A poética do pintor pernambucano José de Moura é límpida, fala de nossas raízes culturais diretamente da fonte popular, com a naturalidade de quem está sintonizado com essas forças. Na sua criação, o processo é lento e reflexivo: primeiro, ele retém na memória os fatos, as histórias que ouviu através dos contadores ou mesmo viveu como um dos atores nas cenas enriquecidas pela imaginação — tudo numa dosagem exata de humor, que lhe é peculiar. Em seguida, anota as impressões retidas na mente em vários desenhos, selecionando-os para transpor a idéia pronta à pintura. Recria várias obras a partir daí, tomando os detalhes ou o todo de uma matriz, em multiplicação genética, mas cada uma dessas obras adquirindo vida e características próprias. A narrativa divide valores com a matéria pictórica e abre a visão do artista — “O meu desenho é suporte para a cor”, diz ele.
Em Altares — nome da exposição dos seus trabalhos recentes —, o pintor procura repassar uma simbologia mística, uma celebração à vida, à carne, ao Sol, ao sangue, à alegria de viver, ao prazer expresso na amizade, ao vinho, ao povo com seus mitos e seu universo próprio de religiosidade, que elege os santos domesticados na crença simples e verdadeira.
A começar com a pintura A Santa do Cabaré e o Anjo que Veio de Longe, em que representou uma cena com duas figuras, a santa e o anjo, como se o anjo estivesse anunciando revelações íntimas. A santa vestida apenas de lingerie preta em rendas coladas em seu corpo, sapatos azuis, delicados, a cabeça envolvida numa aura que expande a luz em ouro 14 — material em pó, de trabalho do pai do artista, marceneiro, que J. Moura guardou, preservando-o para momentos especiais — misturado ao óleo de linhaça com o fim de ressaltar o amarelo puro; e acima, ao lado esquerdo, sai o arco-íris de um copo — desses de bares próprios para se tomar uma cerveja —, que se integra à aura também decorada em rendas, como na lingerie. O anjo talvez não tenha vindo de muito longe, das alturas celestes, mas de outra cidade, numa camisa adequada para brincar o carnaval. O diálogo entre os dois lembra a temperatura tropical, pelos amarelos no fundo, atrás do anjo, e no vermelho do apoio em que a santa está sentada. Certamente esta cena não será encontrada na parte norte do planeta, mas no calor latino-americano.
Tô Avisando é outra composição vertical em que aparece uma personalidade profética, eclesiástica, com o dedo em riste, num discurso de alerta, ornamentada em paramento idealizado pelo pintor, vermelho, formando flores, sóis. O profeta tem olhar piedoso, mas enérgico, para que todos sigam a profecia anunciada. Este personagem principal, no centro; e, como num tríptico em linha vertical, os complementos: acima, um coração e duas mãos sangrando; embaixo, continuam as vestes e um pedaço de entalhe decorativo. A verticalidade da obra diz que todo profetismo só poderá surgir nesse sentido. Em que profeta se inspirou o artista? Visto de longe, com uma câmera na mão, em imagens rápidas, vê-se uma semelhança com a figura de D. Hélder, como transfigurada; não sabemos se foi a intenção do autor, mas fica, em reflexos, a impressão.
Nas obras atuais de José de Moura, os elementos em arabescos tomam o olhar do espectador e um maior espaço na pintura, deixando o menos possível as áreas — presentes nos seus trabalhos anteriores — planas e uniformes. Reutiliza os bastões a óleo — confeccionados pelo pintor —, que já fazem parte do seu ofício, dando vida aos detalhes, aumentando a intensidade da cor, formando as transparências e passagens ou fechando o quadro com linhas retas. O princípio de centrar a luz sempre presente em todas as obras, como: Chica, A Guerreira, O Homem de Coração Tatuado, Dizendo o Que Não Fez, e ainda uma série dentro de Altares, Reza Forte, apresentam os subtítulos Alma do Santo I, II e III.
Para celebrar Altares, José de Moura convidou os amigos artistas — João Câmara, Francisco Brennand, José Cláudio, Luciano Pinheiro, Fernando Guimarães, José Barbosa, Gil Vicente, Delano, Rinaldo, Pedro Dias, José Carlos Viana, Ferreira, Maurício Silva e Plínio Palhano — para que fossem co-autores em obras com temáticas escolhidas pelos convidados e linguagem plástica compartilhada. As obras emolduradas estão colocadas numa última moldura em forma de caixa e protegidas por vidro: certamente para estar na concepção de Altares, simbolizando o rito da amizade. Também apresentará objetos: um representa o Cristo crucificado dentro de uma cruz com frontal em vidro, erguido na idéia de santuário, em suporte longilíneo; o outro, com três pequenas pinturas assinadas por autores diferentes, numa cúpula de vidro sobre o mesmo tipo de base, como um minúsculo altar.
A participação desses artistas indica também a importância que o pintor dá ao entrelaçamento de trabalhos e ao velho conceito da criatividade coletiva em que, generosamente, se diz influenciado por todos, “porque a influência não é só no trabalho diretamente, mas principalmente nas conversas que mantenho com os amigos, e eles estão em Altares, porque principalmente pretendo celebrar em espírito coletivo”.
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