"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Gauguin: um Artista Seminal

O jovem Picasso quando chegou a Paris (1900), no propósito de ampliar os seus horizontes e manter contato com a vanguarda artística parisiense, com o seu olhar e cérebro fulminantes, absorvia tudo o que estava ao redor, incorporando ao seu trabalho a graça inconfundível do desenho de um Toulouse-Lautrec; a pincelada e cor expressionista de Van Gogh; o pós-impressionismo em voga; a geometria do espaço pictórico, de Paul Cézanne; e mais: conheceu um escultor, Paco Durrio, num círculo de artistas espanhóis exilados, que mostrou quadros do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) e forneceu uma cópia da primeira edição de Noa Noa, em que o artista relata suas experiências no Taiti; o escultor foi um guardião fiel dessas obras, a pedido do autor, enquanto o artista empreendia a sua longa viagem à Polinésia. Em seguida, acompanhou com atenção a grande retrospectiva do selvagem Gauguin, com cerca de duzentas pinturas, em 1906, no Salon d’Automne, que foi uma revelação não somente para o espanhol Pablo Picasso, mas também para Henri Matisse, Raoul Dufy, André Derain e outros artistas que ficaram impressionados com a luz do Taiti, refletida através de sua obra.

Para eles o sentido de beleza européia estava sendo colocado em xeque, e o mundo primitivo se revelava como uma nova fonte a ser explorada pela arte. Daí o interesse dos artistas do início do século XX pela arte africana e a da Oceania. Picasso colecionava esculturas africanas, que o influenciaram até o ponto de culminar na célebre pintura Les Demoiselles d’Avignon (1907), que foi a semente do que viria a se chamar Cubismo, mas o começo desse interesse deve-se ao fato de ter conhecido o caminho trilhado por Gauguin, que revelou um mundo primitivo, um novo Éden, o paraíso perdido.

As suas pinturas luminosas, gravuras, cerâmicas e esculturas revelaram a genialidade do artista que não encontrava respostas no Ocidente civilizado e pensava que a arte poderia se rebelar contra as contaminações européias e encontrar nas tradições da Oceania um universo que iria libertar e germinar uma geração de artistas que ampliaria todas as concepções anteriores : para concretizar esse pensamento, pretendia fundar um ateliê coletivo, na Polinésia, no que ele chamaria “Estúdio dos Mares do Sul.”

Revolucionário em vários aspectos – na pintura, que lançou novos caminhos; na gravura em que empreendeu técnicas admiráveis para o seu tempo; na cerâmica, introduzindo elementos de forma, cor e matéria que a diferenciava; na escultura, em que experimentou também a mistura com a técnica da cerâmica; e no entalho, revelando o mundo mágico maori. Com espírito pioneiro, antes de chegar à Polinésia, percorreu diferentes recantos, semeando idéias que fizeram nascer movimentos artísticos com a sua verve de mestre, arrebatando seguidores.

Assim foi na viagem à Martinica (1887), após experimentações impressionistas, e à Bretanha – onde esboçou o que iria se definir um estilo, na ilha do Mar das Antilhas Francesas, que seria a base para a obra que iria concretizar. Lá, Gauguin e Charles Laval – discípulo que conheceu em Pont-Aven – realizam trabalhos próximos nas temáticas e técnicas ante as paisagens tropicais. Durante seis meses, onde produziu doze quadros, captando cenas com títulos como Vegetação Tropical, O Lago, À Beira-mar, num realismo às vezes das personagens que são representadas na paisagem, em cores mais abertas, intensas, e na fatura da pintura longe dos quadros impressionistas que realizou: Interior da Casa do Artista em Paris (1881); A Neve (1883); Gauguin Diante de seu Cavalete (1885). Foi na Martinica que despertou a lembrança da passagem pelo Peru (na infância – de um até os sete anos -, com a mãe Aline Gauguin, filha de Flora Tristán, e a irmã, Marie), alimentando sua poderosa imaginação, numa recordação de luz e pessoas, que o impulsionaria a ir mais longe, pretendendo uma viagem libertadora e “renascer longe da espécie humana”, como foi a do Taiti e a das Marquesas.

Na volta a Pont-Aven, cercado de admiradores que vinham de Paris, onde formulou suas teorias, compartilha historicamente com Émile Bernard a autoria do Sintetismo. Mais tarde, Bernard o acusou publicamente, através de artigos, de que teria se apossado dos seus conceitos, amargando a ascendência do gênio e a personalidade gauguiniana. Na verdade, eles comungavam uma percepção do mundo objetivo e a abstração livre da cor. Daí a conotação que davam às suas obras realizadas na Bretanha, como se fossem pinturas inspiradas em vitrais, isto é, cores puras, separadas por linhas marcantes, como a obra divisória e importante na história de Gauguin, A Visão Depois do Sermão ou Jacó e o Anjo (1888), mesmo recurso plástico abordado por Émile Bernard, no quadro Bretãs no Campo (1888).

Somente a passagem dele pela Bretanha, permanecendo na história da arte como “Escola de Pont-Aven”, seria suficiente para identificá-lo como um criador, inovador e revolucionário do final do século XIX, porque rompeu com a própria teoria impressionista da captação da luz – da qual recebeu ensinamentos no início do seu percurso como pintor, através de um dos maiores e mais puros impressionistas, Camille Pissarro -, abrindo caminhos estéticos, reunindo um número de discípulos que foram importantes para propagar as novas idéias que tinham como centro Paul Gauguin.

Sérusier foi um desses discípulos, que, influenciado por ele, por ter recebido uma rápida aula de pintura – pouco antes de Gauguin sair de Pont-Aven para Arles, em outubro de 1888, ao encontro de Van Gogh -, realizou a obra O Talismã, e entusiasmado levou-a para Paris e mostrou-a aos seus colegas que freqüentavam a Academia Julian. Todos ficaram envolvidos com a inovação e abandonaram as velhas lições acadêmicas, formando um grupo: Édouard Vuillard, Maurice Denis, Félix Vallotton, Pierre Bonnard e o próprio Paul Sérusier. Foram estes – por influência de Sérusier, que conhecia árabe e hebraico e sugeriu um nome ao grupo, identificando-o como uma irmandade e os membros, profetas, por isso a palavra árabe nabi (profeta), – que ficaram conhecidos como “Os Nabis” e posteriormente seguiram seus próprios estilos. Sérusier expressou para Gauguin a liderança que o mestre exercia, mas para ele – um artista livre e altivo – não interessava assumir nada, a não ser continuar o seu trabalho e alçar vôos naturais.

Quando Gauguin conseguiu consolidar uma personalidade artística, os antigos mestres e companheiros do Impressionismo começaram a olhá-lo com mais cuidado. Pissarro já não via mais aquele discípulo como um aplicado aluno das técnicas de captação da luz, mas como alguém que estava com a visão equivocada, principalmente quando ele explorou mais veementemente o mundo estranho do Taiti, pois achava que utilizava o exótico para enaltecer a obra. O mestre o introduziu no mundo artístico, também fazendo-o participar da quarta, quinta e sexta exposições impressionistas entre os anos de 1879 a 1881, sem o beneplácito de Monet e Renoir; Pissarro, com o tempo, adquiriu um olhar de incompreensão para o momentaneamente discípulo da nova escola.

De Paul Cézanne, Gauguin adquiriu seis pinturas, quando os recursos financeiros, proporcionados pelas atividades exercidas na bolsa de Paris – que abandonou para se dedicar à pintura -, permitiam uma vida estável, burguesa. As obras o influenciariam, sugerindo um aspecto de blocos geométricos no espaço da pintura, sendo essa a concepção plástica de Cézanne: “Eu queria fazer do impressionismo algo de sólido e duradouro, como a arte que está nos museus”. Sempre solicitava de Pissarro informações sobre Cézanne, do que ele estava fazendo, e, numa carta, sugeriu que desse algum medicamento homeopático para que ele revelasse os últimos segredos pictóricos. A investida de Gauguin deixava-o desconfortável, ao interpretá-la que ele iria “roubar” as suas “pequenas sensações”, que guardava com tanta discrição e perseverança; considerava Gauguin, como Van Gogh, um artista louco. Mas o apoio dos pintores impressionistas veio de quem ele menos esperava, até pelo humor inconstante e o grau de exigência que tinha sobre todos os assuntos relacionados à arte. Este era Edgar Degas, que, mesmo não tendo uma opinião formada quanto aos trabalhos de Gauguin, dizia que ele tinha “alguma coisa”, e com esse faro intuitivo adquiriu vários quadros dele.

Entre os escritores, Gauguin era prestigiado, e Mallarmé, com os seus seguidores, colocou-o como o maior representante da pintura simbolista, realizando até jantares, com brindes e discursos em homenagem ao pintor, apoiando-o na exposição na casa de leilões do Hôtel Drouot, em fevereiro de 1891. Por intermediação de Charles Morice, Stéphane Mallarmé aceitou solicitar a Octave Mirbeau que escrevesse um artigo sobre o artista para a exposição ser bem realizada e dar algum fruto financeiro. Eis o que Gauguin mais precisava para empreender a sua primeira viagem ao Taiti. Eles conseguiram uma publicidade imensa, ajudando até nos lances para aumentar os preços das obras, e também Gauguin foi obrigado a adquirir um quadro, com a mesma estratégia.

Antes de partir para a Oceania definitivamente, realizou em Paris uma das esculturas mais importantes de sua obra. De título Oviri (O Selvagem, 1895) e altura de 74 centímetros, criada em meio às suas inovações em cerâmica, moldada direto no barro e depois queimada, recebendo os leves esmaltes para uma segunda fornada, deixando a maior parte da estátua em barro bruto, aproximando essas partes a uma cor terrosa. Inspirada na mitologia maori, representa uma mulher selvagem de aspecto animal, apertando um filhote como numa ação de assassinato ou sufocando-o por proteção, num simbolismo de morte e renascimento, talvez a morte do civilizado Gauguin para o seu renascimento como selvagem. “Maravilhosamente ambígua”, como diria um crítico. E Picasso levou um tempo para absorver Oviri, o que o impulsionou ao encontro de civilizações primitivas, não-européias.

O artista polêmico Gauguin, de natureza indomável e vontade imperativa, abalou o seu tempo e as gerações futuras, principalmente realizando obras de forma livre e concentradas nas teorias que lhe vinham ao espírito, sem medir as conseqüências que os olhares e as mentes alheias julgariam e muitas vezes não tão favoráveis, por falta de percepção. Como, por exemplo, a pintura extraordinária realizada no Taiti, Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892), baseada na lenda do espírito mau que vivia nas selvas e se utilizava das noites para incomodar os nativos taitianos incautos. Gauguin encontrava um paralelo nessa obra com a Olympia de Édouard Manet – que tanto admirava, por ser um marco na pintura européia, rompendo com as tradicionais representações de deusas imaginadas; levando com ele a reprodução dessa pintura, nos estúdios onde permanecia -, pela franqueza do olhar para o espectador – encontrado também na Olympia -, da menina nua, a figura do lado esquerdo representando o tupapau, e mais os efeitos pictóricos que continha; alguns críticos, em Paris, não aceitaram a comparação. Mas em outras pinturas também ele fez o paralelo com a Olympia, como a realizada em Paris, no seu retorno da primeira viagem ao Taiti, Annah, a Javanesa (1893): na qual há a mesma confrontação do modelo com o espectador. A chave dessas obras era que ele transformava a sua visão de civilizado numa nova, de selvagem. Como ele dizia de si próprio: “Sou um selvagem do Peru”, orgulhoso de seus supostos antepassados incas.

Ia Orana Maria (Nós te Saudamos, Maria), terminada em 1892, representava Maria como uma Eva no paraíso, transformada numa vahine, com o Cristo já nascido – pois se trata da anunciação do anjo sobre o nascimento do Cristo -, de pele escura nativa, o anjo entre as folhagens, e toda a cena numa mata com vegetação tropical. O catolicismo não aprovou a pintura, por achar que as representações não eram compatíveis com as tradições da Igreja.

Após realizar a primeira viagem ao Taiti (1891-1893), com uma produção de sessenta e seis quadros, e a mente absorvida no universo, que comparava a um Éden distante dos movimentos de Paris, que ainda o interessava, retorna com a ansiedade natural para que todos vissem a riqueza das observações plásticas que construiu, confiante num sucesso sempre sonhado e anunciado à esposa Mette Gad Gauguin, pensando em reconstituir a vida familiar destruída.

Propõe uma exposição ao marchand Durand-Ruel, e este transfere para os filhos Joseph e George a realização, porque estava com investimentos nos Estados Unidos para a conquista daquele mercado. A inauguração foi no dia nove de novembro de 1893, com a participação de Charles Morice, dando o suporte para a divulgação na imprensa. Quarenta e duas obras são expostas, com as molduras da preferência de Gauguin, modernas – brancas, azuis -, para diferenciar das do Salão Oficial. Um objetivo ele conseguiu, senão o sucesso almejado: uma polêmica que mexeu com o mundo artístico e intelectual parisiense. Realmente Gauguin já era uma presença impossível de ignorar, com uma fama conquistada a duras penas, mas com amargura não se sentia compreendido pelos pintores dos quais gostaria de ouvir comentários favoráveis. A maioria das críticas foi em cima do exotismo e sexo que diziam ter explorado da cultura maori. As obras Vahine no te Tiare (Mulher com Flor, 1892), primeiro quadro realizado no Taiti com modelo nativo; Homem com Machado (1891); Hina Tefatu (A Deusa da Lua e o Gênio da Terra, 1893); Ta Matate (O Mercado, 1892); Aha oe feii? (Como, Você Está com Inveja? -1892); Vahine no te vi (Mulher com Manga, 1892); Pastoral Taitiana, 1893; Merahi Metua no Teha’amana (Teha’amana Tem Muitos Antepassados, 1893); Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892) não foram suficientes para convencer o público, os críticos e os artistas – divididos quanto ao julgamento. Mas ele pretendia continuar a gigantesca obra com o pouco tempo que lhe restava – a saúde já dando sinais de abalo, com sintomas de sífilis. Era necessário utilizá-lo como uma preciosidade.

Na indignação com a Paris refratária aos seus pensamentos, ainda realiza, em dezembro, uma amostra de gravuras no seu ateliê na rue Vercingétorix, onde pintou a sala de amarelo para dar destaque às peças. A publicidade também foi positiva e lá estiveram Vollard, Degas, Mallarmé e outros do círculo da vida cultural da cidade. Mas lhe vem a confirmação de que a civilização não mais o encanta. Retorna ao Taiti (outubro de 1895) e posteriormente segue para as Marquesas, onde conclui o trabalho que precisava realizar.

Gauguin, um artista seminal, encontrou, nas ilhas longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador que foi despertada com lutas intermináveis e as incompreensões que vinham de um mundo civilizado; dizia em Paris, antes de partir, que, entre “os selvagens daqui e os de lá”, preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a história da sua própria pintura e, conseqüentemente, a arte universal, ampliando a cada passo, num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de forma, de conceitos – um encontro feliz com o que ele chamava de “mitologia maori”, que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde realizou suas obras-primas, amou suas “noivas” meninas – Teha’amana e Pau’ura – e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, toda a geração posterior deve à nascente Gauguin, como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar o modernismo na arte do século XX.

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