"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Picasso e Einstein




Dois jovens, no início do século 20, proporcionaram uma nova visão sobre o mundo: um no âmbito da arte, Picasso, e o outro no da ciência, Einstein. Os dois, com o mesmo espírito de rebeldia, conquistaram, com suas teorias, a libertação da mente e do olhar quanto ao espaço e ao tempo. Dominaram e reafirmaram as suas pesquisas, mas não foram compreendidos no primeiro momento pelos seus pares e mestres. Não conseguiram agradar, principalmente, os meios acadêmicos, pois estavam mais concentrados na concepção de suas ideias.

Ainda jovem, Picasso abandonou a formação acadêmica, que poderia tê-lo tornado um dos notáveis nos tradicionais conhecimentos. Renunciou a esse caminho e criou sua própria trajetória indo a Paris para continuar a empreitada livre como artista. Lá conheceu obras de outros que lhe forneceram alimento para a criação. Além de Cézanne, a influenciá-lo por meio de sua obra, com a visão de espaço e cor, foi Matisse quem lhe mostrou a arte africana, que proporcionou um verdadeiro salto quântico em sua pintura e lhe fez dar os primeiros passos para o Cubismo, uma das maiores revoluções no campo da estética plástica. Foi contaminado pela concepção de variados criadores, mas entusiasmou também uma quantidade imensa de artistas, que o seguiu, direta ou indiretamente, nas formas que criou, inicialmente consideradas estranhas.

O seu futuro companheiro de ateliê, Georges Braque, disse certa vez que estava impactado com a obra “As meninas de Avignon” (“Les demoiselles d’Avignon”), obra crucial para a consolidação do Cubismo e do próprio artista: “Era como se estivesse na presença de uma pessoa que tinha bebido petróleo para escarrar fogo”; e o pintor André Derain afirmou que um dia iria encontrar Picasso enforcado atrás de uma de suas telas cubistas, talvez lembrando o conto “A obra-prima ignorada”, de Honoré de Balzac, na qual o mestre Frenhofer apresenta sua obra como se fosse uma concepção única no universo pictórico a dois jovens artistas que ficam sem compreender a intenção do mestre.

Apesar do choque inicial, os artistas, aos poucos, aderiram à nova concepção picassiana. O Cubismo desenvolveu o olhar do espectador sobre as coisas, como se a percepção ampliasse e se pudesse enxergar todos os aspectos da matéria, todos os lados, quebrando, assim, a perspectiva linear tradicional; ao mesmo tempo, o pintor apresentava o objeto de sua criação frontalmente, dos lados, por trás, do topo, de ângulos diversos, e o que estava em volta se confundia com o tema pintado... Isso aconteceu em 1907. Picasso tinha 25 anos.

No mesmo ano, uma série de cinco artigos sobre a Teoria da Relatividade Especial, publicada em 1905, por Einstein — com 26 anos —, nos “Anais de Física”, começou a repercutir no meio científico. Um dos eminentes físicos alemães, Max Planck, de Berlim, enviou um assistente, Max von Laue, para Berna, com o fim de conhecer o autor e sua teoria. O assistente presumia que iria encontrar o Professor Doutor na universidade de Berna, mas nas suas investigações descobriu que o Sr. Einstein trabalhava no prédio dos Correios, onde se situava o Departamento de Patentes, que foi o único emprego, à época, que conseguiu para sua sobrevivência. Max von Laue, então, o procurou nesse departamento e pediu que fosse chamado, aguardando-o na sala de espera. Num primeiro momento, o jovem Einstein não foi reconhecido pelo assistente, que só percebeu que se tratava do autor dos artigos quando ele se apresentou.

Max von Laue foi o primeiro cientista importante a se aproximar de Einstein: como é sabido, sua teoria reelaborava o significado de observar eventos no tempo e no espaço, fato que mudou a compreensão da humanidade ante o Universo.

Dois criadores que se encontram naturalmente e modificam a concepção do mundo. É como se o Cubismo e a Teoria da Relatividade se fortalecessem para dizer que as coisas não são mais como imaginávamos...

sexta-feira, 22 de março de 2019

A arte das cavernas



O artista no período paleolítico era um caçador. Quando pintava o objeto da caça nas cavernas, ele não fazia distinção entre aquela representação e o animal que seria atingido pelas suas ferramentas e habilidades. A imitação pictórica tinha vida própria como se fosse a natureza: acreditava que era uma espécie de armadilha que antecedia a caça. Não eram dois mundos, era um só. Uma visão monista da realidade. Não existia nenhuma transcendência. Nenhuma preocupação fora da vida, do meio ambiente, da sobrevivência imediata. As pinturas desses animais tinham uma fidelidade com os finalmente caçados. Por isso, esse período foi considerado como naturalista, ou impressionista. A pintura era produto do que via, e ele, o artista, conhecia bastante as suas presas, representava-as com todos os detalhes necessários para o trabalho de captura. Era a magia que imperava. Também esse período é reconhecido como o da magia. Representava os animais atingidos por dardos e flechas e julgava-os fatalmente mortos por este fato.

Não havia nenhuma preocupação estética, não era um deleite, e sim uma estratégia presente no dia a dia. Segundo os especialistas, o fato de as pinturas serem realizadas nas cavernas demonstrava que eram para uma prática mágica, e não de caráter estético. Mesmo assim, o artista paleolítico deixou um patrimônio de beleza que encanta todos os estudiosos que se debruçam nessas pinturas. Muitos destes levantam a questão intrigante de que, por ser uma pintura enriquecida pela vida, é curiosamente difícil de acreditar que foram realizadas pelo homem primitivo. Mas a ciência arqueológica e outras a cada dia desenvolvem pesquisas e teorias que aproximam o entendimento daquele mundo ao atual. Só de se pensar que muitas dessas pinturas rupestres se mantêm com aspectos ainda vívidos já é um assunto para a ciência decifrar.

Com a lenta e grande transformação desse período paleolítico — quando os seus agentes eram nômades e viviam exclusivamente da caça e da coleta de frutos, enfim, da natureza de forma parasitária, para a idade neolítica, o Homem passa a desenvolver uma cultura baseada na produção do próprio alimento, com atividades agrícolas, pecuária, divisão de atividades entre os sexos, desenvolvendo então uma visão mais transcendente da vida, na qual aparece a crença no sobrenatural, na dualidade do corpo e espírito e na força dos deuses, que interferem no mundo dos vivos, um mergulho no animismo. E, como consequência, as pinturas rupestres são influenciadas por essa concepção de vida. A arte inicia um processo mais intelectualizado, racional, abstrato e geométrico, simplificando as representações dos seres como símbolos pictográficos. Mas, na fase intermediária, ainda no final do paleolítico, apareceu uma tendência mais expressionista que impressionista, que foram as representações exageradas dos animais, prolongando os seus membros para ressaltar o aspecto do movimento dessas figuras. 

Couberam ao século XX — coincidentemente o mais preparado quanto à tecnologia e ciência para estudos e pesquisas sobre tão empolgante tema — as descobertas das cavernas do paleolítico e neolítico, principalmente na Europa (na Espanha, em Altamira, El Castilho; e na França em Lascaux, Chauvet e Montighac), que são as que mais se destacam. Esse patrimônio mundial ainda motiva artistas a fazer um paralelo com a arte primitiva dos nossos ancestrais. A matéria que esta apresenta é de uma força que permanece em nosso inconsciente como algo revolucionário, é fonte e alimento para as várias artes do nosso tempo. Um exemplo disso é o documentário do cineasta alemão Werner Herzog sobre as Cavernas de Chauvet, com o título “A caverna dos nossos sonhos” (2010), que é uma obra notável para conhecer as pinturas mais antigas realizadas pelo Homem há 30 mil anos...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O Realismo em Rafael




Rafael Sanzio (1483–1520) foi o mais jovem da tríade, no Alto Renascimento — ante uma plêiade de notáveis —, que formou com Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti. Também foi o mais silencioso deles, porque os estudiosos se basearam mais em sua obra plástica para decifrar o artista, enquanto os outros dois deixaram uma imensidão de informações escritas e testemunhos: Leonardo, com os seus infindáveis cadernos de anotações, estudou tudo ao seu redor, deixando para a posteridade desenhos e textos que ainda hoje espantam o público e os especialistas; e Michelangelo com os versos e depoimentos que deram pistas para falar sobre o autor do afresco do teto da Capela Sistina.

Rafael Sanzio foi o que teve a oportunidade de iniciar muito cedo a sua formação, tendo a sorte de ter um pai, culto e sensível, Giovanni Santi, artista que o iniciou nos primeiros passos na pintura e o percebeu como um talento precoce, encaminhando-o, aos 11 anos, a uma das sumidades da época, Pietro Perugino, em Perúsia, para dar a solidez do alicerce ao futuro renascentista. Aos 17 anos Rafael já era considerado um mestre para concretizar a concepção de sua obra.

Segundo os críticos e historiadores, ele recebia as influências, mas não se escravizava a elas. O artista tinha o ímpeto natural de superar o mestre. Foi o caso com Perugino em algumas obras, como O casamento da virgem (1504), que fez o historiador suíço Jacob Burchardt dizer que “Rafael pintava como Perugino devia ter sempre pintado.” De Leonardo e de Michelangelo recebeu influências e as adaptou à sua maneira; do primeiro, sobre os retratos e as madonas; e, do segundo, a anatomia de algumas personagens das cenas bíblicas da Capela Sistina. A personalidade plástica de Rafael era tão forte que não se percebia — apesar de alguma influência — outro artista em sua obra a não ser ele mesmo com o seu Realismo, com as suas cores, seu desenho, o encanto das figuras representadas...

Rafael foi um artista de sucesso, não teve dificuldades para alcançar o topo da aceitação de sua obra no mercado de clientes ricos, mecenas e, principalmente, por parte da Igreja. Suas invenções aludiam à mitologia clássica, a deuses e deusas, à fé católica, a temas bíblicos, a santos, a anjos e a mensagens da salvação cristã. Dois papas se interessaram pelo seu trabalho no Vaticano e o contrataram. Júlio II e Leão X foram os que mais investiram. Destes fez retratos importantes e históricos. Leão X gastou o que a Igreja não poderia suportar e levou o Vaticano a séria crise financeira. Foi, no entanto, a fase mais rica quando se trata de obras de artes nesses papados, como as de Michelangelo e de Rafael, que foi também nomeado arquiteto-chefe da nova Catedral de São Pedro — e de outros como Piero della Francesca, Signorelli e Perugino. A estratégia da Igreja era atingir os fiéis com as representações das suas tradições, numa investida contra o espírito da Reforma: segundo o pensamento, as imagens diriam mais que as palavras; portanto, as disseminações de obras de artes falavam às almas, como numa pregação plástica permanente.

O excesso de trabalho fez com que Rafael formasse a sua equipe de colaboradores artistas e discípulos para dar conta das encomendas vindas essencialmente do Vaticano. As tarefas eram divididas entre estes, sob a direção e inspiração do mestre, para que tudo se harmonizasse, desde a concepção ao acabamento das obras, como era a práxis de todos os ateliês eminentes do seu tempo. Júlio II encomendou-lhe afrescos para a Stanza della Segnatura (Sala da Assinatura), e Rafael concebeu a temática com representações de figuras bíblicas, mitológicas e de pensadores da Antiguidade e da Idade Média, onde se fazem representados Cristo, Aristóteles, Platão, Apolo, com títulos como A disputa, Parnaso, Escola de Atenas e Justiça. Enquanto Rafael trabalhava nas salas do Vaticano, Michelangelo elaborava o afresco, à porta fechada, no teto da Capela Sistina, desvelando a primeira parte da obra em 14 de agosto de 1511. O sucessor de Júlio II, Leão X, não dá trégua a Rafael e sobrecarrega-o com mais trabalhos, entre pinturas e afrescos, inclusive uma série de desenhos com o fim de realizar tapeçarias para enaltecer o próprio pontífice, por sugestão do mesmo, comparando-o ao apóstolo Pedro, como numa propaganda papal. No entanto, habilidosamente, Rafael desenvolve o tema retirando-o dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, fornecendo uma perspectiva própria.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O artista solar do Renascimento



Por ser bastardo, Leonardo da Vinci foi impedido de entrar na universidade para consolidar a sua formação; essencialmente se tornou, ao longo da vida, em seus 67 anos, um autodidata natural; tudo que percebia pelos sentidos, pesquisava e decifrava os fenômenos de forma realista e científica. Segundo relatos de biógrafos, na infância e adolescência conviveu com a natureza e já despertava uma curiosidade permanente sobre as coisas e os seres. Aos dezessete anos, o pai, Piero da Vinci, notário — uma espécie de tabelião e advogado, à época — de Florença, apresentou o jovem ao futuro mestre, Andrea del Verrocchio, famoso escultor e pintor que arregimentava discípulos para o seu ateliê, que funcionava de forma coletiva, como era comum no trabalho dos mestres do século XV com os seus aprendizes.

Esse era o único caminho para um bastardo: o das artes e ofícios; não poderia, por exemplo, herdar a profissão do pai, como notário. Foi ali, no estúdio de Verrocchio, que Leonardo adquiriu todo o conhecimento inicial sobre pintura, escultura e outras artes, bem como sobre arquitetura e engenharia. O aprendiz logo revelou o seu talento e alcançou a posição de assessor destacado do mestre, a ponto de dividir com ele a obra O batismo de Cristo (c. 1475), cumprindo a missão de pintar um dos anjos, que se diferencia pela delicadeza do rosto, ao lado da representação do Cristo pintado por Verrocchio. A partir dessa obra, diz a lenda, o mestre, abismado com o talento do jovem artista discípulo, permite que Leonardo dirija, sob sua supervisão, a seção de pintura do ateliê.

Leonardo sai do ateliê de Verrocchio consagrado como mestre para alçar o próprio voo. Vai para Milão com o fim de oferecer os seus serviços ao Duque Ludovico Sforza, cognominado “o mouro”, e com um instrumento musical, uma lira de prata ornamentada com uma cabeça de cavalo, de sua invenção, para presenteá-lo, seduzindo-o para um acordo de paz, a mando de Lourenço de Médici, o Magnífico, o mecenas e protetor das artes e da cultura florentina. O artista faz uma carta para se apresentar a Ludovico e diz dos seus talentos, do que é capaz de fazer como possível servo artista e criador daquele ducado. Começa dizendo que tem conhecimentos sobre armamentos de guerra, de arquitetura, engenharia, decoração, encenações teatrais, música... e, por fim, expressa que é capaz de pintar e esculpir. Isso, talvez, por saber do espírito bélico de Ludovico Sforza, um inteligente soberano, mas tido como rude.

Além das obras-primas pictóricas realizadas por Leonardo, que não foram muitas, há de se pensar na imensidão de trabalhos relacionados com os estudos em vários ramos do conhecimento, que ele coletou durante a vida e até nos últimos momentos. Estudou o corpo humano minuciosamente, a anatomia, a fisiologia; o corpo dos cavalos; a luz, seus efeitos na cor, antecipando o impressionismo; o movimento das águas, dos rios, dos oceanos; o céu e a razão de sua cor; o movimento das nuvens; a Lua e a luz refletida sobre ela; os projetos de arquitetura urbanística; o Sol, observando-o como centro do Universo; a astronomia; a mineralogia; a botânica; a arqueologia; o voo dos pássaros; a física; a geometria; a matemática... Por esses estudos, foi interpretado como um herético pelos seus contemporâneos, mas ele respondia que os assuntos místicos ele deixava com os frades, dizia que não era a sua missão, a sua estava relacionada com a ciência, com a experiência dos fenômenos e a síntese das comprovações...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A Justiça e o povo


A experiência dos cidadãos comuns com o Judiciário brasileiro é quase sempre desastrosa, porque cada um de nós tem algo a dizer, e fazemos questão de registrar uma falha; uma perda irreparável; um defeito sério nos processos e no comportamento de advogados, de juízes, de procuradores, de delegados; a atuação de cartórios; a indiferença da Ordem dos Advogados e do Ministério Público quanto à sociedade. Não faltam temas nem argumentos para o povo dizer que o sistema que permeia essas questões deixa mácula na impressão das pessoas para toda uma vida. Já foi dito nas supremas cortes que a lentidão doentia da Justiça é uma chaga para os direitos dos homens e das mulheres deste país. Só sabe isso aqueles que pleiteiam uma reivindicação justa, óbvia, mas que, no trâmite do processo, cai no descaso, muitas vezes porque a burocracia impede uma melhor passagem nas varas, e fica nas mãos de juízes e desembargadores, muitos anos, sem que se chegue a uma conclusão mais rápida.

O maior exemplo na atualidade da morosidade da Justiça está sendo o processo sobre o desastre ambiental causado em Bento Rodrigues (submersa), distrito de Mariana, Minas Gerais, com o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, que despejou um mar de lama de rejeitos de minérios — atingindo 650 quilômetros até o Espírito Santo e desembocando no oceano — e afetou mais de 500 mil pessoas, matando 19, em 5 de novembro de 2015. Tirou do circuito local toda uma população (300 famílias) que ainda não conseguiu receber as indenizações cabíveis. Tudo por motivos burocráticos e técnicos, infindáveis. Já se passaram três anos desde a tragédia e não se tem prazo para definir uma indenização para todos, apesar de se terem decidido alguns planos de recuperação ambiental e um auxílio financeiro, pago mensalmente a 20 mil pessoas...

Podemos afirmar que a tragédia de grandes dimensões proporcionada por supostas falhas de uma mineradora e de órgãos fiscalizadores de meio ambiente é muito mais complexa que os problemas individuais dos cidadãos; portanto, a demora é maior. Uma amiga que passou por problemas familiares, proporcionalmente menores comparados aos de Mariana, sofreu na carne e no espírito a difícil passagem pelo Sistema Judiciário quando denunciou o abuso de seus pais, de 95 e 90 anos, à Delegacia do Idoso. O drama começou com procurações emitidas por cartórios em Olinda, sem o respaldo de laudos médicos para dar licitude a esses documentos que permitiriam um poder de ação ao outorgado para administrar bens, pensão e aposentadoria sem que a filha fosse comunicada. Mas não ficou só nessa denúncia, ela entrou com um processo de interdição e solicitou ao Ministério Público um apoio jurídico. O resultado: a morte dos pais este ano e nada resolvido...

sexta-feira, 16 de março de 2018

Gauguin, o esplendor de uma obra



Paul Gauguin foi marinheiro por seis anos. Dos 17 aos 23, esteve no convívio com o horizonte imenso dos oceanos, até 1871, e, também, como Édouard Manet anos antes, desembarcou no Rio de Janeiro. Período de experiências difíceis: primeiro como estudante para oficial na marinha mercante e, depois, cumprindo deveres militares como marinheiro de terceira classe, enfrentando os seus colegas rudes, que o mantinham a distância. Apesar de ser de estatura de 1,63 m, possuía uma compleição forte e sentia-se respeitado pela coragem no enfrentamento físico. Durante essas viagens marítimas, realizava desenhos para se desconcentrar do ambiente e tentar se afastar dos colegas de convés. Os mares não o faziam sonhar com o seu futuro como artista, coisa inimaginável para o jovem marinheiro. Era um diamante bruto, um gênio em estado latente.

Em seguida, por iniciativa de Gustave Arosa — homem rico que conseguiu sucesso no âmbito da bolsa de valores de Paris e pessoa da relação de sua mãe, Aline Gauguin, que o escolheu como o tutor de Paul —, Gauguin entra no ramo dos negócios financeiros e consegue uma estabilidade burguesa, casando-se com Mette-Sophie Gad, que, durante algum tempo, não suspeitava que estivesse casada com um futuro artista que seria de grande importância para a história da arte. Mas, no próprio trabalho como agente financeiro, encontrou um amigo aficionado em artes plásticas, Claude Émile Schuffenecker, que o fez se aproximar dos museus, dos artistas, das coisas que fizeram Gauguin caminhar ao encontro do mundo da arte. No início, era aos domingos que encontrava tempo para a pintura. Um período sem grandes preocupações para Mette, pois a vida de estabilidade financeira a fazia respirar tranquilidade, enquanto Paul não se definia numa dedicação integral à arte, que consolidaria a separação de um casamento conflituoso.

As primeiras obras de Paul Gauguin foram influenciadas por pintores da escola Barbizon, como Corot, Théodore Rousseau, Millet, Daubigny, que representavam uma pintura escura, na captação direta da paisagem, e depois complementada com as pinceladas de cada artista nos ateliês.

Arosa já possuía, em sua mansão, obras de artistas da nova pintura, que foi considerada como a da sensação, da impressão. Com o título de uma pintura de Monet, “Impressões do sol poente”, um crítico cunhou o nome “Impressionismo”, que, como se sabe, vingou. O seu protetor era um dos investidores da nova pintura; possuía quadros de Pissarro, de Jongkind e outros. Foi ali que Gauguin começou investir mais em suas pinturas, bebendo das novidades que encontrava em Paris. Pissarro — o mestre passageiro — foi quem o introduziu realmente na pintura de pesquisa, de concepção; não se fixou na maneira impressionista de representação, a técnica da sensação foi apenas um aprendizado que logo passaria para outras experiências. Não era mais um diletante, e sim um desbravador que alcançaria o mais alto grau na criação.

Em sua trajetória, Gauguin apreciava trabalhar com outras culturas ou pelo menos com as que considerasse longe dos movimentos civilizatórios; ou estranhas de alguma forma para penetrar nas cores que mostrassem o lado primitivo das coisas. Nesse ponto, o artista encontrou seu mundo e dele era o mestre, acompanhado por seguidores encantados pelo seu discurso. Uma personalidade com ideias que influenciou muitos, inclusive artistas como Vincent Van Gogh; em contrapartida, o holandês deixou as marcas dos seus girassóis na pintura de Gauguin, na convivência dramática que tiveram em Arles, no sul da França, por volta de 1888.

Após as experiências na Martinica, na Bretanha, o artista encontrou, nas ilhas longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador, que foi despertada com lutas intermináveis e as incompreensões que vinham de um mundo civilizado; dizia em Paris, antes de partir, que, entre “os selvagens daqui e os de lá”, preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a história da sua própria pintura e, consequentemente, a arte universal, ampliando-a a cada passo num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de forma, de conceitos — um encontro feliz com o que ele chamava de “mitologia maori”, que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde realizou suas obras-primas, amou suas “noivas” meninas — Teha’amana e Pau’ura — e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo e toda a geração posterior devem à nascente Gauguin, como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar o modernismo na arte do século XX.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Cézanne e Émile Zola




Duas vidas, dois criadores que se cruzaram no século XIX, principalmente na juventude. Paul Cézanne, um burguês, filho do banqueiro Louis-Auguste, antigo chapeleiro bem-sucedido que terminou investindo no mundo das finanças e se tornou um dos homens mais ricos de Aix-en-Provence; Émile Zola, órfão de pai, nascido em Paris, pobre, mantinha-se nos estudos graças aos sacrifícios de sua mãe e dos avós. Os dois se encontraram no Colégio Bourbon: Cézanne um ano mais velho; eram considerados estudantes dotados, mas isolados, porque os outros colegas zombavam de Zola pelo sotaque e pela natural diferença de classe social, que, numa ocasião, fez Paul defendê-lo em uma briga, quando levou uma sova dos colegas. A partir daí surgiu uma grande amizade. Discutiam os poetas, e acima de tudo reinava Victor Hugo.
 
Louis-Auguste, como era de origem operária, sonhava para o filho uma carreira na magistratura, para dar suporte à ideia de que superou o preconceito dos cidadãos de Aix-en-Provence, que não admitiam o velho banqueiro como um membro da elite. E dizia: “Filho, filho, pensa no futuro. Com o gênio morre-se, com o dinheiro come-se”. Nessa época, Cézanne já ensaiava as investidas na arte. Mesmo assim, entra no curso de Direito, mas, para a decepção do pai, abandona o curso após os estudos do primeiro ano. Louis-Auguste ainda tenta colocá-lo no banco para ver se Paul herdou algum talento para os negócios. Outro fracasso, porque o jovem pintor queria mais. O artista fez alguns cursos de desenho em Aix-en-Provence que, para ele, não foram suficientes. Paris era o destino. 
 
Desde então, o mundo dos dois amigos começa a se separar. Zola, com os anos, torna-se um dos grandes jornalistas e escritores franceses, um defensor implacável da nova pintura, que iria ser batizada como Impressionismo. Cézanne desdenhava o sucesso do amigo, acreditava que ele tinha se aburguesado, seguindo o caminho inverso dele. Zola criticava Cézanne por ser tão devagar — era negado no Salão Oficial de Paris, mas, por interferência, foi admitido, um ano, por ter sido aluno de um pintor influente — e o interpretava como um artista fracassado. Num de seus romances, “A Obra” (1886), que é o drama da criação, narra o seu tempo e a história de um pintor, Claude Lantier, que se enforca ante uma pintura inacabada por não se sentir capaz de continuar a sua obra. Cézanne se sente atingido por essa publicação e rompe, definitivamente, a amizade com um bilhete sucinto. Para alguns estudiosos, Cézanne foi mais clarividente sobre a obra do escritor, e a visão de Zola sobre o pintor foi equivocada. O pintor foi como um demiurgo para a pintura e o mundo moderno que viria se anunciar no século XX, o que não aconteceu com o escritor.
 
 Cézanne não teve mestre — só nos museus aprofundava suas pesquisas —, foi de si próprio que implantou uma nova visão da pintura que, com sua influência, alcançou até a arquitetura, o design e outras formas de linguagem visual; talvez, sem o poder criador do artista, a modernidade nas artes plásticas não fosse consolidada como foi. Uma caminhada árdua a sua, passou da fase de um expressionismo barroco, com bastantes pastas de tinta, para uma intermediária, seguindo uma natural sequência de refinamentos estéticos, rompendo o tradicional olhar da perspectiva com uma multifacetada interpretação das coisas. Tornou tudo sólido, numa geometria criativa e inovadora. O Cubismo foi um dos seus herdeiros, com as genialidades de Picasso, Georges Braque e muitos outros artistas, inclusive Marcel Duchamp.