"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Uma visão sombria do Recife

Imaginemos o centro do Recife sendo preservado desde a segunda metade do século XIX, e os bairros circunvizinhos, ampliando a cidade num crescimento horizontal, respeitando e dando ênfase à sua história urbanística inicial, com seus edifícios, ruas, pontes, cais e outros recantos; seria pensar uma cidade que apontasse uma beleza tropical incomparável.

Mas o nosso caminho foi o inverso: começamos a destruir grande parte da cidade que poderia lembrar um Recife como vemos em fotografias antigas. Com a ânsia da modernidade desorganizada, entendemos que aquelas velharias de edificações teriam que ser destruídas para surgir um novo Recife e construímos estruturas que são verdadeiros aleijões, hoje, na paisagem urbana no centro de nossa cidade. Deixamos, apenas — e ainda damos graças! —, significativas obras, talvez porque não pudemos arrancá-las facilmente, como os fortes, as igrejas mais importantes e o Bairro do Recife, que ainda estava ativo no início e na metade do século XX.

O que segura a impressão de beleza da nossa cidade é, principalmente, a sua paisagem vista por cima, aérea, que nos dá a oportunidade de contemplar os rios e as suas pontes, as ilhas e o imenso mar que banha o seu litoral. Porque, na hipótese de aterrissar ali, na Av. Guararapes, e caminhar pelo centro, teremos uma decepção! As suas calçadas tristemente malconservadas; os edifícios sem uma fiscalização eficaz — se quiserem constatar, entrem em um deles e verifiquem as instalações elétricas —; a sujeira nas ruas, com plásticos e papéis de toda espécie; e a poeira característica da falta de limpeza urbana. O centro do Recife está numa aparência que nos sensibiliza como artista. Não sabemos se está a caminho para se tornar um só entulho. Basta olhar a Av. Dantas Barreto, que não sabemos exatamente para que veio, porque é uma obra dantesca que ficou para sempre instalada no coração da cidade. Para realizar aquilo, destruímos quase toda uma memória, com a sua igreja, a dos Martírios, e a tradição natural do bairro de São José. Lastimável.
A impressão que temos é que empurramos essa paisagem urbana com a barriga, sem nenhum planejamento. É como se a cidade estivesse em estado quase terminal, nesse aspecto. Como se não tivesse um jeito, nem político nem científico, para consertar as coisas. Os urbanistas franceses estiveram aqui e tentaram ajudar com a experiência deles, lá em Paris, num convênio com a Prefeitura, que não sabemos no que deu. Mas preferem, os daqui, dizer: “Vamos emendar!”. Essa é a ordem, presumimos. Às vezes, podemos — porque se supõe que há emergências para certos assuntos — até consertar nessas tentativas, porém muito raramente, claro, e temos as desculpas prontas para defender o administrador se o coitado não for bem assessorado, porque a chance é de não resolver da melhor maneira. Como, por exemplo, o calçadão de Boa Viagem. Tiraram as pedras portuguesas e colocaram as ridículas lajotas de cimento, que destoam da paisagem marinha, quando antes existia o desenho tão poeticamente pensado de barcos sobre as ondas. Como denunciou, com propriedade e conhecimento, no artigo Pedras portuguesas, o artista e crítico Raul Córdula, uma das mais fortes expressões da arte nacional: “No meio cultural não se troca seis por meia dúzia. Um símbolo visual criado por alguém e aplicado no dia-a-dia das pessoas não pode ser simplesmente trocado por outro de outra autoria, a não ser que esta troca seja justificada por razões importantes…”. Aliás, uma obra pobre na concepção: bastava ampliar o que já tinha sido feito; mas uma das coisas necessárias para os políticos é mostrar que está quebrando, para dizer que está fazendo, e tome gasto!

“A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal”, constatou Baudelaire, no século XIX, olhando para as cidades européias, que são sumamente preservadas, principalmente quanto ao aspecto cultural. Só que, aqui, não só se muda, como se tenta destruir a memória material de nossa cidade. É a força de um inconsciente político que não sabemos donde partiu. Se cada cidadão contar os prédios que consideraram belos que, hoje, não se vêem mais e que lhe trazem uma recordação qualquer, verá que a lista ficará imensa. Percebemos que, para nós, o centro do Recife não tem a expressividade que deveria ter e, atualmente, as cores estão bastante pingadas com negro-de-marfim e a predominância é o cinza.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Wellington Virgolino, a marca inconfundível

O Atelier Coletivo (1952–1957), que foi o desdobramento, ou a criação, da Sociedade de Arte Moderna do Recife, nascido numa espontaneidade de um grupo de jovens artistas ligados àquela sociedade, sob a orientação de Abelardo da Hora, incorporou uma dimensão que supera a sua matriz na visibilidade e proporcionou, para muitos desses artistas, hoje consagrados, um impulso na consolidação das suas obras; por conseguinte, uma importância na história da arte em Pernambuco e no Brasil. Deve-se isso ao fato de ter sido uma oficina prática da arte moderna, com idealismo e vontade, descrevendo o universo nordestino por dentro, falando do povo, do seu movimento no trabalho, na religião de origem africana, nos tambores expressivos dos maracatus, no carnaval, na relação social, nas lutas políticas; enfim, da gente operária que faz a vida produtiva e a cultura de uma nação.

Foi ali que Wellington Virgolino (1929-1988), junto aos companheiros, encontrou o seu destino como artista. Além das sessões de poses rápidas com modelos para captação no desenho, incentivado por Abelardo, aquele ambiente também lhe deu a oportunidade do contato com os materiais mais sofisticados, como o suporte devidamente preparado, a aplicação da tinta, o diluente, a mistura das cores, a composição, a idéia do que realmente era arte. Até então, só desenhava porque era uma necessidade espiritual, um imperativo de sua natureza desde os tempos de estudante, fazendo sucesso entre os colegas com as caricaturas dos professores, realizando para estes os cartazes solicitados em função do encaminhamento didático nas aulas, mas tudo sem uma direção concreta, claro, de uma obra de arte. A base no desenho era-lhe nata, não havia nenhuma dificuldade em representar a figura humana e movimentá-la, se desejasse. A segurança estampava-lhe na força natural do jovem atraído por uma arte que ainda não conseguia perceber o que e onde alcançar com aqueles traços.

O exercício permanente era tentar descrever e flagrar o movimento do povo, dignificando-o à maneira dos muralistas mexicanos José Clemente Orozco, Alfaro Siqueiros e Diego Rivera, que na Revolução Mexicana utilizaram obras monumentais para tornar a arte acessível às grandes massas populares, transformando-as em  veículos de conquistas políticas. Rivera se sobrepõe aos outros muralistas como mote de inspiração no Atelier, porque José Cláudio (como narra em seu livro Memória do Atelier Coletivo) conseguiu, através de um amigo, um livro com o título Diego Rivera, com reproduções de obras do pintor, produzindo uma forte influência sobre grande parte dos membros, inclusive o próprio Abelardo, satisfeito com essa permanência de Rivera que vinha ao encontro dos seus ideais e a dinâmica que implantava em suas orientações.
Assim como na obra de Portinari, também os pernambucanos queriam dar uma contribuição à efervescência de idéias tão em voga nas artes plásticas, na década de 1950, que faziam os lápis e pincéis desses jovens artistas darem formas às figuras representadas dos trabalhadores, homens e mulheres do povo, exaltando-os na representação física, alargando os volumes dos braços e das pernas num simbolismo do trabalho exaustivo, em cores terra, ocre, soturnas e contornando-as, às vezes, com o negro para ressaltar as posturas, os movimentos dos corpos. Estavam unidos, os artistas, no mesmo idealismo, não havia o sentido de competição declarada, estavam para compartilhar o mundo que viam no Nordeste, em particular — mas que refletia todo o País —, como a dizer que pretendiam torná-lo belo e justo, numa harmonia entre a poética e a sobrevivência.

“Não aceito a idéia de um artista divorciado do povo. É o mesmo que se separar da própria arte. Sou e pretendo ser um pintor popular”, disse Wellington, em 1955, numa entrevista significativa ao jornal Evolução, em que indicava claramente o espírito do Atelier e a formação que recebeu, preparando-o para o caminho que pretendia trilhar. Os trabalhos que representam essa fase são plenos de um vigor especial e consciente, de forte expressividade, representando o trabalhador imponente, seguro, dono de um mundo ideal; sem nenhuma hesitação, o pintor dava-lhe uma vida que poderia surpreender aquele trabalhador por ser representado com tanta dignidade nos quadros, sabendo que era pouco remunerado naqueles anos de 1950, e sofrivelmente assistido — como hoje — na educação e na saúde. Os títulos das obras falam também dessa visão: Pescadores do Capibaribe, Calçando a rua, Cortadores de Cana, Calceteiros, Estivadores, Acidente do Trabalho, Engomadeiras, Emigrantes e O tirador de cocos.

Desde a época do Atelier, Virgolino demonstrava uma disposição no desenho, com um forte traço, lembrando — além dos muralistas mexicanos —, as histórias em quadrinhos, de forma desenvolta, como num natural gesto de sua verve criadora. Sentia-se motivado quando a oportunidade de desenhar lhe surgia e captava a forma humana e as coisas com uma característica segurança. Solicitassem dele, os amigos poetas, escritores e jornalistas, um desenho para ilustração, ele, com um sorriso largo na aceitação da proposta, iniciava logo o trabalho pensando em dar forma concreta, visual, à narrativa do autor ou a um tema para desenvolver nas comemorações públicas.

Numa reprodução no noticioso Imprensa Popular com data de 9 de outubro de 1954, na II Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, destaca-se, atrás dos conferencistas, um trabalho de grandes proporções realizado pelo artista e, abaixo, na página, registra a caneta: “O mural que decora a conferência é de minha autoria”, com um certo orgulho e a vontade inconsciente de tornar material e histórica aquela presença da obra artística, talvez prevendo que o sopro dos fatos quase sempre apaga, ou pretende apagar, as ilustrações dos artistas. Também em outubro do mesmo ano, na comemoração do 30º aniversário da Coluna Prestes, na Folha do Povo, junto ao seu irmão mais novo — o artista plástico Wilton de Souza (um dos mais atuantes membros do Atelier), presente com um desenho vigoroso, reproduzindo os armados seguidores da Coluna —, Wellington desenha Prestes montado num cavalo igualmente heróico (pelo menos passa essa idéia) domado pela força do braço do personagem, segurando com a outra mão, a direita, um rifle e, atrás deste, mãos levantando rifles e estrelas surgindo em perspectiva, finalizando em seguida a representação do Cavaleiro, e, abaixo, com suas letras bem desenhadas, escreve: Ilustração de Wellington.
Vê-se, nesse trânsito entre o desenho e a pintura, a habilidade que tinha Wellington Virgolino na ilustração, na história que narra pela imagem; fator que se acoplou ao seu trabalho em todas as fases. A impressão que temos é de que, na concepção que o envolvia em cada obra, estava presente um enredo, um fato, numa conotação do humor, do trágico, do romântico, do sensual, do histórico, até mesmo do bíblico. Ele era um pintor que queria ser direto, sem nenhum esoterismo ou mistério técnico ou que demonstrasse um laivo sequer de intelectual discutindo estética em seus quadros, era ele mesmo pleno com o que realizava, partindo, quase sempre, de uma ponta do nirvana, livre dessas prisões que escravizam os espíritos saturninos, filosóficos.

Isso é tão presente em sua obra que, na VI Bienal de São Paulo, em 1961, ele procurou, por todo o edifício da exposição, os seus trabalhos, encontrando-os, com muito sacrifício, embaixo de uma escada, junto a artistas como Heitor dos Prazeres, Manezinho Araújo, entre outros pintores primitivos. Os críticos vigentes colocaram-no junto a esses artistas julgando-o um deles no estilo; e o pintor, meio aturdido, sem entender a ligação, continuou feliz por estar ali como o único escolhido, em Pernambuco, para participar do grande acontecimento das artes plásticas internacional, também pelo fato alvissareiro de ter vendido todos os trabalhos expostos, através da Galeria Astréia, uma das mais importantes, à época, em São Paulo. Ainda mais: saiu de São Paulo com uma boa encomenda de obras — sim, encomenda, como um profissional que lutou sempre para vender os seus trabalhos, seguindo o exemplo da humildade e da genialidade do artista-artesão do Quatrocentto florentino, a quem se encomendava na sua bottega não somente a excelente pintura ou a obra-prima escultórica, mas tudo o que se realizava naquela fábrica de engenho: um serviço de arquitetura, de ourivesaria, de fundição; ornamentos para cofres e cavalos; candelabros; desenhos para tapeceiros e bordadores; louças de noivado; peças de armadura; sinos; e outros utensílios, e, com os séculos, não diminuiu, na história, nomes como Donatello, Botticelli e Ghirlandaio, por fazerem essa concessão.
A partir da Bienal, o trabalho de Virgolino entrou em circuito no mercado de arte nacional, entre o Rio, São Paulo e Pernambuco, despertando o interesse também da crítica, numa enxurrada de textos sobre a sua obra. Sheila Leirner indaga: “Seria o pintor um primitivo, um cartunista? Difícil enquadrá-lo, Virgolino é um pintor sério… de interpretação própria, rica e imaginativa”. “O mundo de Virgolino se espraia por nossas margens contidas e aplica à nossa contenção a gota de mel da transfiguração… estamos diante de um artista que, antes de mais nada, conquistou o privilégio de possuir uma linguagem própria e inimitável”, escreveu Walmir Ayala. E diz Frederico Morais: “[...] trata-se de um pintor com bastante personalidade, que faz uma pintura figurativa diferente, lembrando, às vezes, alguns artistas primitivos, mais pela forma do que pela cor. A matéria é curiosa, e o tratamento da figura, original”. “Na pintura atual de Wellington Virgolino, resultante de um desenvolvimento de cuidadosa coerência, mesclam-se funcionalmente a base arcaica popular e os sinais armados de contemporaneidade. Seu fundamento telúrico-crítico concretiza-se mais no registro da festa, da harmonia e do lirismo do que na dinâmica quase expressionista do primordial e do fantástico”, conceitua Roberto Pontual.

O imaginário poético de Wellington Virgolino percorreu vários temas, como os Signos do Zodíaco (1969 e 1978), O Circo (1971), A Bíblia (1973), Brincadeiras da Infância (1979), Os Sete Pecados Capitais (1977), uma série sobre a enchente que ocorreu no Recife, descrevendo telas boiando, etc., outra sobre Santana — a mãe de Maria —, abordando-a em várias circunstâncias, e obras avulsas que falam do cotidiano com títulos como A Máquina de Escrever, O Jardim, O Telefone, O Namoro, O Viajante, O Iluminador, Piloto de Provas, Uma Tenista Indecisa, Jovem Aprendiz de Juiz e outros, fazendo sucesso no mercado de arte que o marchand Carlos Ranulpho, ao longo dos anos, acompanhou como seu agente imediato, a quem Virgolino se referia, com humor, quando as pessoas iam procurá-lo no ateliê para comprar diretamente, dizendo “Fale com o meu empresário”.

Firmaram contrato verbalmente, mas mantinham uma relação profissional respeitável pela fidelidade que ambos tinham em cumprir as suas partes; construíram uma amizade, e o marchand se emociona ao lembrar o artista, afirmando que praticamente iniciou as atividades com Virgolino em 1969, realizando a primeira exposição associada à Galeria Ranulpho, que se instalava à beira do Capibaribe, perto do antigo cinema São Luís: “O resultado foi muito bom”, diz o marchand, “vendemos a exposição toda, com uma excelente divulgação”. Desde então, propôs um contrato de exclusividade: Virgolino trabalhava e entregava a Ranulpho toda a sua produção. Essa sociedade veio a calhar: Wellington necessitava de um intermediário para negociar a sua obra, pela imensa demanda, para poder trabalhar com mais tranqüilidade, sem a preocupação de ter que receber os clientes, deixando o trabalho do ateliê; e Ranulpho necessitava de um artista que pudesse dar impulso às atividades como marchand, com o prestígio de um Virgolino, que permaneceu, ao longo da história da galeria, o artista de maior interesse de circulação nas vendas, apesar de outros também participarem de exposições individuais e coletivas, como os pernambucanos Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e outros do Sudeste.

No seu trabalho, Virgolino, na essência, continuou o mesmo: o desenho materializado na pintura, com a linha em contorno delineando as figuras e contando as suas histórias; a cor transborda e sai daquela economia dos terra e ocre dos primeiros tempos do Atelier. O que ele explora nas obras seguintes são as idéias que dão à sua visão uma alegria, uma transfiguração, com a mente voltada para as lembranças, como uma criança que se diverte falando de um mundo todo especial, na naturalidade que alcança o espanto, como quem viu uma parte do paraíso e quer transmitir, aos olhares e coisas reais, um humor próprio dos seus pincéis. Talvez, como Monet — fazendo um paralelo quanto à felicidade —, que pintava interminavelmente o lago de nenúfares no jardim em sua propriedade, porque também aquele pintor encontrou o belo; Wellington permaneceu íntegro com o universo que construiu, sem mudar uma só vírgula do seu texto pictórico, e dizendo simplesmente que essa era a maneira — e apenas essa — de expressar o seu pensamento na pintura, fazendo-se presente na história da arte de Pernambuco e do Brasil como uma marca inconfundível.