"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sexta-feira, 30 de março de 2012

Duchamp e a transgressão velada

Tudo começou com Marcel Duchamp, no início do século XX, quando afirmou que o seu urinol era arte e a inteligentsia cultural aplaudiu e institucionalizou que tudo o que dissermos que é arte, a partir de então, passa a ser um pensamento estético concretizado. O pioneirismo do artista francês não deixa de ser intrigante ao inventar que uma ideia vale mais que toda a prática da arte acumulada durante séculos: desde as cavernas — em que os artistas representavam a sua impressão ante um mundo repleto de caça, praticando a magia pictórica para conquistar o objeto de sua sobrevivência, representando-o como se fora já o animal capturado — até a sofisticada malha de gênios que deixaram marcas na pintura, na escultura, na arquitetura e em todas as pesquisas valiosas no âmbito da arte e comprovadas na história, presentes há séculos no imaginário do planeta.

Mas a transgressão que Duchamp veio instalar virou moeda corrente e, hoje, está consolidada e institucionalizada com a força e o poder do capital (quem diria!), dando respaldo junto a governos prontos a repeti-la à exaustão.

A transgressão institucionalizada virou tema de doutorados nas academias, inundando a mídia e a cabeça de toda uma geração cujo lema é violar. Mas o que ainda transgredir? Como tudo isso se tornou um sistema bastante fortalecido, não vejo nenhum daqueles que praticam essa meta atingir o centro desse poder avassalador, o que seria uma verdadeira transgressão; ao contrário, quando os importantes curadores dessa linha de pensamento visitam o nosso país, eis que toda uma plêiade de seres criadores se ajoelha e os reverencia como divindade e salvador da pátria quanto aos caminhos estéticos a seguir. Não, os devotos, a estes não se diz nada.

Creio que a National Gallery de Londres cometeu uma real transgressão na contemporaneidade ao montar uma mostra importantíssima para o mundo cultural — Leonardo da Vinci, Pintor na Corte de Milão —, que esteve em cartaz até fevereiro de 2012 e reuniu as mais importantes obras desse artista que deixou um patrimônio imensurável para a humanidade. Ainda bem que há o outro lado da moeda para transgredir a transgressão institucionalizada.

A volta aos grandes mestres universais é um fato e essa é uma das violações a uma institucionalização que já virou um “feijão com arroz” insuportável. No Brasil, temos pensadores que, corajosamente, se colocam na contramão dessa falsa transgressão, como Ferreira Gullar, com a obra Argumentação contra a Morte da Arte; Affonso Romano de Sant’Anna, com Desconstruir Duchamp; Luciano Trigo, A Grande Feira; e Ângelo Monteiro, com seu recente livro, publicado pela É Realizações Editora, Arte ou Desastre, obra de impacto para aqueles que pretendem se deliciar com os pensamentos do poeta e ensaísta nordestino.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Goya e a Inquisição

No século XVIII, na Espanha, era impossível não se declarar católico, até mesmo porque o Santo Ofício, o braço fortalecido da Inquisição — que exercia maior poder no século XVII —, ainda disposto ao ritual de julgamentos e a incitar a acender fogueiras nutridas de carnes humanas para iluminar a própria obscuridade, estava atento a qualquer deslize e sacrilégios dos cidadãos comuns e de pessoas que representavam importância na sociedade.

Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.

Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.

A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.

Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pregavam a abstinência, hipocritamente.

Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Michelangelo e Lourenço, o Magnífico

Foi no jardim de Lourenço de Medici, o Magnífico (1449–1492), “príncipe sem coroa de Florença”, que Michelangelo, aos quinze anos, o conheceu: uma das personalidades mais importantes do século XV, estadista e diplomata, soberano de fato da República Florentina no Renascimento italiano, patrono de pintores, escultores, arquitetos, poetas, filósofos e pensadores políticos, que o buscavam como grande mecenas e homem da cultura.

Michelangelo esculpia uma cópia da cabeça de um fauno antiga, e il patrono ficou impressionado com a inteligência e habilidade daquele garoto, que ainda estava recebendo a sua formação do escultor Bertoldo di Giovanni — que montou ateliê entre as sombras das árvores do jardim — após ter saído do ateliê do famoso pintor Domenico Ghirlandaio, onde aprendeu o ofício da pintura em suas várias técnicas, mas pensando sempre em esculpir. Naquele jardim, Michelangelo começou a estudar as esculturas greco-romanas colecionadas pelo Magnífico Lourenço, inebriando-se com a beleza e o paradisíaco estúdio ao ar livre.

O jardim, denominado Hortus Laurentii de Medicis, adornado de ciprestes, pinheiros e imagens clássicas, foi centro de atenções e presenças de arquitetos, pintores e escultores que fizeram história no Renascimento; entre eles, em épocas diferentes, Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci; este último, discípulo de Verrocchio, conviveu, em sua juventude, com a corte dos Medici, no palácio Via Larga, e recebeu as melhores influências, como os que viria depois usufruir, Michelangelo Buonarroti, um artista bem mais jovem.

Ao observar o fauno que Michelangelo havia terminado, Lourenço disse-lhe em tom paternal que a escultura parecia-lhe mais um jovem romano que um sátiro. O artista, então, trabalhou a peça retirando um dente e perfurando a gengiva, aperfeiçoando a ideia de um fauno; esperou no dia seguinte que Lourenço visse aquela representação, e, logo que o Magnífico a viu, interessou-se pelo jovem escultor e o admitiu em seu palácio, permitindo-lhe conviver com a cultura provinda dos seus habituais filósofos, poetas, artistas, arquitetos, políticos e todo o refinamento da corte, oferecendo-lhe instalações para que convivesse com os seus filhos e partilhasse a sua mesa, que, a época, era uma verdadeira distinção. Para Michelangelo, foram os mais felizes anos de sua tumultuada vida de artista independente e rebelde até mesmo ante o poder pontifício do extraordinário papa guerreiro Júlio II.

No palácio Via Larga, encontrou não somente a proteção primordial do Magnífico, como recebia as melhores orientações do escultor Bertoldo, que era responsável pela coleção dos objetos preciosos de Lourenço, além de gozar de sua amizade pessoal, era uma espécie de assessor para assuntos das belas artes no palácio. Também Angelo Poliziano — poeta e um dos pensadores admitidos pela corte dos Medici — exerceu uma forte influência sobre Michelangelo, sugerindo assuntos literários para os trabalhos em escultura, como no relevo Batalha dos Centauros, tema mitológico inspirado pelo poeta. Ali, o escultor formou a sua base para perpetuar o seu gênio em obras-primas que exerceram uma forte permanência no imaginário da humanidade, principalmente em nossos tempos decadentes.