"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 18 de setembro de 2021

Os animais e a arte

 




Nós, humanos, somos afeiçoados aos animais, principalmente os domésticos, os mais próximos, que fazem parte da família como um complemento sentimental; mesmo aqueles que visitam os nossos jardins e as matas — que ainda temos — passam essa ideia expressiva de comunhão, sobretudo com os pássaros nativos, que acompanhamos a longo tempo. No nosso pequeno pomar residencial, vem uma excelente variedade de espécies. Numa oportunidade recente, troquei olhares com um gavião; os seus olhos enormes me buscavam curiosos, e me senti orgulhoso porque tinha realizado uma pintura sobre um deles de mesma linhagem... 

Talvez se atribui à nossa amizade o aspec
to desses seres que materializam uma inocência e uma tremenda humildade, que atrai o sentimento afetivo. Os seus olhos falam numa linguagem única, trocam símbolos com posturas físicas, que só eles falam daquela forma, e nós, humanos, navegamos sobre a aparência amável deles sem questionamentos em palavras. Haja vista o amor dos santos Antônio de Pádua e Francisco de Assis a esses animais. As crianças se parecem com eles e, certamente, por isso, se entendem ainda mais e melhor que nós, adultos, porque é inocência ao encontro da inocência. 

Meus pais ofereceram para mim e os irmãos as melhores expectativas ante a natureza. Desde tenra idade, caminho pelas areias das praias, sob os coqueiros e matas que existiam com mais intensidade à época: Porto de Galinhas, Olinda e Itamaracá... Andava feito um indiozinho, tostado pelo sol, quase nu, com toda a liberdade que a bondade de minha mãe permitia. Convivi com bichos e todo tipo deles: pássaros, saguis, cavalos, animais selvagens e seres marinhos em grande quantidade, sobre estes recebendo aulas dos filhos de pescadores, com os quais aprendia a arte de pescar com os utensílios adequados para a prática. Era um medíocre aluno, mas dava para o gasto na alegria de viver. O que lembro, com graça, é que eu corria, com leveza, sobre as pedras naturais marinhas dos arrecifes cheias de algas e ouriços e fisgava muita mariquita — um peixinho vermelho que é encontrado com abundância entre as pedras. 

A representação de animais na arte vem desde as ilustrações rupestres, nas quais os artistas representavam a caça de forma mágica, como se fosse uma captura prévia, e, para o autor da pintura, era um gesto real em vias de concretizar o seu objetivo. Nas civilizações antigas, os animais faziam parte da economia e da vida e, por isso, eram comumente representados na arte. Em todas as culturas, o bicho domesticado (ou não) estava presente como algo vivo e fazia parte de toda a beleza de símbolos e formas decorativas. 


Em obras de pintores como Velázquez, Picasso, Lucian Freud, Renoir, Chagall e muitos outros, o cão esteve presente no estilo de cada um. Os felinos também são bastante explorados por artistas, com sua forma plástica atraente e tentadora para serem materializados em múltiplas linguagens no âmbito da representação. 

Nas minhas pinturas, em várias abordagens, os animais sempre estiveram presentes. Ultimamente, tenho pintado pássaros da nossa região; desde a infância, eles vêm participando da minha existência, como igualmente cães e gatos, inclusive pintei uma série sobre os bois que são abatidos nos matadouros e uma de peixes, que intitulei Mare Nostrum, além de outros quadros avulsos. 

Fico magnetizado com os olhos desses seres, que são mui expressivos, vejo uma alegria que, em nós, humanos, quase não existe, porque somos tristes, naturalmente, pela nossa desarmonia. Os animais tidos como irracionais doaram a pureza que encantou todas as civilizações. E, por observar que os pássaros realizam seus ninhos com uma engenharia e arquitetura raras, repetindo o trabalho todos os dias, adicionando cada fio de um matinho selecionado para construir a obra que abrigará seus futuros filhotes, com os seus cantos arrebatadores, fico embevecido. Todos esses animais cumprem uma vontade suprema que os fazem, institivamente, movimentar-se com precisão e harmonia, sem questionar o porquê. Mas nós sabemos que somos os mais predadores da natureza, inventamos tudo o que nos prejudica e ao planeta: além das guerras por motivos torpes e ambiciosos e de toda a parafernália de armadilhas que lançamos uns sobre os outros, somos animais políticos que buscamos acertar, mas que erramos exageradamente. 


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Tudo desmoronava...

 “Matar o sonho é matarmo-nos.”

   Fernando Pessoa




Sonhar é um atributo humano — mas dizem que os outros animais ditos irracionais também possuem essa capacidade —, e, por mais absurdas que as imagens lembradas no estado de vigília possam parecer para nós, racionais, fica quase sempre uma mensagem telegráfica de símbolos às vezes incompreensíveis e confusos. 

Parece que, em tempos de pandemia e crises consequentes ou guerras mundiais etc., somos levados talvez a sonhar com coisas fantásticas ante a nossa realidade, como numa saída em visões que possam dizer algo. Os livros sagrados estão cheios de sonhadores proféticos e intérpretes de sonhos sobre acontecimentos futuros ou contemporâneos que serviram a reis, príncipes e seguidores desses profetas.

Muitos artistas sonharam e realizaram obras com o que lembravam das imagens. O renascentista nórdico, pintor, ilustrador, gravador, matemático e teórico de arte alemão Albrecht Dürer sonhou com uma grande quantidade de água que caía do paraíso e que proporcionou um dilúvio, realizando a obra “Visão do sonho”, representada como uma cordilheira de montanhas a ficar submersa durante o fenômeno.

O surrealista espanhol Salvador Dalí apreciava os sonhos como fontes para o seu trabalho, tanto assim que homenageou o momento do sonho na pintura “O sonho aproxima-se”. O pintor e gravador, também espanhol, Francisco de Goya era tão atormentado pelos sonhos que intitulou uma de suas obras como “O sonho da razão produz monstros”. Um dos mais brilhantes pintores e poetas dessa linguagem, o inglês William Blake, concebia os sonhos como seu estado místico natural, porque passou a vida toda concebendo visões dos mortos aos vivos, o que inspirou o desenho “Cabeças visionárias”. E um dos representantes da arte pop norte-americana, Jasper John, sonhou que tinha pintado uma bandeira dos Estados Unidos. E logo ficou impulsionado para realizá-la, o que fez na manhã seguinte, quando despertou. Há exemplos infindáveis de que muitos artistas exploraram essa matéria do sonho como mote para suas obras.


Pois também tive a minha parcela de sonhos na noite da lua de sangue, como é chamada, presenciando visões fantásticas. Era como se desabasse uma grande construção incrustada com obras de arte e que, em um momento, caiu sobre todos nós como várias Capelas Sistinas, esculturas pesadas e criações diversas que rolavam sobre formas arquitetônicas. Parecia que toda a arte construída, as conquistas estéticas e os valores éticos estavam desmoronando em meio ao pânico das pessoas, às correrias para todos os lados, às pedras caindo sobre elas e à ansiedade de não sabermos como conter aquele desastre. Um sonho angustiante de desarmonia interior, como se nos restasse apenas o recomeço, um renascimento, porque tudo estava destruído. Não sei o que fazer com essas lembranças, mas é certo que elas têm algo a dizer...