"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O silêncio e o microcosmo na arte



Nesses tempos da exaltação do poder pela política e da riqueza, voltamos o nosso olhar sobre a arte e vemos o quanto as suas propostas e concepções estão distantes das forças externas que tentam influenciar o futuro da humanidade. Os sistemas estabelecidos que têm o domínio da sociedade em todas as formas dão as cartas acima das coisas pelas quais os artistas e a arte se interessam. Os reflexos da arte quase sempre são considerados anos depois da passagem de um pensamento contido numa obra, só então são compreendidos como lembranças que deveriam ter sido consideradas ou validadas. E, a partir daí, a história, a ciência e a filosofia voltam a consolidar uma aparente verdade na arte e no artista. Hoje, quando voltamos nossa atenção ao que aconteceu no século 20, considerado o século também dos ditadores modernos, nós os vemos pequenos em relação à importância de avanços concretos para a humanidade, porque eram, principalmente, imbuídos de ideologias ridículas de supremacia racial ou daquelas superadas pela realidade da vida e da economia; no entanto, manipularam armas e praticaram crimes danosos contra a humanidade, com a aparência direta do poder em que a arte era tida como um nada. 

Poderíamos começar com a investida dos artistas que buscaram a luz do campo para realizar suas pinturas, o que, na época, era considerada uma atitude ridícula para se manifestar na matéria pictórica. As exposições realizadas por esses pintores eram centros de debates para desconsiderar aquelas imagens tratadas nas obras. Quando passaram um bom tempo sem vender suas telas ou vendendo-as com preços irrisórios, acusados de representar tudo apressadamente, sem os cuidados do realismo das obras orientadas pelo academicismo, um crítico, Louis Leroy, para desconsiderá-los, chamou-os de “impressionistas”. Título que permanece até hoje e é considerado uma bandeira de inovações na arte. 

Com o estudo científico da luz nos meados do século 19, foi constatado que a cor é um estado da luz e que a sua permanência e mutação dependem de sua intensidade. Fato constatado, séculos anteriores, por Leonardo da Vinci, nas suas teorias sobre a cor. E, hoje, para nós, isso é tão evidente que nem no pensamento podemos negar. Também eles queriam pintar a vida, documentar como ela era nas ruas, nos lugares de lazer, no trabalho, nos campos, etc. Um modo de ver que influenciou a literatura, a música, o teatro... e o século 20, nas várias manifestações da arte. Mas o início disso tudo foi o simples fato de sair e presenciar a luz sobre as coisas.

Três desses artistas que participaram do movimento impressionista,  Cézanne, Gauguin e Van Gogh, influenciaram artistas e movimentos posteriores. Cada um com sua personalidade forte e concepções que se diferenciaram na captação da luz impressionista e criaram caminhos próprios que foram considerados precursores do Cubismo, do Sintetismo e do Expressionismo, entre outros. Cézanne concebia as coisas de forma geométrica, que tudo se interligava de forma esférica, cilíndrica, cônica e cúbica, o que tanto influenciou artistas como Picasso, Braque e demais cubistas; Gauguin, com suas formas cheias de cores puras e chapadas, sintetizava tudo de maneira simbólica, influenciando o Sintetismo, o primitivismo e o fauvismo; e Van Gogh, com suas pinceladas e cores expressivas, deu início a uma ideia do Expressionismo, que, no princípio do século, foi uma verdadeira febre na Alemanha. 

Sabe-se que quando Picasso realizou a obra “As Meninas de Avignon” (1907), célebre no percurso cubista do artista malaguenho — que escandalizou seus colegas, porque não foi aceita de pronto, por ser um passo considerado ambicioso demais para a cultura vigente —, Einstein, em 1905, tinha concebido sua teoria da Relatividade Restrita, na qual, posteriormente, os especialistas viram pontos de intersecção com o Cubismo, no tocante à concepção.  No silêncio dos ateliês, esses artistas conceberam obras que, no seu tempo, não tinham repercussão como hoje, com as ideias se sedimentando aos poucos e abrindo a cabeça da crítica e do público para uma outra realidade do espaço e das formas. Em todas as épocas, as inovações foram vistas dessa maneira.

As revoluções na arte não têm os rugidos das sociais, com a violência das tempestades e de lutas tão próprias de seus movimentos. As da arte são quase sempre silenciosas e conduzidas pela reflexão de um artista, com elas são concretizadas ideias mais permanentes que o poder das armas. Nesse sentido, penso na obra de um Giogio Morandi, o silencioso artista italiano que pintou suas belas e modestas garrafas que são verdadeiras obras-primas da modernidade, um artista que pensou diferente, como um monge dedicado ao trabalho, a exemplo de centenas de outros artistas.

E para nós, os do século 21, quanto mais penso em nosso modesto olhar, mais retiro o prazer e a surpresa sobre o interesse nos pequenos temas, algo como uma parte da natureza, um fragmento que mostre a expressividade da microforma, um corpo de um animal, a cabeça, o olhar, a boca humana, os detalhes tão sem importância aparente, longe das grandes cenas, das batalhas, das gigantescas representações... Prefiro extrair essas formas das coisas solitárias, mas que estão plenas com o cosmo, com a vida.



terça-feira, 27 de outubro de 2020

A arte nos tempos de convulsão

 


A arte sempre surgiu, em todas as épocas da humanidade, envolvida em várias circunstâncias inevitáveis: físicas, sociais, políticas, econômicas... O artista, o ponto-chave dessa produção, procurou se adaptar em momentos turbulentos e gigantescos ante a sua individualidade: teve uma história de anonimato, como escravo ou simples artífice nos sistemas de Estados opressivos, quando o cidadão não tinha a classificação de um indivíduo influente na sociedade, como relativamente nos tempos de hoje. Mesmo assim, com a limitação, criou obras notáveis que fazem parte de um conjunto que está no acervo do patrimônio mundial. 

Na arte das cavernas, que se realizava em pinturas com intenções mágicas para captar, na representação, presas para as suas caças de forma objetiva e prática, quando enfrentava as intempéries da natureza em cada região, na da Mesopotâmia, na do Egito, criada em função da elite sustentada pelo poder dos faraós ou dos sacerdotes, o artista era um anônimo, não assinava as suas obras, não deixava a sua digital. Grécia e Roma foram onde começaram a aparecer nomes importantes (Fídias, Crésilas, Praxiteles, Aristéas de Afrodísias...). Mesmo os chineses mais primitivos, em períodos semelhantes, mantiveram o anonimato, como também ocorriam na arte africana, hindu, islâmica, pré-colombiana... A arte esteve, por muitos séculos, sob o domínio de teocracias, de tiranos, de poderosos monárquicos, clericais e, na modernidade, nas democracias e nas ditaduras. O que salvou o artista foi a genialidade de cada um, que soube satisfazer os seus senhores com uma estética própria, individual, numa concepção inigualável e difícil de ser compreendida, na sua totalidade, por aquela elite.

O Renascimento constituiu o coroamento da personalidade do artista. No entanto, Michelangelo foi praticamente obrigado a pintar a Capela Sistina pelo papa Júlio II, que queria um afresco realizado pelo gênio florentino. Em primeiro momento, o artista quis recuar, afirmando ao bispo de Roma que era um escultor e não um pintor, é quando o guerreiro papa reafirma que ele saberia pintar porque aprendeu com o seu mestre Domenico Ghirlandaio as técnicas do afresco. Michelangelo ainda resiste, desaparece, enraivecido com Júlio II, mas este o manda buscar e o repreende, forçando-o a realizar o grande afresco no teto da Capela, que foi completado em quatro anos, de 1508 a 1511. Realizou o que o papa queria com sua marca de genial artista do Renascimento. Também aceitou, como ele queria, a construção do túmulo de Júlio II, uma de suas obras-primas em escultura. 

São nas grandes convulsões que o artista armazena fôlego para criar. É o exemplo do pintor espanhol Francisco de Goya (1746–1828), ao adquirir uma doença que o manteve surdo a partir de 1792, mergulhando-o no silêncio, com ele se comunicando por sinais e escrevendo bilhetes para se fazer entender. Por este fato, a sua visão desenvolveu um potencial maior, e, segundo alguns críticos, essa crise despertou a sua genialidade sobre o mundo e os sentimentos humanos, de forma que realizou obras assombrosas de imaginação e de concepção em pinturas, gravuras e desenhos. Foi na série de gravuras “Desastres da Guerra”, em que se permitiu interpretações da violência bélica, quando da invasão das forças napoleônicas na Espanha, relatando, plasticamente, a animalidade da guerra, a fome em Madri, no mesmo período, e a reação dos espanhóis na expulsão dos franceses do seu território. Cada uma dessas gravuras aborda um aspecto humano quando está sob pressão de um conflito. Goya dá título genérico à série: “Fatais consequências da guerra sangrenta na Espanha contra Bonaparte e outros caprichos impressionantes”. 

A obra “Guernica”, do pintor malaguenho Pablo Picasso, também foi um testemunho de protesto contra a opressão comandada pelos alemães nazistas, com o apoio de Franco, durante a Guerra Civil Espanhola, que bombardeou por três hora e meia a cidade de Guernica (1937), no País Basco, proporcionando uma destruição material total e ceifando vidas humanas, uma tragédia simbolizada numa obra dramática e concebida com o estilo próprio do autor, que é um marco na história da arte. 

 

 


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Reflexões e arte na quarentena




A arte é um oceano para aqueles que pretendem mergulhar em suas riquezas. Com o passar do tempo, mais experiente, o artista chega à conclusão de que um dos fatores essenciais para construir uma obra é a simplicidade de percepções que captam caminhos, naturalmente porque não há um programa de dar uma direção à concepção; a própria arte oferece o tom, as decisões para uma trajetória. O criador segue as determinações dessa prática, desse exercício contínuo de plena atividade, e essa mecânica individual o faz dar passos para o nascimento de algo inesperado para trabalhar, aprofundando os pensamentos, sem cálculos exatos, claros, mas abstratos e múltiplos. Assim surgiram as séries que realizei, e assim vejo em muitos outros artistas.

Quando consolidava uma das primeiras séries, a de nus, com modelos – uma imensa quantidade de quadros–, as imagens dos corpos vinham à minha mente inteiras, fechadas, como num foco de uma lente onde só interessava os detalhes das superf ícies e dos contornos, em pinceladas nervosas e matéria densa de pastas de tinta, sem prestar atenção ao que estava ao redor desses corpos. As soluções eram monocromáticas, com terras, preto e branco, e a luz era determinada na mistura dos brancos e ocres, raramente outra cor. Trabalhava como um fanático e tinha dias em que realizava até três obras, numa velocidade impensável nos dias de hoje. Com a prática, na repetição do tema, fui abrindo os corpos em linhas e massas tornando o nu quase abstrato. Dei o título Composições da nudez por achar que eram mais estruturas pictóricas que formas sensuais...

Aconteceu algo paralelo, logo em seguida, com a série Partes de Corpo Animal, quando desenvolvi uma visão do animal, individualmente, no início, e supostamente no campo, representando a cabeça do boi quase realista – “quase” porque naquela época (1980) era impossível fazer um trabalho realista – até a sua morte, no matadouro, formando imagens de esquartejamento. As cores eram colocadas na superfície, puras, da forma como estavam nos tubos de tinta, com as variações entre terras, pretos, ocres, azuis e vermelhos. Também uma série longa, com muitos trabalhos. A pintura sempre me atraiu pelas suas sensações nos movimentos dos pincéis e pelo entrelaçamento das cores; esse exercício invade o corpo e se integra ao pensamento numa só força. Essa é uma das minhas características que se prolonga aos dias atuais no instante do encontro com uma superfície quando pretendo dar cor e forma, sem pretensões maiores que o prazer do trabalho.

Lancei mão de vários temas com essa percepção e concepção, admitindo paisagens, retratos, nus, representações de animais, naturezas-mortas, assuntos sociais, abstrações... Há algo de que o artista não pode fugir: é de si próprio; o que lhe pertence deve perseguir e preservar para manter a coerência do trabalho – uma lição que aprendi.

Quase sempre uma série surge, vagarosamente, nas tentativas mais simples, como um músico que dedilha um teclado ou cordas, quando surgem os sons que lhe agradam, e aquilo aumenta numa tensão que o faz anotar e compor; assim também a pintura dá essa sensação. Ao iniciar a série Mare Nostrum, comecei a trabalhar em quadros de pequenas proporções, criando naturezas-mortas com peixes, um assunto que sempre esteve presente no meu imaginário por ser um praieiro nato. Aqueles pequenos trabalhos foram me tomando nas proporções das telas, como se eu aproximasse o olhar aumentando os detalhes daqueles peixes, daquelas agulhas, daqueles peixes- -espadas, das cavalas, das ciobas, das arraias... A partir daí, a série tomou outro aspecto, talvez um encontro com o simbolismo que só consegui enxergar muito depois. Era uma relação hipnótica que tive com a temática e a técnica; não havia espaço para explicações daquilo que estava fazendo. Dos quadros pequenos surgiram os de maiores dimensões, e era um seguido de outros, uma relação apaixonada e cheia de significados inconscientes que só percebi quando acordei daquele sonambulismo...