sermão ou Jacó e o Anjo (1888), mesmo recurso plástico abordado por Émile Bernard, no quadro Bretãs no Campo (1888).

Somente a passagem dele pela Bretanha, permanecendo na história da arte como “Escola de Pont-Aven”, seria suficiente para identificá-lo como um criador, inovador e revolucionário do final do século XIX, porque rompeu com a própria teoria impressionista da captação da luz – da qual recebeu ensinamentos no início do seu percurso como pintor, através de um dos maiores e mais puros impressionistas, Camille Pissarro -, abrindo caminhos estéticos, reunindo um número de discípulos que foram importantes para propagar as novas idéias que tinham como centro Paul Gauguin.

Sérusier foi um desses discípulos, que, influenciado por ele, por ter recebido uma rápida aula de pintura – pouco antes de Gauguin sair de Pont-Aven para Arles, em outubro de 1888, ao encontro de Van Gogh -, realizou a obra O Talismã, e entusiasmado levou-a para Paris e mostrou-a aos seus colegas que freqüentavam a Academia Julian. Todos ficaram envolvidos com a inovação e abandonaram as velhas lições acadêmicas, formando um grupo: Édouard Vuillard, Maurice Denis, Félix Vallotton, Pierre Bonnard e o próprio Paul Sérusier. Foram estes – por influência de Sérusier, que conhecia árabe e hebraico e sugeriu um nome ao grupo, identificando-o como uma irmandade e os membros, profetas, por isso a palavra árabe nabi (profeta), – que ficaram conhecidos como “Os Nabis” e posteriormente seguiram seus próprios estilos. Sérusier expressou para Gauguin a liderança que o mestre exercia, mas para ele – um artista livre e altivo – não interessava assumir nada, a não ser continuar o seu trabalho e alçar vôos naturais.

Quando Gauguin conseguiu consolidar uma personalidade artística, os antigos mestres e companheiros do Impressionismo começaram a olhá-lo com mais cuidado. Pissarro já não via mais aquele discípulo como um aplicado aluno das técnicas de captação da luz, mas como alguém que estava com a visão equivocada, principalmente quando ele explorou mais veementemente o mundo estranho do Taiti, pois achava que utilizava o exótico para enaltecer a obra. O mestre o introduziu no mundo artístico, também fazendo-o participar da quarta, quinta e sexta exposições impressionistas entre os anos de 1879 a 1881, sem o beneplácito de Monet e Renoir; Pissarro, com o tempo, adquiriu um olhar de incompreensão para o momentaneamente discípulo da nova escola.

De Paul Cézanne, Gauguin adquiriu seis pinturas, quando os recursos financeiros, proporcionados pelas atividades exercidas na bolsa de Paris – que abandonou para se dedicar à pintura -, permitiam uma vida estável, burguesa. As obras o influenciariam, sugerindo um aspecto de blocos geométricos no espaço da pintura, sendo essa a concepção plástica de Cézanne: “Eu queria fazer do impressionismo algo de sólido e duradouro, como a arte que está nos museus”. Sempre solicitava de Pissarro informações sobre Cézanne, do que ele estava fazendo, e, numa carta, sugeriu que desse algum medicamento homeopático para que ele revelasse os últimos segredos pictóricos. A investida de Gauguin deixava-o desconfortável, ao interpretá-la que ele iria “roubar” as suas “pequenas sensações”, que guardava com tanta discrição e perseverança; considerava Gauguin, como Van Gogh, um artista louco. Mas o apoio dos pintores impressionistas veio de quem ele menos esperava, até pelo humor inconstante e o grau de exigência que tinha sobre todos os assuntos relacionados à arte. Este era Edgar Degas, que, mesmo não tendo uma opinião formada quanto aos trabalhos de Gauguin, dizia que ele tinha “alguma coisa”, e com esse faro intuitivo adquiriu vários quadros dele.

Entre os escritores, Gauguin era prestigiado, e Mallarmé, com os seus seguidores, colocou-o como o maior representante da pintura simbolista, realizando até jantares, com brindes e discursos em homenagem ao pintor, apoiando-o na exposição na casa de leilões do Hôtel Drouot, em fevereiro de 1891. Por intermediação de Charles Morice, Stéphane Mallarmé aceitou solicitar a Octave Mirbeau que escrevesse um artigo sobre o artista para a exposição ser bem realizada e dar algum fruto financeiro. Eis o que Gauguin mais precisava para empreender a sua primeira viagem ao Taiti. Eles conseguiram uma publicidade imensa, ajudando até nos lances para aumentar os preços das obras, e também Gauguin foi obrigado a adquirir um quadro, com a mesma estratégia.

Antes de partir para a Oceania definitivamente, realizou em Paris uma das esculturas mais importantes de sua obra. De título Oviri (O Selvagem, 1895) e altura de 74 centímetros, criada em meio às suas inovações em cerâmica, moldada direto no barro e depois queimada, recebendo os leves esmaltes para uma segunda fornada, deixando a maior parte da estátua em barro bruto, aproximando essas partes a uma cor terrosa. Inspirada na mitologia maori, representa uma mulher selvagem de aspecto animal, apertando um filhote como numa ação de assassinato ou sufocando-o por proteção, num simbolismo de morte e renascimento, talvez a morte do civilizado Gauguin para o seu renascimento como selvagem. “Maravilhosamente ambígua”, como diria um crítico. E Picasso levou um tempo para absorver Oviri, o que o impulsionou ao encontro de civilizações primitivas, não-européias.

O artista polêmico Gauguin, de natureza indomável e vontade imperativa, abalou o seu tempo e as gerações futuras, principalmente realizando obras de forma livre e concentradas nas teorias que lhe vinham ao espírito, sem medir as conseqüências que os olhares e as mentes alheias julgariam e muitas vezes não tão favoráveis, por falta de percepção. Como, por exemplo, a pintura extraordinária realizada no Taiti, Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892), baseada na lenda do espírito mau que vivia nas selvas e se utilizava das noites para incomodar os nativos taitianos incautos. Gauguin encontrava um paralelo nessa obra com a Olympia de Édouard Manet – que tanto admirava, por ser um marco na pintura européia, rompendo com as tradicionais representações de deusas imaginadas; levando com ele a reprodução dessa pintura, nos estúdios onde permanecia -, pela franqueza do olhar para o espectador – encontrado também na Olympia -, da menina nua, a figura do lado esquerdo representando o tupapau, e mais os efeitos pictóricos que continha; alguns críticos, em Paris, não aceitaram a comparação. Mas em outras pinturas também ele fez o paralelo com a Olympia, como a realizada em Paris, no seu retorno da primeira viagem ao Taiti, Annah, a Javanesa (1893): na qual há a mesma confrontação do modelo com o espectador. A chave dessas obras era que ele transformava a sua visão de civilizado numa nova, de selvagem. Como ele dizia de si próprio: “Sou um selvagem do Peru”, orgulhoso de seus supostos antepassados incas.

Ia Orana Maria (Nós te Saudamos, Maria), terminada em 1892, representava Maria como uma Eva no paraíso, transformada numa vahine, com o Cristo já nascido – pois se trata da anunciação do anjo sobre o nascimento do Cristo -, de pele escura nativa, o anjo entre as folhagens, e toda a cena numa mata com vegetação tropical. O catolicismo não aprovou a pintura, por achar que as representações não eram compatíveis com as tradições da Igreja.

Após realizar a primeira viagem ao Taiti (1891-1893), com uma produção de sessenta e seis quadros, e a mente absorvida no universo, que comparava a um Éden distante dos movimentos de Paris, que ainda o interessava, retorna com a ansiedade natural para que todos vissem a riqueza das observações plásticas que construiu, confiante num sucesso sempre sonhado e anunciado à esposa Mette Gad Gauguin, pensando em reconstituir a vida familiar destruída.

Propõe uma exposição ao marchand Durand-Ruel, e este transfere para os filhos Joseph e George a realização, porque estava com investimentos nos Estados Unidos para a conquista daquele mercado. A inauguração foi no dia nove de novembro de 1893, com a participação de Charles Morice, dando o suporte para a divulgação na imprensa. Quarenta e duas obras são expostas, com as molduras da preferência de Gauguin, modernas – brancas, azuis -, para diferenciar das do Salão Oficial. Um objetivo ele conseguiu, senão o sucesso almejado: uma polêmica que mexeu com o mundo artístico e intelectual parisiense. Realmente Gauguin já era uma presença impossível de ignorar, com uma fama conquistada a duras penas, mas com amargura não se sentia compreendido pelos pintores dos quais gostaria de ouvir comentários favoráveis. A maioria das críticas foi em cima do exotismo e sexo que diziam ter explorado da cultura maori. As obras Vahine no te Tiare (Mulher com Flor, 1892), primeiro quadro realizado no Taiti com modelo nativo; Homem com Machado (1891); Hina Tefatu (A Deusa da Lua e o Gênio da Terra, 1893); Ta Matate (O Mercado, 1892); Aha oe feii? (Como, Você Está com Inveja? -1892); Vahine no te vi (Mulher com Manga, 1892); Pastoral Taitiana, 1893; Merahi Metua no Teha’amana (Teha’amana Tem Muitos Antepassados, 1893); Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892) não foram suficientes para convencer o público, os críticos e os artistas – divididos quanto ao julgamento. Mas ele pretendia continuar a gigantesca obra com o pouco tempo que lhe restava – a saúde já dando sinais de abalo, com sintomas de sífilis. Era necessário utilizá-lo como uma preciosidade.

Na indignação com a Paris refratária aos seus pensamentos, ainda realiza, em dezembro, uma amostra de gravuras no seu ateliê na rue Vercingétorix, onde pintou a sala de amarelo para dar destaque às peças. A publicidade também foi positiva e lá estiveram Vollard, Degas, Mallarmé e outros do círculo da vida cultural da cidade. Mas lhe vem a confirmação de que a civilização não mais o encanta. Retorna ao Taiti (outubro de 1895) e posteriormente segue para as Marquesas, onde conclui o trabalho que precisava realizar.

Gauguin, um artista seminal, encontrou, nas ilhas longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador que foi despertada com lutas intermináveis e as incompreensões que vinham de um mundo civilizado; dizia em Paris, antes de partir, que, entre “os selvagens daqui e os de lá”, preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a história da sua própria pintura e, conseqüentemente, a arte universal, ampliando a cada passo, num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de forma, de conceitos – um encontro feliz com o que ele chamava de “mitologia maori”, que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde realizou suas obras-primas, amou suas “noivas” meninas – Teha’amana e Pau’ura – e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, toda a geração posterior deve à nascente Gauguin, como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar o modernismo na arte do século XX.

terça-feira, 28 de janeiro de 2003

Salão de Artes de Pernambuco

Na última década, Pernambuco se alimentou, através de seus artistas, de movimentos e instituições culturais, haja vista a multiplicação da produção independente no Recife, os ateliês que mantêm vivo o movimento das artes plásticas em Olinda e a arte popular que nos apresenta tão fortemente.

Entidades como o Instituto Ricardo Brennand, fundado pelo empresário Ricardo Brennand, com a excepcional exposição de Ekchout, as mostras do Espaço Cultural Bandepe, sob a organização de Carlos Trevi e, em particular, o Instituto de Arte Contemporânea – IAC, quando atuou no Bairro do Recife, entre 96 e 98, gerido à época por Helena Pedra, são organizações que demonstram competência e independência estética e partidária.

O IAC, em curto período, mobilizou artistas, acadêmicos, empresários e o público em geral, trazendo, de várias regiões do Brasil, a discussão das Artes Visuais na Educação, na Cultura, na Ciência, num diálogo plural, e troca de informações, no intercâmbio com a Inglaterra, a Itália, a França e a Bélgica. Espaço cultural, cujo legado não permite retrocessos, o IAC foi responsável pelo surgimento de novos artistas e expandiu sobre o Recife o sentido de contemporaneidade, influenciando, no mesmo período, o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – Mamam e a Fundação Joaquim Nabuco – quanto à atuação de algumas de suas galerias. Foi tarefa sua também garantir uma cadeira para Pernambuco na comissão consultiva do Salão Nacional de Artes Plásticas. Raros centros interagiram com tanto vigor em seu meio, num tempo de crise no setor; e, apesar de institucionalizado, o IAC não ficou a serviço de modelos oficiais.

Hoje, Pernambuco oferece a sua 45ª edição do Salão de Artes  recheada de polêmica, como é natural em todos os Salões Oficiais, isso desde os que já nasceram envelhecidos na Paris do século XIX, sempre com contestações aos membros do júri, às suas atuações nas escolhas de artistas, etc. A discussão contemporânea não se encerra apenas em nomes de artistas, mas, principalmente, na concepção da mostra e de que forma ela atinge uma panorâmica do que acontece no âmbito do Estado e o lugar que ocupa no plano nacional.

Essa nova edição pretendeu, numa só investida, realizar no espaço da ex-fábrica Tacaruna várias exposições simultâneas, o que tira o foco central, que seria uma mostra de obras inéditas que concorreriam às premiações: no caso, as bolsas de estímulo à pesquisa. As demais ações do Salão – as que pretendem mostrar a importância dos movimentos artísticos, as de caráter didático ou sobre grupos emergentes – caberiam  em espaços paralelos, num desenvolvimento à parte. Cada uma delas, por si só, dá uma dimensão extraordinária pelo nível de seleção exigido, já que se faz preceder de levantamentos e estudos aprofundados sobre a história das artes plásticas em Pernambuco.

A Sala Especial, preparada para o 45º  Salão, que reuniu a produção de quase trinta artistas previamente selecionados, foge ao bom senso. A falta de divulgação dos critérios de escolha não torna claro ao público, por exemplo, se esses artistas participam da Sala Especial como convidados pelo conjunto de suas obras, se pela importância histórica, se pela atuação no mercado profissional ou se por mera deferência pessoal. E, finalmente, a quem se destina a premiação das bolsas de incentivo, amplamente divulgado pela Imprensa, como ação inovadora deste Salão. Por isso, em se tratando de um salão público, as atitudes deveriam seguir comportamentos éticos e universais, como editais, regulamentos, critérios e comissão para o julgamento das obras. Um salão anual de artes pressupõe mostrar as mais recentes pesquisas estéticas propostas e sua concretização com este perfil necessita de uma curadoria que esteja disposta a dar uma idéia macro das artes plásticas até onde a mostra alcance.

Claro que a nossa visão sobre o formato desses salões está em conexão com o que acontece nos países do Primeiro Mundo, porque forçosamente a globalização induz a isso, e nós, como almejamos os bons resultados do lado de lá, tentamos pobremente imitá-los da forma como nos convém. Culpamos, assim, mais facilmente as nossas deficiências por falta de recursos, para realizarmos algo sem poder criativo; entretanto, a iniciativa de revivificar o Salão de Artes tem, por si mesma, um grande mérito, até porque o nosso é um dos mais importantes do País e vem acompanhando gerações que deram contribuições inegáveis à história das artes.

sábado, 3 de agosto de 2002

Mercado de Arte se Conquista

Plínio Palhano

Até a década de 50 do século passado, quem liderava o mercado de arte internacional era Paris, porque, entre outros motivos, na sua tradição cultural, foi palco revolucionário no mundo da estética e base para os movimentos e artistas mais importantes que consolidaram a arte moderna. Após esse período do brilho francês, a supremacia ficou nas mãos de Nova York e Londres. Hoje, os Estados Unidos detêm 49% desse mercado; a Grã-Bretanha, 28,75%; e a França 5,6%.
Segundo os especialistas, a ascendência anglo-saxã deve-se ao comércio ou às atividades de serviços de alto nível, a exemplo do que fazem empresas como a Sotheby’s, a Christie’s e a Phillips, que dominam, principalmente, as vendas nos leilões, conquistando a confiança dos investidores internacionais, com seus padrões na garantia de preços e na negociação de suas comissões. Na França, agentes e avaliadores oficiais ainda mantêm-se presos a um estatuto rígido (e antigo), que os proíbe desse gênero de prática. Isso limitou a ampliação do seu mercado com vistas a uma internacionalização mais agressiva. Os franceses tentam reverter esse quadro a partir de uma reestruturação das normas, atualmente em trâmite no parlamento.
Mas é justamente na França que encontramos, nos séculos XIX e XX, marchands como Paul Durand-Ruel, Ambroise Vollard e Daniel-Henry Kahnweiler, verdadeiros precursores do mercado atual. Assim como os artistas, seus contemporâneos, abriram caminhos para uma concepção moderna de arte. Nos primeiros vinte anos do movimento impressionista, por exemplo, àquela altura negado pelo público e pela crítica oficial, havia uma verdadeira escassez de vendas das obras de seus seguidores; com interesse e olhar profético, Durand-Ruel e Ambroise Vollard investiram naquelas obras, hoje consideradas alicerce para a formação de vários movimentos que enriqueceram o século XX e supervalorizadas nos leilões internacionais, alcançando cifras de mais 80 milhões de dólares, a exemplo do Retrato do Doutor Gachet, de Van Gogh, arrematada  em 1990.
No auge dos grandes movimentos do início do século XX, surge, no mercado de arte europeu, o marchand judeu alemão D.H. Kahnweiler, acompanhando os primeiros passos do expressionismo, do fauvismo e, principalmente, do cubismo, movimentos esses que mais o interessavam para o comércio de sua galeria, criada no mesmo período. Como acreditava que “os grandes pintores fazem os grandes marchands”, aliou-se a Vlaminck, Juan Gris – que tinha por ele amizade e admiração -, Léger, Derain, Picasso e muitos outros. Segundo seu próprio depoimento a Francis Crémieux, no livro Minhas galerias e meus pintores, havia uma fraternidade entre ele e os artistas: sempre chegavam a bons contratos que interessavam ambas as partes.
Aos poucos, com a participação desses marchands, que instalaram suas filais em Nova York, e dos próprios colecionadores americanos, os Estados Unidos, além de dignificarem o seu patrimônio artístico e colocá-lo no topo do mundo, passaram a possuir obras européias com valores monumentais. Solomon R. Guggenheim, o fundador do Museu Guggenheim, iniciou a própria estrutura do museu com a sua importante coleção, à qual, posteriormente,  foi agregada a da sua sobrinha Peggy Guggenheim – personagem que teve marcante influência entre os artistas americanos, ajudando-os com dinheiro e prestígio. Também Leo Castelli, o notável marchand americano que defendia seus artistas pop, nos anos 60, com uma paixão dolarizada, colocou-os no circuito internacional, com poder incomparável.
Londres, por sua vez, movimenta leilões com repercussão mundial e é considerada como um dos maiores pólos de produção e difusão da arte contemporânea, sobretudo por conta da geração dos Jovens Artistas Britânicos, que espalha pelo planeta inúmeras novidades nas experimentações plásticas. O milionário Charles Saatchi é um dos responsáveis por essa posição privilegiada. O magnata não só possui uma vasta coleção dessa geração como a expôs, com estrondoso sucesso, em 1997, na tradicional Royal Academy of Arts, sob o título de Sensation, fazendo, segundo vários críticos (dentre os quais, Waldemar Januszczack, do Sunday Times), com que aquela instituição saísse de uma certa “letargia”…
Já no Brasil, apesar da competição gerada em muitos setores por uma economia globalizada, o mercado de arte caminha a passos lentos no sentido de internacionalizar seus produtos. Mesmo com os esforços louváveis dos marchands, galeristas e agentes, sobretudo do Sudeste, e grandes acontecimentos como a Mostra do Redescobrimento – Brasil + 500 (iniciada no ano 2000, que se encerrará em dezembro de 2002, com a meta de percorrer dezessete museus internacionais) e as Bienais de São Paulo, que esquentam as turbinas do mercado de arte, ainda estamos longe de uma participação mais efetiva no plano internacional. Mas podemos ressaltar o pernambucano Marcantônio Vilaça como um dos que mais se destacaram, com sensibilidade, agudeza e vontade, em defesa da arte contemporânea brasileira. Pertenceu a essa linhagem de colecionadores, marchands e galeristas que sabiam exercer o seu ofício e o dignificaram. Iniciou, ainda adolescente, a sua coleção, solidificando-a como uma das mais importantes do Brasil.
A paixão pela arte era o modo de viver de Marcantônio Vilaça, entendendo-a como conhecimento e força transformadora do pensamento humano. Como diria o historiador Paulo Herkenhoff, “para Marcantônio a arte era a coisa mais importante da vida – exceto a vida como tecido afetivo”. Escolheu os artistas para participar da sua galeria Camargo Vilaça, adquirindo as suas obras para defendê-las nos grandes centros. As pontes que construiu para a internacionalização da arte brasileira foram testemunho do trabalho de quem assume a sua missão. Participou de eventos mundialmente importantes, inclusive fazendo parte do conselho da Arco (Madri), uma das mais importantes feiras de arte da Europa. E sinalizou, com sua atitude profissional, que o mercado de arte se conquista de forma agressiva e empreendedora. Onde quer que se esteja.

sábado, 13 de abril de 2002

Pernambuco sem Memória

Plínio Palhano


O impulso inicial do
movimento modernista
veio das artes plásticas.
Manuel Bandeira



Abaporu foi o título que Tarsila do Amaral deu a sua obra, realizada em 1928, e que entusiasmou o então seu marido Oswald de Andrade. É uma pintura que, segundo a própria artista, surgiu representando uma figura estranha de aspecto selvagem. Daí Tarsila procurou pesquisar um nome que identificasse aquela criação. Abriu um dicionário tupy e encontrou – Abaporu. Que significa antropófago. Eis o início da fase antropofágica de Tarsila do Amaral… Oswald de Andrade desenvolve a partir dessa obra toda uma teoria. A antropofagia natural nossa, brasileira, de comermos tudo o que é estrangeiro e definir uma personalidade nacional.
A propósito das comemorações dos 80 anos da Semana de Arte Moderna (1922), evento que se refletiu no Recife e contou com a participação de artistas pernambucanos, os órgãos públicos locais fazem ainda “tímidas” referências a esse marco histórico representativo para a arte atual, perdendo assim a oportunidade de aprofundamento da discussão para o entendimento desse quase secular movimento na arte brasileira.
Os principais espaços públicos (museus e galerias) mantiveram em suas pautas para 2002, divulgadas pela imprensa, um programa, até certo ponto, descompromissado com a atenção dada, neste ano, às questões que envolvem o movimento modernista. À Fundação Joaquim Nabuco, que tem o nome Vicente do Rego Monteiro em uma de suas galerias, caberia a tão reivindicada retrospectiva desse artista, um dos mais importantes representantes do Estado na semana paulistana e que já apresentava na época obras com temáticas nacionais mais avançadas que as de muitos dos seus pares naquela exposição de artes plásticas, em 1922.
A UFPE, que detém em seu Departamento de Cultura, na Rua Benfica, obras de Vicente do Rego Monteiro, não as exibe para o conhecimento público e tampouco o Curso de Artes Plásticas, por sua vez, busca nessa representação a pesquisa histórica ou estética. Já ao Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, criado, como indica seu próprio nome, para tratar de assuntos assim, caberia outra retrospectiva não menos didática e importante – a de Cícero Dias, considerado hoje, a glória da arte pernambucana, o modernismo vivo, ainda não devidamente pesquisado aqui em Pernambuco. Seria essa a oportunidade para um entendimento maior de sua dimensão histórica. Apesar do lançamento, recente, do livro Cícero Dias, Uma Vida pela Pintura – bancado pela iniciativa privada -, nos jardins do Palácio do Campo das Princesas, não foi suficiente para Pernambuco se sentir quitado com essa dívida à ilustre presença artística.
Com duas grandes retrospectivas – Vicente e Cícero – estariam aqui presentes artistas, críticos, museólogos e curadores, discutindo a participação do Estado no Modernismo brasileiro, e certamente isso daria, além da visibilidade histórica, um conhecimento atualizado sobre a contribuição estética desses artistas pernambucanos.
Claro que os gestores públicos tiveram tempo para marcar, de forma significativa, a presença pernambucana nas comemorações do Modernismo brasileiro, desde as administrações anteriores. Mas, em vez disso, estavam navegando nas águas ilusórias do Guggenheim, que ficou com os mais de 8 milhões de dólares pagos por nós, para realizar a exposição Corpo e Alma em Nova York, e de Pernambuco levou o altar do mosteiro de S. Bento de Olinda, talvez a única representação artística que eles acharam digna para nos representar. Vale ressaltar, aqui, a iniciativa do artista plástico Paulo Bruscky, que desenvolve importante pesquisa sobre Vicente do Rego Monteiro, e sua intenção de futuramente disponibilizar o acervo pesquisado para consulta do público. Iniciativas como essas podem apontar para a criação de um banco de dados, de forma ampla e de caráter permanente, que pudesse localizar, para o pesquisador, o estudante ou o cidadão comum, movimentos artísticos que fizeram e fazem a história das artes em Pernambuco. Por que não concretizar esse acesso à pesquisa em convênio com as universidades e começar a formar uma base de dados em artes plásticas? Seria plenamente positivo, além de democratizar a informação para a população.
É possível tratar a memória num diálogo com a arte atual, e isso nos é demonstrado em outros centros de produção artística no Brasil, a exemplo da cidade de São Paulo, onde a história da arte é preservada e compartilhada com as universidades, que dão o apoio técnico e científico. Agora mesmo, além de lançar a 25ª Edição de sua Bienal, a terceira mais importante do mundo, com a temática Iconografias Metropolitanas, concomitantemente, está realizando, com igual importância, mostras de coleções privadas com obras de artistas do século 20 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com títulos – Espelho Selvagem: Arte Moderna no Brasil da Primeira Metade do Século 20 (Coleção Nemirovsky) e Paralelos: Arte Brasileira da Segunda Metade de Século 20 em Contexto (Coleção Cisneros) – que, certamente, remetem a uma reflexão e reavaliação do Modernismo brasileiro.

quinta-feira, 14 de março de 2002

Picasso e os Curadores

Plínio Palhano


Por ocasião da Mostra do Redescobrimento, Brasil + 500, no ano 2000, em São Paulo, surgiram, como sempre acontece, polêmicas saudáveis, entre elas a questão do verdadeiro papel do curador. Isso porque alguns artistas se sentiram injustiçados ou, de alguma forma, não dignamente representados naquela grande exposição.
Alguns críticos, historiadores e museólogos se interessaram em participar da discussão. A revista Arte & Informação pôs em circuito essas importantes vozes de profissionais envolvidos com as artes plásticas. Paulo Sérgio Duarte, um deles, que prefere ser identificado como um coordenador de projetos, renegando o título de curador, disse com fundamento que “O bom curador é aquele que não aparece  – deixa aparecer só a obra de arte que ele está mostrando. Quando a curadoria tem visibilidade, ela já está estragando tudo.” Para se entender com a curadoria, o artista plástico Cildo Meireles, um dos escolhidos na Mostra, foi obrigado a se utilizar de um intermediário no diálogo, com o objetivo de colocar o seu ponto de vista  em relação às obras que participariam, embora tenha predominado a versão da curadoria do evento, sobre a qual, naquela oportunidade, Meireles expressou publicamente sua contrariedade.
Outro artista que se sentiu pobremente representado foi Henrique do Amaral. Dos seus trabalhos, foram selecionados apenas dois, não considerados por ele importantes para aquele momento, por não favorecer uma visão real da sua obra, realizada em 45 anos de arte. Amaral chegou a afirmar: “Não sou o darling da moçada”. Por sua vez, a crítica de arte, historiadora e museóloga Aracy Amaral foi contundente e irônica: “Os curadores usam roupas de grife, como treinadores da Seleção Brasileira – sapatos, relógios – e há um dandismo no ar que  combina com a banalização de sexo, afetos, moral, uso de drogas, como se nada mais importasse, só isso: a avassaladora importância do dinheiro e das grifes”.
Em seu Dicionário Crítico de Política Cultural, Teixeira Coelho aproxima o sentido atual do curador com a definição jurídica tradicional: “aquele que, por incumbência legal ou jurídica (no caso, cultural) tem a função de zelar pelos bens e interesses dos que por si não o possam fazer, como os órfãos, loucos, tóxico-dependentes, estróinas, etc. Os artistas surgem, assim, como aqueles que não sabem ou não explicitam as tendências em que se encaixam, suas hipóteses de trabalho, suas propostas: não têm controle sobre sua obra, são relativamente incapazes de geri-la”. Ou seja: em tese, o artista deixou de pensar o seu mundo, sua cultura, para ser simples instrumento de reflexões teóricas desse novo agente da arte – o curador.
Mas os artistas deram as suas definições e criaram a história da arte de que  temos notícia. Não coube a nenhuma outra figura, a não ser a eles, os artistas, a construção desse pensamento. Claro que sempre estiveram associados, de forma instintiva e inteligente, ao poder. Poder do qual hoje esse personagem, o curador, é o mais próximo.
Difícil é imaginar um artista como Picasso, com aquele olhar penetrante e agudo que tinha, ouvindo docilmente a opinião de um curador sobre como deveria ser sua próxima retrospectiva. Ele, de braços cruzados, com ar de quem está se protegendo das possíveis interferências estabelecidas dentro dos “critérios” internacionais vigentes… Brassaï, o fotógrafo predileto do artista, no seu livro Conversas com Picasso, narra um fato por ele presenciado que pode ilustrar muito bem o que queremos dizer.
Um importante editor alemão estava interessadíssimo em lançar uma espécie de álbum só sobre as esculturas do mestre. E como Brassaï era o fotógrafo oficial, acompanhava o editor na revisão das esculturas, que deveriam ser fotografadas no ateliê do artista. De repente, o alemão pára ante uma escultura (A Ave) e murmura no ouvido do fotógrafo: “Não vale a pena fotografá-la. É mais um objeto que uma escultura…” Picasso conseguiu ouvir a frase do editor e com energia, apontando para a escultura, disse: “Faço questão absoluta de que essa escultura figure em meu álbum!”. E, horas mais tarde, sem a presença do editor no ateliê, Brassaï ouve o desabafo do artista: “Um objeto! Minha Ave então não passa de um objeto! Quem ele pensa que é, esse homem? Ensinar a mim, Picasso, o que é ou não uma escultura! É muito atrevimento! Disso eu entendo provavelmente mais que ele… O que é escultura? O que é pintura? As pessoas se apegam às idéias  velhas, a definições caducas, como se o papel do artista não fosse precisamente propor novas definições…”.