"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A trama da arte



Os artistas e a arte moderna tiveram nos seus antecessores impressionistas o apoio às experiências vividas por estes para se libertarem das amarras produzidas por academias limitadas em regras consideradas absolutas. Paul Cézanne foi um deles. Tentou os estudos acadêmicos e era renegado pelos professores, que o achavam péssimo desenhista e não entendiam o porquê de ele estar ali a tentar um caminho na arte. Se existiu um pintor persistente em seus trabalhos para posicionar o seu pensamento, este foi Cézanne.

Émile Zola, seu amigo desde a adolescência, que o tinha como admirável colega de escola, com o tempo, em face das tentativas de Cézanne para ser aceito no Salão de Paris e alçar voos como artista independente, começou a achar que o velho amigo era um teimoso cabeçudo que insistia numas ideias que o escritor considerava fracassadas. Isso, a ponto de Zola incluí-lo como o personagem Claude Lantier, do seu romance “A Obra”, um pintor que se suicidava por compreender que não alcançaria o seu objetivo de “perfeição”. Quando Cézanne descobre esse personagem, rompe com uma amizade consolidada por anos, porém eles permaneceram com laços de admiração mútua até a morte de Zola.

Hoje se diz que o escritor, naquele julgamento sobre o pintor, foi equivocado, e a história da arte prova isso. Depois de Cézanne tudo foi restaurado na pintura. A visão do espaço mudou, e aí entraram outros personagens reais como Picasso, Braque, Matisse... Principalmente todos os cubistas, que entraram numa febre de criação e espalharam as recentes ideias sobre a Europa e América.
Aquele jeito “imperfeito” de Cézanne tocar o pincel na tela; as suas pinceladas paralelas, que dinamizam o espaço abordado; a cor; a luz, que já não era impressionista, porque há tempos ele achou o seu próprio método, eram vistos pelo grande público e alguns críticos, como algo deplorável. Nas primeiras exposições impressionistas, o pintor de Aix-en-Provance era a maior vítima de deboches e dos piores entendimentos. Mas foi graças a essas “imperfeições” julgadas pela visão acadêmica que o pintor legou às gerações futuras um novo estado de compreensão que influenciou muitas outras artes, como a arquitetura, a escultura, a moda, os cenários de teatros, o cinema, enfim, uma percepção nunca vista até então.

Também outros “imperfeitos” entraram na lista de contribuições para a arte: Paul Gauguin e Vincent van Gogh...

Gauguin, como se sabe, era um pacato agente financeiro da bolsa de Paris, tinha uma vida burguesa com a esposa e os filhos e começou a pintar aos domingos com pintores como Camille Pissarro, aprendendo as doses iniciais que o impressionismo tinha para lhe dar. Sem saber ia bebendo do “veneno” que a arte proporciona àqueles que se arvoram a uma amizade mais ardente. Passou de pintor aos domingos à pretensão de deixar o emprego que lhe dava uma segurança financeira mais sólida e uma vida burguesa que a mulher, Mette, apreciava bastante. Daí então sua vida muda radicalmente para o crescente caminhar da consolidação de sua obra. Nunca mais ele foi aquele pacato burguês, a cabeça mudou radicalmente.

Foi nesse amadurecimento que Gauguin se encontrou com Van Gogh, que o considerava um mestre, e o convida para ter uma vida comum de pesquisas pictóricas no Sul da França, em Arles; convivência que foi ao extremo nas discussões sobre arte. Gauguin achava que Van Gogh pintava rápido demais, e o incomodava por isso; o holandês dizia que Gauguin deveria enfrentar a natureza diretamente. Um exigia mais reflexão por parte de Vincent, e este exigia de Gauguin mais sinceridade com a natureza. Gauguin, com sua personalidade, tinha o ímpeto de líder sincero e veemente e era duro na relação com o amigo. Os resultados desse período foram grandes obras que os dois realizaram, inclusive os famosos “Girassóis”, de Van Gogh; os autorretratos; e o próprio retrato do gênio holandês realizado por Gauguin, que, quando o artista olhou disse: “Sou eu, mas louco”. Cézanne era desconfiado com os dois, pensava que Gauguin queria se apropriar de suas ideias, e Van Gogh dizia que era um louco.

Mas, foram esses três, como é sabido, que revolucionaram a arte pós-impressionista. Todos os artistas do início do século 20 foram influenciados por eles. A arte moderna se estabeleceu por causa do pensamento deles e de suas obras. Até mesmo o que chamamos de “arte contemporânea” se deve a esses passos iniciais “imperfeitos”, que legaram a mais sólida visão do nosso tempo. Hoje, com os avanços na ciência e na tecnologia, reverenciamos as obras desses criadores.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O artista absoluto em sua obra



No alicerce da obra de Renato Valle, está o desenho rigoroso que penetra em todas as formas que o artista propõe representar na pintura e em vários veículos das expressões plásticas, com uma visão múltipla e mente concentrada no universo interiorizado e numa linguagem própria. Seu trabalho e sua concepção são a assinatura. Influências naturais existem, mas de maneira longínqua, sem afetar a essência da ideia nascente. Demonstra um trabalhador incansável para concretizar o pensamento. Como um monge que estivesse dedicado a construir iluminuras que falassem de uma história, talvez inconsciente, na qual estão a matéria e o sagrado. Cada elemento das construções dessas pinturas individuais se destaca do restante que as compõe, de maneira harmoniosa, na recente mostra na Galeria Arte Plural.

São imagens concebidas em volumes, como ondas monocromáticas estabilizadas em planos que as relevam num contraste de cor suave e intencional. É a pintura pura sem mais nem menos e, por ser sólida, atemporal. O discurso em palavras não predomina, este está mais em cada centímetro do fragmento pictórico que diz do modo de o artista ver o mundo, como se estivessem ali suas digitais, ou autorretratos, nas camadas sobre camadas, em veladuras prazerosas. Estas impõem ao espectador uma atenção demorada, é impossível não se prender a revelação da cor. Como uma partitura musical em que é preciso silêncio no espírito para perceber as entonações e consonâncias. Somente um olhar meditativo é capaz de perceber esses movimentos. O artista está absoluto em sua obra. Penetramos nessa leitura interminável sobre os variantes caminhos da pintura que só são permitidos aos iniciados. Sim, porque a pintura, hoje, nem todos a compreendem, está como se fosse uma linguagem secreta, como as das cavernas dos nossos ancestrais — como alertou para mim, sobre isso, numa oportunidade, o admirável Francisco Brennand. Talvez voltemos com mais precisão aos estudos e à compreensão dos grandes artistas, a esse patrimônio pictórico e espiritual que nos legaram em todas as épocas... 

Foi assim, com essa concepção, que Renato reuniu, na recente mostra individual, parte de sua própria “cadeia genética” criadora, obras que fizessem referências ao seu percurso de inventor de outras obras paralelas de sua autoria, durante os últimos quarenta anos de trabalho. Cada uma delas faz a ponte com séries ou outras exposições suas, algumas delas monumentais, como a que aconteceu no Museu do Estado, em 2009, com o sugestivo título “Diálogos pelo desenho”, montada com obras de grandes proporções, em que ele dialoga com artistas seus contemporâneos e outros de formação acadêmica, importantes, que fazem parte da história da arte que se fez em Pernambuco, ou pessoas eletivas de sua relação.

Nas grandes salas do museu, o desenho do artista demonstrou um dinamismo gráfico incomparável nas enormes lonas cruas nas quais deu vazão ao seu poder constatado de expressão e síntese, onde os pontos das tramas daquelas lonas serviram de enriquecimentos aos riscos dos grafites. O mesmo nas pequenas proporções como no conjunto de 5.000 desenhos sobre papéis reunidos em um só corpo, mas indicando anotações separadas que o artista chamou de “Diários de votos e ex-votos”. Pois bem, dessa vez, na presente mostra, ele cria diálogos consigo mesmo e, em algumas obras, relembra os aspectos “genéticos” das do museu, como os trabalhos “Solaris”, “O que não se vê”, “Bebê ex-voto” e “Bebê Pitú”. As naturezas-mortas, que são uma constante em sua trajetória, estão na mostra com 4 telas de 30 x 30 cm, quando ele aproxima, em algumas abordagens, um laivo de hiper-realismo de suas percepções. Os corpos representados em volumes em “Retratos do que ele é”, do número 1 ao 4, são formas que vemos na obra do artista que deixam a sua marca, a sua digital, corpos em volumes que se desdobram por todos os lados. Nessa mostra atual, a concepção está no centro como no cosmos, e é ele próprio, Renato Valle, a expandir o seu pensamento materializado.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Em busca da raiz primitiva





Paul Gauguin, no século 19, já se queixava do burburinho da civilização, e isso o fez procurar as terras consideradas ainda primitivas ou que lembrassem algo diferente das impressões urbanas agitadas. Em Pont-Aven, na Bretanha, se uniu a um grupo de artistas considerado como a Escola de Pont-Aven, no qual estabelece as bases para o movimento que encabeçou denominado Les Nabis (do árabe, “os profetas”). Posteriormente, foi para o sul da França, Arles, para experiências ao ar livre, com o sol a pino, acompanhado do intenso Van Gogh, que lhe deixou marcas fortes e a admiração como criador. Segue, ainda, para Martinica, em 1887, em busca de algo renovador, além da cultura europeia e que fosse semente das suas buscas de um mundo idealizado, talvez um paraíso perdido. Lembremo-nos de que o artista em sua juventude foi marinheiro por seis anos: dos 17 aos 23, esteve no convívio com o horizonte imenso dos oceanos até 1871 e, como Édouard Manet anos antes, desembarcou no Rio de Janeiro.

Mas foi no Taiti onde ele estabeleceu um maior diálogo espiritual e material com uma cultura genuinamente de raiz primitiva. Incorporou tão profundamente aquela gente e seu universo que se tornou aos poucos um deles. Nos mistérios, nas crenças, na filosofia... Uma das obras, como muitas outras, que pode representar a penetração na mitologia taitiana é a Manao Tupapau (“O Espírito dos Mortos Vela”, 1892), baseada na lenda do espírito mau que vivia nas selvas e se utilizava das noites para incomodar os nativos. Igualmente com sincretismo, na La Orana Maria (“Nós te Saudamos, Maria”, 1892) representava Maria como uma Eva no paraíso, caracterizada como uma “vahine”, com o Cristo já nascido — pois se trata da anunciação do anjo sobre o nascimento do Cristo —, de pele escura nativa, o anjo entre as folhagens, toda a cena numa mata com vegetação tropical. O catolicismo local não aprovou a pintura por achar que as representações não eram compatíveis com as tradições da Igreja.

Logo após a primeira viagem ao Taiti, propõe uma exposição, em Paris, ao marchand Durand-Ruel. A inauguração foi no dia nove de novembro de 1893, com a participação de Charles Morice, dando o suporte para a divulgação na imprensa. Quarenta e duas obras são expostas, com as molduras da preferência de Gauguin, modernas — brancas, azuis —, para as diferenciar das do Salão Oficial. Um objetivo ele conseguiu, senão o sucesso almejado: uma polêmica que mexeu com o mundo artístico e intelectual parisiense. Realmente, Gauguin já era uma presença impossível de ignorar, com uma fama conquistada a duras penas. Mas, com amargura, não se sentia compreendido pelos pintores dos quais gostaria de ouvir comentários favoráveis. A maioria das críticas foi em cima do exotismo e sexo que diziam ter ele explorado da cultura maori. As obras mais expressivas, entre outras como Vahine no te Tiare (“Mulher com Flor”, 1892), primeiro quadro realizado no Taiti com modelo nativo; Homem com machado (1891); Hina Tefatu (“A Deusa da Lua e o Gênio da Terra”; 1893); Ta Matate (“O Mercado”, 1892), não foram suficientes para convencer o público, os críticos e os artistas, todos divididos quanto ao julgamento. Mas ele pretendia continuar a gigantesca obra com o pouco tempo que lhe restava, pois, com a saúde já dando sinais de abalo, por causa dos sintomas de sífilis.

Gauguin, um artista seminal, encontrou, nas ilhas longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador, que foi despertada com lutas intermináveis e  incompreensões que vinham de um mundo civilizado. Dizia, em Paris, antes de partir definitivamente, que, entre “os selvagens daqui e os de lá”, preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a história da sua própria pintura e, consequentemente, a arte universal, ampliando, a cada passo — num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de forma, de conceitos —, um encontro feliz com o que ele chamava de “mitologia maori”, que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde realizou suas obras-primas, amou suas “noivas” meninas — Teha’amana e Pau’ura — e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, toda a geração posterior deve à nascente Gauguin, como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar o Modernismo na arte do século 20.

terça-feira, 2 de julho de 2019

A obra piramidal de Brennand

                                           Francisco Brennand - autorretrato -1948

Conheci a Oficina Cerâmica Francisco Brennand ainda na década de 1970. Fui levado por José Cláudio, quando desfrutava de uma convivência quase diária com ele, que, naquela ocasião, disse: “Essas obras só têm paralelo, no mundo, quanto à expressão, com as de Miró...”. Na entrada, percorremos os corredores da oficina na presença dos painéis cerâmicos fixados nas elegantes paredes e de esculturas de mesma matéria, dispostas nos espaços apropriados para ali permanecerem numa harmonia arquitetônica acentuada com as curvas orgânicas das peças. Permaneci atento no olhar e num silêncio perturbador. Chegamos à sala em que Brennand se encontrava; ainda é o seu pequeno ateliê dentro da monumental Oficina, onde realiza parte de sua obra pictórica, recebe visitas, tem seus livros eletivos e desfruta de um ambiente próprio para mergulhar numa reflexão permanente, digna do criador que possui pleno domínio do seu pensamento e da sua obra. Um encontro agradável, principalmente, para ouvir o artista.

Desde então, fui um frequentador para me alimentar, eventualmente, das explanações de Brennand, daquela graça transformadora das esculturas, dos painéis cerâmicos e de toda a estrutura da Oficina integrada à paisagem. Oportunidades que não ficaram como lacunas, mas enriqueceram a percepção do jovem artista, bebendo das fontes disponíveis. Ainda não era no espaço em que está hoje; iria começar a grande Muralha Mãe Terra, de uma beleza estonteante, ao lado da parte central da Oficina, onde estão o Pátio de Esculturas, o Ovo Primordial e, claro, as outras instalações posteriores, como a Accademia – a pinacoteca das obras de Brennand –, a Capela Imaculada Conceição e outras. Tudo remonta à cultura das civilizações grega, romana, medieval e contemporânea. Lembra a eternidade da matéria que se transforma pelo poder do fogo. Formas que incitam a imaginação e são inspiradoras. Quando conhecemos toda essa concepção, jamais esquecemos a impressão que marca o espírito do espectador e permanece mutável como a criação em movimento na mente do leitor.

Com uma obra piramidal consolidada, tendo a pintura como ápice, Francisco Brennand nos presenteia com a publicação do seu diário, cujos três primeiros volumes intitulou O nome do livro, lançado no auditório da Oficina, em dezembro de 2016, com a presença de um público numeroso, apreciador do artista e pensador. O autor é, acima de tudo, um pintor e mostra isso no olhar, na sensação, na concepção e na percepção da obra alheia, principalmente dos artistas com que teve contato ou conheceu a obra. Dentre tantos, encontrou em Balthus, pseudônimo de Balthasar Klossowski, um pintor francês de origem polaca, que, à época, não era tão conhecido como hoje, um dos principais pintores do século XX, fazendo uma análise minuciosa sobre sua obra. A mulher de Francis Picabia, Gabrielle Buffet-Picabia, apresentou a Francisco uma coleção imensa de autoria do surrealista e a ofereceu por um preço vantajoso. Entusiasmado, logo telefona para o pai, Ricardo de Almeida Brennand, falando sobre a oportunidade da compra de uma obra que seria amplamente recompensada, mas não obtém resposta...

O diário é história, crítica em alto padrão, literatura e autobiografia, num estilo que seduz o leitor para se aprofundar cada vez mais e acompanhar o artista em seus encontros e desafios, uma obra de fôlego. Ali, estão grande parte dos criadores do século passado e de todos os tempos. Quando se põe o olhar em suas páginas, a tendência é não parar e marcar o espírito do leitor, principalmente aqueles que sabem e conhecem a pintura e as suas manifestações infinitas.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

O pintor revolucionário


Paul Cézanne nasceu e morreu rico, graças principalmente ao pai, Louis-Auguste, homem habilidoso nos negócios, de origens operárias, ex-chapeleiro que ascendeu como banqueiro e se tornou um dos cidadãos mais bem-sucedidos de Aix-en-Provance, terra natal do pintor burguês, “o mais burguês dos burgueses franceses”, também considerado o mais revolucionário do seu tempo. Como a sociedade de Aix não aceitava o ex-chapeleiro por puro preconceito pelas suas origens, até mesmo quando alcançou o status de banqueiro de destaque, direcionou o seu filho a uma formação sólida, porque pretendia que ele seguisse a carreira da magistratura para honrá-lo ante os concidadãos que o renegava.
 
Cézanne estudou nos melhores centros educacionais e foi no Colégio Bourbon que conheceu Émile Zola, quando construíram uma bela amizade no período da juventude que, na maturidade, apresentou discordâncias pessoais nas concepções de vida, mas os laços permaneceram. Os dois eram estudantes notáveis interessados em literatura e poesia, que fez Cézanne registrar a outro amigo: “Imagine que, no colégio, Zola e eu passávamos por fenômenos...” Após esse período de formação o escritor segue à Paris para a sua trajetória, inicialmente, como jornalista, e Paul fica em Aix sob a influência do pai que o queria na faculdade de direito para concretizar o sonho de ver o filho como magistrado.
 
Impelido por Louis-Auguste estuda um ano no curso de direito, mas logo sente que não é o seu caminho e o pai fica decepcionado. Quer ir à Paris para estudar pintura. O banqueiro não pensa em apoiá-lo, mas a irmã Marie e a mãe, Anne, conseguem dobrar o velho Louis, e este a contragosto permite que Cézanne vá à Paris, como experiência, e permaneça durante um ano, mantendo-o com uma modesta pensão.  Após alguns fracassos do pintor em Paris, retorna para Aix-en-Provance e o pai o coloca no banco, para mais uma decepção: o único homem da família não queria cumprir a tarefa de continuar a atividade do pai, escolheu definitivamente ser um pintor, para o desgosto de Louis-Auguste Cézanne...

A história de Paul Cézanne é um testemunho vivo de inteligência, perseverança e coragem em alto grau. Foi um artista, em grande parte de sua trajetória, incompreendido pelo público, pela crítica vigente, por alguns artistas e pela oficialidade da arte, na academia e nos Salões de Paris. A sua formação como pintor foi  complexa, renegado pela Escola de Belas Artes fez o seu próprio caminho, aliando-se a outros que também estavam no mesmo estágio de vida, os considerados rebeldes ao o estabelecido do que era arte nos meios acadêmicos. Após passar por uma fase romântica-expressionista, com pinceladas largas, dramáticas, espessas, ele embarca na concepção dos jovens artistas que estavam a propagar na pintura a luz natural das paisagens e sobre as coisas, que o jornalismo à época os identificou como impressionistas, e não foram aceitos de imediato pelo grande público. Começou a frequentar a convivência com Camille Pissarro, de quem adquiriu a captação da luz pelas pinceladas, uma influência enriquecedora e uma amizade permanente. Ao mesmo tempo veio Auguste Renoir, Claude Monet, que compartilharam juntos em exposições impressionistas com outros pintores.
 
Mas, Cézanne foi além do impressionismo. Criou sua própria concepção de interpretar o mundo visível, à medida que envelhecia, refinava a sua pintura e quando apresentou esses períodos foram denominados pela crítica posterior de analítico, sintético e barroco; fases em momentos diferentes, mas que se confundem numa geometria sólida e arquitetural, baseada na construção da cor no espaço, ainda não explorado por outros criadores. Ele se dizia um artista do futuro, e o foi. Reconhecido nos seus últimos dias como um dos gênios que contribuíram para uma nova visão na arte, sua obra então se espalha sobre a Europa e América; admirado, principalmente, entre os jovens artistas que o tratavam com um respeito a um demiurgo.  A partir dele a modernidade se concretizou, não teria mais volta, a revolução foi instalada... 


sexta-feira, 12 de abril de 2019

Picasso e Einstein




Dois jovens, no início do século 20, proporcionaram uma nova visão sobre o mundo: um no âmbito da arte, Picasso, e o outro no da ciência, Einstein. Os dois, com o mesmo espírito de rebeldia, conquistaram, com suas teorias, a libertação da mente e do olhar quanto ao espaço e ao tempo. Dominaram e reafirmaram as suas pesquisas, mas não foram compreendidos no primeiro momento pelos seus pares e mestres. Não conseguiram agradar, principalmente, os meios acadêmicos, pois estavam mais concentrados na concepção de suas ideias.

Ainda jovem, Picasso abandonou a formação acadêmica, que poderia tê-lo tornado um dos notáveis nos tradicionais conhecimentos. Renunciou a esse caminho e criou sua própria trajetória indo a Paris para continuar a empreitada livre como artista. Lá conheceu obras de outros que lhe forneceram alimento para a criação. Além de Cézanne, a influenciá-lo por meio de sua obra, com a visão de espaço e cor, foi Matisse quem lhe mostrou a arte africana, que proporcionou um verdadeiro salto quântico em sua pintura e lhe fez dar os primeiros passos para o Cubismo, uma das maiores revoluções no campo da estética plástica. Foi contaminado pela concepção de variados criadores, mas entusiasmou também uma quantidade imensa de artistas, que o seguiu, direta ou indiretamente, nas formas que criou, inicialmente consideradas estranhas.

O seu futuro companheiro de ateliê, Georges Braque, disse certa vez que estava impactado com a obra “As meninas de Avignon” (“Les demoiselles d’Avignon”), obra crucial para a consolidação do Cubismo e do próprio artista: “Era como se estivesse na presença de uma pessoa que tinha bebido petróleo para escarrar fogo”; e o pintor André Derain afirmou que um dia iria encontrar Picasso enforcado atrás de uma de suas telas cubistas, talvez lembrando o conto “A obra-prima ignorada”, de Honoré de Balzac, na qual o mestre Frenhofer apresenta sua obra como se fosse uma concepção única no universo pictórico a dois jovens artistas que ficam sem compreender a intenção do mestre.

Apesar do choque inicial, os artistas, aos poucos, aderiram à nova concepção picassiana. O Cubismo desenvolveu o olhar do espectador sobre as coisas, como se a percepção ampliasse e se pudesse enxergar todos os aspectos da matéria, todos os lados, quebrando, assim, a perspectiva linear tradicional; ao mesmo tempo, o pintor apresentava o objeto de sua criação frontalmente, dos lados, por trás, do topo, de ângulos diversos, e o que estava em volta se confundia com o tema pintado... Isso aconteceu em 1907. Picasso tinha 25 anos.

No mesmo ano, uma série de cinco artigos sobre a Teoria da Relatividade Especial, publicada em 1905, por Einstein — com 26 anos —, nos “Anais de Física”, começou a repercutir no meio científico. Um dos eminentes físicos alemães, Max Planck, de Berlim, enviou um assistente, Max von Laue, para Berna, com o fim de conhecer o autor e sua teoria. O assistente presumia que iria encontrar o Professor Doutor na universidade de Berna, mas nas suas investigações descobriu que o Sr. Einstein trabalhava no prédio dos Correios, onde se situava o Departamento de Patentes, que foi o único emprego, à época, que conseguiu para sua sobrevivência. Max von Laue, então, o procurou nesse departamento e pediu que fosse chamado, aguardando-o na sala de espera. Num primeiro momento, o jovem Einstein não foi reconhecido pelo assistente, que só percebeu que se tratava do autor dos artigos quando ele se apresentou.

Max von Laue foi o primeiro cientista importante a se aproximar de Einstein: como é sabido, sua teoria reelaborava o significado de observar eventos no tempo e no espaço, fato que mudou a compreensão da humanidade ante o Universo.

Dois criadores que se encontram naturalmente e modificam a concepção do mundo. É como se o Cubismo e a Teoria da Relatividade se fortalecessem para dizer que as coisas não são mais como imaginávamos...

sexta-feira, 22 de março de 2019

A arte das cavernas



O artista no período paleolítico era um caçador. Quando pintava o objeto da caça nas cavernas, ele não fazia distinção entre aquela representação e o animal que seria atingido pelas suas ferramentas e habilidades. A imitação pictórica tinha vida própria como se fosse a natureza: acreditava que era uma espécie de armadilha que antecedia a caça. Não eram dois mundos, era um só. Uma visão monista da realidade. Não existia nenhuma transcendência. Nenhuma preocupação fora da vida, do meio ambiente, da sobrevivência imediata. As pinturas desses animais tinham uma fidelidade com os finalmente caçados. Por isso, esse período foi considerado como naturalista, ou impressionista. A pintura era produto do que via, e ele, o artista, conhecia bastante as suas presas, representava-as com todos os detalhes necessários para o trabalho de captura. Era a magia que imperava. Também esse período é reconhecido como o da magia. Representava os animais atingidos por dardos e flechas e julgava-os fatalmente mortos por este fato.

Não havia nenhuma preocupação estética, não era um deleite, e sim uma estratégia presente no dia a dia. Segundo os especialistas, o fato de as pinturas serem realizadas nas cavernas demonstrava que eram para uma prática mágica, e não de caráter estético. Mesmo assim, o artista paleolítico deixou um patrimônio de beleza que encanta todos os estudiosos que se debruçam nessas pinturas. Muitos destes levantam a questão intrigante de que, por ser uma pintura enriquecida pela vida, é curiosamente difícil de acreditar que foram realizadas pelo homem primitivo. Mas a ciência arqueológica e outras a cada dia desenvolvem pesquisas e teorias que aproximam o entendimento daquele mundo ao atual. Só de se pensar que muitas dessas pinturas rupestres se mantêm com aspectos ainda vívidos já é um assunto para a ciência decifrar.

Com a lenta e grande transformação desse período paleolítico — quando os seus agentes eram nômades e viviam exclusivamente da caça e da coleta de frutos, enfim, da natureza de forma parasitária, para a idade neolítica, o Homem passa a desenvolver uma cultura baseada na produção do próprio alimento, com atividades agrícolas, pecuária, divisão de atividades entre os sexos, desenvolvendo então uma visão mais transcendente da vida, na qual aparece a crença no sobrenatural, na dualidade do corpo e espírito e na força dos deuses, que interferem no mundo dos vivos, um mergulho no animismo. E, como consequência, as pinturas rupestres são influenciadas por essa concepção de vida. A arte inicia um processo mais intelectualizado, racional, abstrato e geométrico, simplificando as representações dos seres como símbolos pictográficos. Mas, na fase intermediária, ainda no final do paleolítico, apareceu uma tendência mais expressionista que impressionista, que foram as representações exageradas dos animais, prolongando os seus membros para ressaltar o aspecto do movimento dessas figuras. 

Couberam ao século XX — coincidentemente o mais preparado quanto à tecnologia e ciência para estudos e pesquisas sobre tão empolgante tema — as descobertas das cavernas do paleolítico e neolítico, principalmente na Europa (na Espanha, em Altamira, El Castilho; e na França em Lascaux, Chauvet e Montighac), que são as que mais se destacam. Esse patrimônio mundial ainda motiva artistas a fazer um paralelo com a arte primitiva dos nossos ancestrais. A matéria que esta apresenta é de uma força que permanece em nosso inconsciente como algo revolucionário, é fonte e alimento para as várias artes do nosso tempo. Um exemplo disso é o documentário do cineasta alemão Werner Herzog sobre as Cavernas de Chauvet, com o título “A caverna dos nossos sonhos” (2010), que é uma obra notável para conhecer as pinturas mais antigas realizadas pelo Homem há 30 mil anos...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O Realismo em Rafael




Rafael Sanzio (1483–1520) foi o mais jovem da tríade, no Alto Renascimento — ante uma plêiade de notáveis —, que formou com Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti. Também foi o mais silencioso deles, porque os estudiosos se basearam mais em sua obra plástica para decifrar o artista, enquanto os outros dois deixaram uma imensidão de informações escritas e testemunhos: Leonardo, com os seus infindáveis cadernos de anotações, estudou tudo ao seu redor, deixando para a posteridade desenhos e textos que ainda hoje espantam o público e os especialistas; e Michelangelo com os versos e depoimentos que deram pistas para falar sobre o autor do afresco do teto da Capela Sistina.

Rafael Sanzio foi o que teve a oportunidade de iniciar muito cedo a sua formação, tendo a sorte de ter um pai, culto e sensível, Giovanni Santi, artista que o iniciou nos primeiros passos na pintura e o percebeu como um talento precoce, encaminhando-o, aos 11 anos, a uma das sumidades da época, Pietro Perugino, em Perúsia, para dar a solidez do alicerce ao futuro renascentista. Aos 17 anos Rafael já era considerado um mestre para concretizar a concepção de sua obra.

Segundo os críticos e historiadores, ele recebia as influências, mas não se escravizava a elas. O artista tinha o ímpeto natural de superar o mestre. Foi o caso com Perugino em algumas obras, como O casamento da virgem (1504), que fez o historiador suíço Jacob Burchardt dizer que “Rafael pintava como Perugino devia ter sempre pintado.” De Leonardo e de Michelangelo recebeu influências e as adaptou à sua maneira; do primeiro, sobre os retratos e as madonas; e, do segundo, a anatomia de algumas personagens das cenas bíblicas da Capela Sistina. A personalidade plástica de Rafael era tão forte que não se percebia — apesar de alguma influência — outro artista em sua obra a não ser ele mesmo com o seu Realismo, com as suas cores, seu desenho, o encanto das figuras representadas...

Rafael foi um artista de sucesso, não teve dificuldades para alcançar o topo da aceitação de sua obra no mercado de clientes ricos, mecenas e, principalmente, por parte da Igreja. Suas invenções aludiam à mitologia clássica, a deuses e deusas, à fé católica, a temas bíblicos, a santos, a anjos e a mensagens da salvação cristã. Dois papas se interessaram pelo seu trabalho no Vaticano e o contrataram. Júlio II e Leão X foram os que mais investiram. Destes fez retratos importantes e históricos. Leão X gastou o que a Igreja não poderia suportar e levou o Vaticano a séria crise financeira. Foi, no entanto, a fase mais rica quando se trata de obras de artes nesses papados, como as de Michelangelo e de Rafael, que foi também nomeado arquiteto-chefe da nova Catedral de São Pedro — e de outros como Piero della Francesca, Signorelli e Perugino. A estratégia da Igreja era atingir os fiéis com as representações das suas tradições, numa investida contra o espírito da Reforma: segundo o pensamento, as imagens diriam mais que as palavras; portanto, as disseminações de obras de artes falavam às almas, como numa pregação plástica permanente.

O excesso de trabalho fez com que Rafael formasse a sua equipe de colaboradores artistas e discípulos para dar conta das encomendas vindas essencialmente do Vaticano. As tarefas eram divididas entre estes, sob a direção e inspiração do mestre, para que tudo se harmonizasse, desde a concepção ao acabamento das obras, como era a práxis de todos os ateliês eminentes do seu tempo. Júlio II encomendou-lhe afrescos para a Stanza della Segnatura (Sala da Assinatura), e Rafael concebeu a temática com representações de figuras bíblicas, mitológicas e de pensadores da Antiguidade e da Idade Média, onde se fazem representados Cristo, Aristóteles, Platão, Apolo, com títulos como A disputa, Parnaso, Escola de Atenas e Justiça. Enquanto Rafael trabalhava nas salas do Vaticano, Michelangelo elaborava o afresco, à porta fechada, no teto da Capela Sistina, desvelando a primeira parte da obra em 14 de agosto de 1511. O sucessor de Júlio II, Leão X, não dá trégua a Rafael e sobrecarrega-o com mais trabalhos, entre pinturas e afrescos, inclusive uma série de desenhos com o fim de realizar tapeçarias para enaltecer o próprio pontífice, por sugestão do mesmo, comparando-o ao apóstolo Pedro, como numa propaganda papal. No entanto, habilidosamente, Rafael desenvolve o tema retirando-o dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, fornecendo uma perspectiva própria.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O artista solar do Renascimento



Por ser bastardo, Leonardo da Vinci foi impedido de entrar na universidade para consolidar a sua formação; essencialmente se tornou, ao longo da vida, em seus 67 anos, um autodidata natural; tudo que percebia pelos sentidos, pesquisava e decifrava os fenômenos de forma realista e científica. Segundo relatos de biógrafos, na infância e adolescência conviveu com a natureza e já despertava uma curiosidade permanente sobre as coisas e os seres. Aos dezessete anos, o pai, Piero da Vinci, notário — uma espécie de tabelião e advogado, à época — de Florença, apresentou o jovem ao futuro mestre, Andrea del Verrocchio, famoso escultor e pintor que arregimentava discípulos para o seu ateliê, que funcionava de forma coletiva, como era comum no trabalho dos mestres do século XV com os seus aprendizes.

Esse era o único caminho para um bastardo: o das artes e ofícios; não poderia, por exemplo, herdar a profissão do pai, como notário. Foi ali, no estúdio de Verrocchio, que Leonardo adquiriu todo o conhecimento inicial sobre pintura, escultura e outras artes, bem como sobre arquitetura e engenharia. O aprendiz logo revelou o seu talento e alcançou a posição de assessor destacado do mestre, a ponto de dividir com ele a obra O batismo de Cristo (c. 1475), cumprindo a missão de pintar um dos anjos, que se diferencia pela delicadeza do rosto, ao lado da representação do Cristo pintado por Verrocchio. A partir dessa obra, diz a lenda, o mestre, abismado com o talento do jovem artista discípulo, permite que Leonardo dirija, sob sua supervisão, a seção de pintura do ateliê.

Leonardo sai do ateliê de Verrocchio consagrado como mestre para alçar o próprio voo. Vai para Milão com o fim de oferecer os seus serviços ao Duque Ludovico Sforza, cognominado “o mouro”, e com um instrumento musical, uma lira de prata ornamentada com uma cabeça de cavalo, de sua invenção, para presenteá-lo, seduzindo-o para um acordo de paz, a mando de Lourenço de Médici, o Magnífico, o mecenas e protetor das artes e da cultura florentina. O artista faz uma carta para se apresentar a Ludovico e diz dos seus talentos, do que é capaz de fazer como possível servo artista e criador daquele ducado. Começa dizendo que tem conhecimentos sobre armamentos de guerra, de arquitetura, engenharia, decoração, encenações teatrais, música... e, por fim, expressa que é capaz de pintar e esculpir. Isso, talvez, por saber do espírito bélico de Ludovico Sforza, um inteligente soberano, mas tido como rude.

Além das obras-primas pictóricas realizadas por Leonardo, que não foram muitas, há de se pensar na imensidão de trabalhos relacionados com os estudos em vários ramos do conhecimento, que ele coletou durante a vida e até nos últimos momentos. Estudou o corpo humano minuciosamente, a anatomia, a fisiologia; o corpo dos cavalos; a luz, seus efeitos na cor, antecipando o impressionismo; o movimento das águas, dos rios, dos oceanos; o céu e a razão de sua cor; o movimento das nuvens; a Lua e a luz refletida sobre ela; os projetos de arquitetura urbanística; o Sol, observando-o como centro do Universo; a astronomia; a mineralogia; a botânica; a arqueologia; o voo dos pássaros; a física; a geometria; a matemática... Por esses estudos, foi interpretado como um herético pelos seus contemporâneos, mas ele respondia que os assuntos místicos ele deixava com os frades, dizia que não era a sua missão, a sua estava relacionada com a ciência, com a experiência dos fenômenos e a síntese das comprovações...