"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 18 de setembro de 2021

Os animais e a arte

 




Nós, humanos, somos afeiçoados aos animais, principalmente os domésticos, os mais próximos, que fazem parte da família como um complemento sentimental; mesmo aqueles que visitam os nossos jardins e as matas — que ainda temos — passam essa ideia expressiva de comunhão, sobretudo com os pássaros nativos, que acompanhamos a longo tempo. No nosso pequeno pomar residencial, vem uma excelente variedade de espécies. Numa oportunidade recente, troquei olhares com um gavião; os seus olhos enormes me buscavam curiosos, e me senti orgulhoso porque tinha realizado uma pintura sobre um deles de mesma linhagem... 

Talvez se atribui à nossa amizade o aspec
to desses seres que materializam uma inocência e uma tremenda humildade, que atrai o sentimento afetivo. Os seus olhos falam numa linguagem única, trocam símbolos com posturas físicas, que só eles falam daquela forma, e nós, humanos, navegamos sobre a aparência amável deles sem questionamentos em palavras. Haja vista o amor dos santos Antônio de Pádua e Francisco de Assis a esses animais. As crianças se parecem com eles e, certamente, por isso, se entendem ainda mais e melhor que nós, adultos, porque é inocência ao encontro da inocência. 

Meus pais ofereceram para mim e os irmãos as melhores expectativas ante a natureza. Desde tenra idade, caminho pelas areias das praias, sob os coqueiros e matas que existiam com mais intensidade à época: Porto de Galinhas, Olinda e Itamaracá... Andava feito um indiozinho, tostado pelo sol, quase nu, com toda a liberdade que a bondade de minha mãe permitia. Convivi com bichos e todo tipo deles: pássaros, saguis, cavalos, animais selvagens e seres marinhos em grande quantidade, sobre estes recebendo aulas dos filhos de pescadores, com os quais aprendia a arte de pescar com os utensílios adequados para a prática. Era um medíocre aluno, mas dava para o gasto na alegria de viver. O que lembro, com graça, é que eu corria, com leveza, sobre as pedras naturais marinhas dos arrecifes cheias de algas e ouriços e fisgava muita mariquita — um peixinho vermelho que é encontrado com abundância entre as pedras. 

A representação de animais na arte vem desde as ilustrações rupestres, nas quais os artistas representavam a caça de forma mágica, como se fosse uma captura prévia, e, para o autor da pintura, era um gesto real em vias de concretizar o seu objetivo. Nas civilizações antigas, os animais faziam parte da economia e da vida e, por isso, eram comumente representados na arte. Em todas as culturas, o bicho domesticado (ou não) estava presente como algo vivo e fazia parte de toda a beleza de símbolos e formas decorativas. 


Em obras de pintores como Velázquez, Picasso, Lucian Freud, Renoir, Chagall e muitos outros, o cão esteve presente no estilo de cada um. Os felinos também são bastante explorados por artistas, com sua forma plástica atraente e tentadora para serem materializados em múltiplas linguagens no âmbito da representação. 

Nas minhas pinturas, em várias abordagens, os animais sempre estiveram presentes. Ultimamente, tenho pintado pássaros da nossa região; desde a infância, eles vêm participando da minha existência, como igualmente cães e gatos, inclusive pintei uma série sobre os bois que são abatidos nos matadouros e uma de peixes, que intitulei Mare Nostrum, além de outros quadros avulsos. 

Fico magnetizado com os olhos desses seres, que são mui expressivos, vejo uma alegria que, em nós, humanos, quase não existe, porque somos tristes, naturalmente, pela nossa desarmonia. Os animais tidos como irracionais doaram a pureza que encantou todas as civilizações. E, por observar que os pássaros realizam seus ninhos com uma engenharia e arquitetura raras, repetindo o trabalho todos os dias, adicionando cada fio de um matinho selecionado para construir a obra que abrigará seus futuros filhotes, com os seus cantos arrebatadores, fico embevecido. Todos esses animais cumprem uma vontade suprema que os fazem, institivamente, movimentar-se com precisão e harmonia, sem questionar o porquê. Mas nós sabemos que somos os mais predadores da natureza, inventamos tudo o que nos prejudica e ao planeta: além das guerras por motivos torpes e ambiciosos e de toda a parafernália de armadilhas que lançamos uns sobre os outros, somos animais políticos que buscamos acertar, mas que erramos exageradamente. 


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Tudo desmoronava...

 “Matar o sonho é matarmo-nos.”

   Fernando Pessoa




Sonhar é um atributo humano — mas dizem que os outros animais ditos irracionais também possuem essa capacidade —, e, por mais absurdas que as imagens lembradas no estado de vigília possam parecer para nós, racionais, fica quase sempre uma mensagem telegráfica de símbolos às vezes incompreensíveis e confusos. 

Parece que, em tempos de pandemia e crises consequentes ou guerras mundiais etc., somos levados talvez a sonhar com coisas fantásticas ante a nossa realidade, como numa saída em visões que possam dizer algo. Os livros sagrados estão cheios de sonhadores proféticos e intérpretes de sonhos sobre acontecimentos futuros ou contemporâneos que serviram a reis, príncipes e seguidores desses profetas.

Muitos artistas sonharam e realizaram obras com o que lembravam das imagens. O renascentista nórdico, pintor, ilustrador, gravador, matemático e teórico de arte alemão Albrecht Dürer sonhou com uma grande quantidade de água que caía do paraíso e que proporcionou um dilúvio, realizando a obra “Visão do sonho”, representada como uma cordilheira de montanhas a ficar submersa durante o fenômeno.

O surrealista espanhol Salvador Dalí apreciava os sonhos como fontes para o seu trabalho, tanto assim que homenageou o momento do sonho na pintura “O sonho aproxima-se”. O pintor e gravador, também espanhol, Francisco de Goya era tão atormentado pelos sonhos que intitulou uma de suas obras como “O sonho da razão produz monstros”. Um dos mais brilhantes pintores e poetas dessa linguagem, o inglês William Blake, concebia os sonhos como seu estado místico natural, porque passou a vida toda concebendo visões dos mortos aos vivos, o que inspirou o desenho “Cabeças visionárias”. E um dos representantes da arte pop norte-americana, Jasper John, sonhou que tinha pintado uma bandeira dos Estados Unidos. E logo ficou impulsionado para realizá-la, o que fez na manhã seguinte, quando despertou. Há exemplos infindáveis de que muitos artistas exploraram essa matéria do sonho como mote para suas obras.


Pois também tive a minha parcela de sonhos na noite da lua de sangue, como é chamada, presenciando visões fantásticas. Era como se desabasse uma grande construção incrustada com obras de arte e que, em um momento, caiu sobre todos nós como várias Capelas Sistinas, esculturas pesadas e criações diversas que rolavam sobre formas arquitetônicas. Parecia que toda a arte construída, as conquistas estéticas e os valores éticos estavam desmoronando em meio ao pânico das pessoas, às correrias para todos os lados, às pedras caindo sobre elas e à ansiedade de não sabermos como conter aquele desastre. Um sonho angustiante de desarmonia interior, como se nos restasse apenas o recomeço, um renascimento, porque tudo estava destruído. Não sei o que fazer com essas lembranças, mas é certo que elas têm algo a dizer... 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O silêncio e o microcosmo na arte



Nesses tempos da exaltação do poder pela política e da riqueza, voltamos o nosso olhar sobre a arte e vemos o quanto as suas propostas e concepções estão distantes das forças externas que tentam influenciar o futuro da humanidade. Os sistemas estabelecidos que têm o domínio da sociedade em todas as formas dão as cartas acima das coisas pelas quais os artistas e a arte se interessam. Os reflexos da arte quase sempre são considerados anos depois da passagem de um pensamento contido numa obra, só então são compreendidos como lembranças que deveriam ter sido consideradas ou validadas. E, a partir daí, a história, a ciência e a filosofia voltam a consolidar uma aparente verdade na arte e no artista. Hoje, quando voltamos nossa atenção ao que aconteceu no século 20, considerado o século também dos ditadores modernos, nós os vemos pequenos em relação à importância de avanços concretos para a humanidade, porque eram, principalmente, imbuídos de ideologias ridículas de supremacia racial ou daquelas superadas pela realidade da vida e da economia; no entanto, manipularam armas e praticaram crimes danosos contra a humanidade, com a aparência direta do poder em que a arte era tida como um nada. 

Poderíamos começar com a investida dos artistas que buscaram a luz do campo para realizar suas pinturas, o que, na época, era considerada uma atitude ridícula para se manifestar na matéria pictórica. As exposições realizadas por esses pintores eram centros de debates para desconsiderar aquelas imagens tratadas nas obras. Quando passaram um bom tempo sem vender suas telas ou vendendo-as com preços irrisórios, acusados de representar tudo apressadamente, sem os cuidados do realismo das obras orientadas pelo academicismo, um crítico, Louis Leroy, para desconsiderá-los, chamou-os de “impressionistas”. Título que permanece até hoje e é considerado uma bandeira de inovações na arte. 

Com o estudo científico da luz nos meados do século 19, foi constatado que a cor é um estado da luz e que a sua permanência e mutação dependem de sua intensidade. Fato constatado, séculos anteriores, por Leonardo da Vinci, nas suas teorias sobre a cor. E, hoje, para nós, isso é tão evidente que nem no pensamento podemos negar. Também eles queriam pintar a vida, documentar como ela era nas ruas, nos lugares de lazer, no trabalho, nos campos, etc. Um modo de ver que influenciou a literatura, a música, o teatro... e o século 20, nas várias manifestações da arte. Mas o início disso tudo foi o simples fato de sair e presenciar a luz sobre as coisas.

Três desses artistas que participaram do movimento impressionista,  Cézanne, Gauguin e Van Gogh, influenciaram artistas e movimentos posteriores. Cada um com sua personalidade forte e concepções que se diferenciaram na captação da luz impressionista e criaram caminhos próprios que foram considerados precursores do Cubismo, do Sintetismo e do Expressionismo, entre outros. Cézanne concebia as coisas de forma geométrica, que tudo se interligava de forma esférica, cilíndrica, cônica e cúbica, o que tanto influenciou artistas como Picasso, Braque e demais cubistas; Gauguin, com suas formas cheias de cores puras e chapadas, sintetizava tudo de maneira simbólica, influenciando o Sintetismo, o primitivismo e o fauvismo; e Van Gogh, com suas pinceladas e cores expressivas, deu início a uma ideia do Expressionismo, que, no princípio do século, foi uma verdadeira febre na Alemanha. 

Sabe-se que quando Picasso realizou a obra “As Meninas de Avignon” (1907), célebre no percurso cubista do artista malaguenho — que escandalizou seus colegas, porque não foi aceita de pronto, por ser um passo considerado ambicioso demais para a cultura vigente —, Einstein, em 1905, tinha concebido sua teoria da Relatividade Restrita, na qual, posteriormente, os especialistas viram pontos de intersecção com o Cubismo, no tocante à concepção.  No silêncio dos ateliês, esses artistas conceberam obras que, no seu tempo, não tinham repercussão como hoje, com as ideias se sedimentando aos poucos e abrindo a cabeça da crítica e do público para uma outra realidade do espaço e das formas. Em todas as épocas, as inovações foram vistas dessa maneira.

As revoluções na arte não têm os rugidos das sociais, com a violência das tempestades e de lutas tão próprias de seus movimentos. As da arte são quase sempre silenciosas e conduzidas pela reflexão de um artista, com elas são concretizadas ideias mais permanentes que o poder das armas. Nesse sentido, penso na obra de um Giogio Morandi, o silencioso artista italiano que pintou suas belas e modestas garrafas que são verdadeiras obras-primas da modernidade, um artista que pensou diferente, como um monge dedicado ao trabalho, a exemplo de centenas de outros artistas.

E para nós, os do século 21, quanto mais penso em nosso modesto olhar, mais retiro o prazer e a surpresa sobre o interesse nos pequenos temas, algo como uma parte da natureza, um fragmento que mostre a expressividade da microforma, um corpo de um animal, a cabeça, o olhar, a boca humana, os detalhes tão sem importância aparente, longe das grandes cenas, das batalhas, das gigantescas representações... Prefiro extrair essas formas das coisas solitárias, mas que estão plenas com o cosmo, com a vida.



terça-feira, 27 de outubro de 2020

A arte nos tempos de convulsão

 


A arte sempre surgiu, em todas as épocas da humanidade, envolvida em várias circunstâncias inevitáveis: físicas, sociais, políticas, econômicas... O artista, o ponto-chave dessa produção, procurou se adaptar em momentos turbulentos e gigantescos ante a sua individualidade: teve uma história de anonimato, como escravo ou simples artífice nos sistemas de Estados opressivos, quando o cidadão não tinha a classificação de um indivíduo influente na sociedade, como relativamente nos tempos de hoje. Mesmo assim, com a limitação, criou obras notáveis que fazem parte de um conjunto que está no acervo do patrimônio mundial. 

Na arte das cavernas, que se realizava em pinturas com intenções mágicas para captar, na representação, presas para as suas caças de forma objetiva e prática, quando enfrentava as intempéries da natureza em cada região, na da Mesopotâmia, na do Egito, criada em função da elite sustentada pelo poder dos faraós ou dos sacerdotes, o artista era um anônimo, não assinava as suas obras, não deixava a sua digital. Grécia e Roma foram onde começaram a aparecer nomes importantes (Fídias, Crésilas, Praxiteles, Aristéas de Afrodísias...). Mesmo os chineses mais primitivos, em períodos semelhantes, mantiveram o anonimato, como também ocorriam na arte africana, hindu, islâmica, pré-colombiana... A arte esteve, por muitos séculos, sob o domínio de teocracias, de tiranos, de poderosos monárquicos, clericais e, na modernidade, nas democracias e nas ditaduras. O que salvou o artista foi a genialidade de cada um, que soube satisfazer os seus senhores com uma estética própria, individual, numa concepção inigualável e difícil de ser compreendida, na sua totalidade, por aquela elite.

O Renascimento constituiu o coroamento da personalidade do artista. No entanto, Michelangelo foi praticamente obrigado a pintar a Capela Sistina pelo papa Júlio II, que queria um afresco realizado pelo gênio florentino. Em primeiro momento, o artista quis recuar, afirmando ao bispo de Roma que era um escultor e não um pintor, é quando o guerreiro papa reafirma que ele saberia pintar porque aprendeu com o seu mestre Domenico Ghirlandaio as técnicas do afresco. Michelangelo ainda resiste, desaparece, enraivecido com Júlio II, mas este o manda buscar e o repreende, forçando-o a realizar o grande afresco no teto da Capela, que foi completado em quatro anos, de 1508 a 1511. Realizou o que o papa queria com sua marca de genial artista do Renascimento. Também aceitou, como ele queria, a construção do túmulo de Júlio II, uma de suas obras-primas em escultura. 

São nas grandes convulsões que o artista armazena fôlego para criar. É o exemplo do pintor espanhol Francisco de Goya (1746–1828), ao adquirir uma doença que o manteve surdo a partir de 1792, mergulhando-o no silêncio, com ele se comunicando por sinais e escrevendo bilhetes para se fazer entender. Por este fato, a sua visão desenvolveu um potencial maior, e, segundo alguns críticos, essa crise despertou a sua genialidade sobre o mundo e os sentimentos humanos, de forma que realizou obras assombrosas de imaginação e de concepção em pinturas, gravuras e desenhos. Foi na série de gravuras “Desastres da Guerra”, em que se permitiu interpretações da violência bélica, quando da invasão das forças napoleônicas na Espanha, relatando, plasticamente, a animalidade da guerra, a fome em Madri, no mesmo período, e a reação dos espanhóis na expulsão dos franceses do seu território. Cada uma dessas gravuras aborda um aspecto humano quando está sob pressão de um conflito. Goya dá título genérico à série: “Fatais consequências da guerra sangrenta na Espanha contra Bonaparte e outros caprichos impressionantes”. 

A obra “Guernica”, do pintor malaguenho Pablo Picasso, também foi um testemunho de protesto contra a opressão comandada pelos alemães nazistas, com o apoio de Franco, durante a Guerra Civil Espanhola, que bombardeou por três hora e meia a cidade de Guernica (1937), no País Basco, proporcionando uma destruição material total e ceifando vidas humanas, uma tragédia simbolizada numa obra dramática e concebida com o estilo próprio do autor, que é um marco na história da arte. 

 

 


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Reflexões e arte na quarentena




A arte é um oceano para aqueles que pretendem mergulhar em suas riquezas. Com o passar do tempo, mais experiente, o artista chega à conclusão de que um dos fatores essenciais para construir uma obra é a simplicidade de percepções que captam caminhos, naturalmente porque não há um programa de dar uma direção à concepção; a própria arte oferece o tom, as decisões para uma trajetória. O criador segue as determinações dessa prática, desse exercício contínuo de plena atividade, e essa mecânica individual o faz dar passos para o nascimento de algo inesperado para trabalhar, aprofundando os pensamentos, sem cálculos exatos, claros, mas abstratos e múltiplos. Assim surgiram as séries que realizei, e assim vejo em muitos outros artistas.

Quando consolidava uma das primeiras séries, a de nus, com modelos – uma imensa quantidade de quadros–, as imagens dos corpos vinham à minha mente inteiras, fechadas, como num foco de uma lente onde só interessava os detalhes das superf ícies e dos contornos, em pinceladas nervosas e matéria densa de pastas de tinta, sem prestar atenção ao que estava ao redor desses corpos. As soluções eram monocromáticas, com terras, preto e branco, e a luz era determinada na mistura dos brancos e ocres, raramente outra cor. Trabalhava como um fanático e tinha dias em que realizava até três obras, numa velocidade impensável nos dias de hoje. Com a prática, na repetição do tema, fui abrindo os corpos em linhas e massas tornando o nu quase abstrato. Dei o título Composições da nudez por achar que eram mais estruturas pictóricas que formas sensuais...

Aconteceu algo paralelo, logo em seguida, com a série Partes de Corpo Animal, quando desenvolvi uma visão do animal, individualmente, no início, e supostamente no campo, representando a cabeça do boi quase realista – “quase” porque naquela época (1980) era impossível fazer um trabalho realista – até a sua morte, no matadouro, formando imagens de esquartejamento. As cores eram colocadas na superfície, puras, da forma como estavam nos tubos de tinta, com as variações entre terras, pretos, ocres, azuis e vermelhos. Também uma série longa, com muitos trabalhos. A pintura sempre me atraiu pelas suas sensações nos movimentos dos pincéis e pelo entrelaçamento das cores; esse exercício invade o corpo e se integra ao pensamento numa só força. Essa é uma das minhas características que se prolonga aos dias atuais no instante do encontro com uma superfície quando pretendo dar cor e forma, sem pretensões maiores que o prazer do trabalho.

Lancei mão de vários temas com essa percepção e concepção, admitindo paisagens, retratos, nus, representações de animais, naturezas-mortas, assuntos sociais, abstrações... Há algo de que o artista não pode fugir: é de si próprio; o que lhe pertence deve perseguir e preservar para manter a coerência do trabalho – uma lição que aprendi.

Quase sempre uma série surge, vagarosamente, nas tentativas mais simples, como um músico que dedilha um teclado ou cordas, quando surgem os sons que lhe agradam, e aquilo aumenta numa tensão que o faz anotar e compor; assim também a pintura dá essa sensação. Ao iniciar a série Mare Nostrum, comecei a trabalhar em quadros de pequenas proporções, criando naturezas-mortas com peixes, um assunto que sempre esteve presente no meu imaginário por ser um praieiro nato. Aqueles pequenos trabalhos foram me tomando nas proporções das telas, como se eu aproximasse o olhar aumentando os detalhes daqueles peixes, daquelas agulhas, daqueles peixes- -espadas, das cavalas, das ciobas, das arraias... A partir daí, a série tomou outro aspecto, talvez um encontro com o simbolismo que só consegui enxergar muito depois. Era uma relação hipnótica que tive com a temática e a técnica; não havia espaço para explicações daquilo que estava fazendo. Dos quadros pequenos surgiram os de maiores dimensões, e era um seguido de outros, uma relação apaixonada e cheia de significados inconscientes que só percebi quando acordei daquele sonambulismo...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A trama da arte



Os artistas e a arte moderna tiveram nos seus antecessores impressionistas o apoio às experiências vividas por estes para se libertarem das amarras produzidas por academias limitadas em regras consideradas absolutas. Paul Cézanne foi um deles. Tentou os estudos acadêmicos e era renegado pelos professores, que o achavam péssimo desenhista e não entendiam o porquê de ele estar ali a tentar um caminho na arte. Se existiu um pintor persistente em seus trabalhos para posicionar o seu pensamento, este foi Cézanne.

Émile Zola, seu amigo desde a adolescência, que o tinha como admirável colega de escola, com o tempo, em face das tentativas de Cézanne para ser aceito no Salão de Paris e alçar voos como artista independente, começou a achar que o velho amigo era um teimoso cabeçudo que insistia numas ideias que o escritor considerava fracassadas. Isso, a ponto de Zola incluí-lo como o personagem Claude Lantier, do seu romance “A Obra”, um pintor que se suicidava por compreender que não alcançaria o seu objetivo de “perfeição”. Quando Cézanne descobre esse personagem, rompe com uma amizade consolidada por anos, porém eles permaneceram com laços de admiração mútua até a morte de Zola.

Hoje se diz que o escritor, naquele julgamento sobre o pintor, foi equivocado, e a história da arte prova isso. Depois de Cézanne tudo foi restaurado na pintura. A visão do espaço mudou, e aí entraram outros personagens reais como Picasso, Braque, Matisse... Principalmente todos os cubistas, que entraram numa febre de criação e espalharam as recentes ideias sobre a Europa e América.
Aquele jeito “imperfeito” de Cézanne tocar o pincel na tela; as suas pinceladas paralelas, que dinamizam o espaço abordado; a cor; a luz, que já não era impressionista, porque há tempos ele achou o seu próprio método, eram vistos pelo grande público e alguns críticos, como algo deplorável. Nas primeiras exposições impressionistas, o pintor de Aix-en-Provance era a maior vítima de deboches e dos piores entendimentos. Mas foi graças a essas “imperfeições” julgadas pela visão acadêmica que o pintor legou às gerações futuras um novo estado de compreensão que influenciou muitas outras artes, como a arquitetura, a escultura, a moda, os cenários de teatros, o cinema, enfim, uma percepção nunca vista até então.

Também outros “imperfeitos” entraram na lista de contribuições para a arte: Paul Gauguin e Vincent van Gogh...

Gauguin, como se sabe, era um pacato agente financeiro da bolsa de Paris, tinha uma vida burguesa com a esposa e os filhos e começou a pintar aos domingos com pintores como Camille Pissarro, aprendendo as doses iniciais que o impressionismo tinha para lhe dar. Sem saber ia bebendo do “veneno” que a arte proporciona àqueles que se arvoram a uma amizade mais ardente. Passou de pintor aos domingos à pretensão de deixar o emprego que lhe dava uma segurança financeira mais sólida e uma vida burguesa que a mulher, Mette, apreciava bastante. Daí então sua vida muda radicalmente para o crescente caminhar da consolidação de sua obra. Nunca mais ele foi aquele pacato burguês, a cabeça mudou radicalmente.

Foi nesse amadurecimento que Gauguin se encontrou com Van Gogh, que o considerava um mestre, e o convida para ter uma vida comum de pesquisas pictóricas no Sul da França, em Arles; convivência que foi ao extremo nas discussões sobre arte. Gauguin achava que Van Gogh pintava rápido demais, e o incomodava por isso; o holandês dizia que Gauguin deveria enfrentar a natureza diretamente. Um exigia mais reflexão por parte de Vincent, e este exigia de Gauguin mais sinceridade com a natureza. Gauguin, com sua personalidade, tinha o ímpeto de líder sincero e veemente e era duro na relação com o amigo. Os resultados desse período foram grandes obras que os dois realizaram, inclusive os famosos “Girassóis”, de Van Gogh; os autorretratos; e o próprio retrato do gênio holandês realizado por Gauguin, que, quando o artista olhou disse: “Sou eu, mas louco”. Cézanne era desconfiado com os dois, pensava que Gauguin queria se apropriar de suas ideias, e Van Gogh dizia que era um louco.

Mas, foram esses três, como é sabido, que revolucionaram a arte pós-impressionista. Todos os artistas do início do século 20 foram influenciados por eles. A arte moderna se estabeleceu por causa do pensamento deles e de suas obras. Até mesmo o que chamamos de “arte contemporânea” se deve a esses passos iniciais “imperfeitos”, que legaram a mais sólida visão do nosso tempo. Hoje, com os avanços na ciência e na tecnologia, reverenciamos as obras desses criadores.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O artista absoluto em sua obra



No alicerce da obra de Renato Valle, está o desenho rigoroso que penetra em todas as formas que o artista propõe representar na pintura e em vários veículos das expressões plásticas, com uma visão múltipla e mente concentrada no universo interiorizado e numa linguagem própria. Seu trabalho e sua concepção são a assinatura. Influências naturais existem, mas de maneira longínqua, sem afetar a essência da ideia nascente. Demonstra um trabalhador incansável para concretizar o pensamento. Como um monge que estivesse dedicado a construir iluminuras que falassem de uma história, talvez inconsciente, na qual estão a matéria e o sagrado. Cada elemento das construções dessas pinturas individuais se destaca do restante que as compõe, de maneira harmoniosa, na recente mostra na Galeria Arte Plural.

São imagens concebidas em volumes, como ondas monocromáticas estabilizadas em planos que as relevam num contraste de cor suave e intencional. É a pintura pura sem mais nem menos e, por ser sólida, atemporal. O discurso em palavras não predomina, este está mais em cada centímetro do fragmento pictórico que diz do modo de o artista ver o mundo, como se estivessem ali suas digitais, ou autorretratos, nas camadas sobre camadas, em veladuras prazerosas. Estas impõem ao espectador uma atenção demorada, é impossível não se prender a revelação da cor. Como uma partitura musical em que é preciso silêncio no espírito para perceber as entonações e consonâncias. Somente um olhar meditativo é capaz de perceber esses movimentos. O artista está absoluto em sua obra. Penetramos nessa leitura interminável sobre os variantes caminhos da pintura que só são permitidos aos iniciados. Sim, porque a pintura, hoje, nem todos a compreendem, está como se fosse uma linguagem secreta, como as das cavernas dos nossos ancestrais — como alertou para mim, sobre isso, numa oportunidade, o admirável Francisco Brennand. Talvez voltemos com mais precisão aos estudos e à compreensão dos grandes artistas, a esse patrimônio pictórico e espiritual que nos legaram em todas as épocas... 

Foi assim, com essa concepção, que Renato reuniu, na recente mostra individual, parte de sua própria “cadeia genética” criadora, obras que fizessem referências ao seu percurso de inventor de outras obras paralelas de sua autoria, durante os últimos quarenta anos de trabalho. Cada uma delas faz a ponte com séries ou outras exposições suas, algumas delas monumentais, como a que aconteceu no Museu do Estado, em 2009, com o sugestivo título “Diálogos pelo desenho”, montada com obras de grandes proporções, em que ele dialoga com artistas seus contemporâneos e outros de formação acadêmica, importantes, que fazem parte da história da arte que se fez em Pernambuco, ou pessoas eletivas de sua relação.

Nas grandes salas do museu, o desenho do artista demonstrou um dinamismo gráfico incomparável nas enormes lonas cruas nas quais deu vazão ao seu poder constatado de expressão e síntese, onde os pontos das tramas daquelas lonas serviram de enriquecimentos aos riscos dos grafites. O mesmo nas pequenas proporções como no conjunto de 5.000 desenhos sobre papéis reunidos em um só corpo, mas indicando anotações separadas que o artista chamou de “Diários de votos e ex-votos”. Pois bem, dessa vez, na presente mostra, ele cria diálogos consigo mesmo e, em algumas obras, relembra os aspectos “genéticos” das do museu, como os trabalhos “Solaris”, “O que não se vê”, “Bebê ex-voto” e “Bebê Pitú”. As naturezas-mortas, que são uma constante em sua trajetória, estão na mostra com 4 telas de 30 x 30 cm, quando ele aproxima, em algumas abordagens, um laivo de hiper-realismo de suas percepções. Os corpos representados em volumes em “Retratos do que ele é”, do número 1 ao 4, são formas que vemos na obra do artista que deixam a sua marca, a sua digital, corpos em volumes que se desdobram por todos os lados. Nessa mostra atual, a concepção está no centro como no cosmos, e é ele próprio, Renato Valle, a expandir o seu pensamento materializado.