"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 24 de novembro de 2012

Pilar da arte



Os jovens artistas da geração de 1970 tinham como espelho os das anteriores, principalmente aqueles que admirávamos como um dos pilares da arte realizada em Pernambuco. E um deles era Montez Magno. Um artista consolidado, com opiniões críticas sérias e confiáveis; procurávamos, nele, ouvir os conhecimentos e necessitávamos de saber algo sobre nós mesmos.
 
Uma geração de autodidatas é o que se poderia dizer, apesar também de nos apoiarmos na experiência desses artistas. A vida era a nossa escola, não existia, como hoje, essa alternativa propagada de que, para ser artista, tem de frequentar mestrados e doutorados. Nós abríamos os livros de forma prazerosa, sem o “cabresto” dos orientadores atuais das universidades, que dão os rumos para a defesa de teses.
 
Para nós, uma opinião sobre o nosso trabalho ou um texto crítico com a assinatura de Montez Magno era um aval de grande importância. Como as de Gilvan Samico, Jomard Muniz de Britto, Francisco Brennand, José Cláudio, Raul Córdula, João Câmara, Ypiranga Filho, Wellington Virgolino, entre outros de gerações diferenciadas. E mais a influência dos pais do modernismo regional e nacional, como Vicente do Rego Monteiro, Joaquim do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Aloísio Magalhães. Fomos também os herdeiros do Atelier Coletivo, liderado por Abelardo da Hora.
 
Em 1982, procurei Montez Magno para mostrar uma série de pinturas sobre trabalhadores rurais, cortadores de cana-de-açúcar da Zona da Mata pernambucana, que a intitulei de Paisagem de nossa vida. Eram flagrantes de suas atividades, isto é, plantando, colhendo, transportando a cana; velhos, crianças, mulheres, todos, ali, suando para receber o seu sustento, uma sobrevivência dura ao sol a pino. Toda a pintura baseada em cores terrosas e alguns toques mais fortes de verde, azul, vermelho, e, às vezes, um amarelo intenso, tudo em pinceladas nervosas, gestuais.
 
Montez, paciente e atencioso, olhou cada quadro, fez as suas anotações e escreveu uma apresentação — Sobre a pintura atual de Plínio Palhano —, que considero séria e aguda. Abordou o lado expressionista do autor, o parentesco com outros artistas locais, como José Cláudio, Piedade Moura, Ana Ivo, e os de âmbito histórico internacional: Soutine, Daumier, Van Gogh. Creio que ele tenha dado o perfil do que viu naqueles trabalhos com a verve crítica sem a falsa complexidade que encontramos comumente nos textos atuais de certos curadores, nos quais nem o público nem ninguém sabe o que eles querem dizer. Entrou no lado técnico, na concepção, execução, estudando todos os ângulos do pintor. Um texto raro na fortuna crítica sobre a minha obra e que permanece uma representação do olhar verdadeiro sobre a arte e o artista.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A vez dos idosos


                                                   Rembrandt

Conta-se nas Escrituras Sagradas budistas que o príncipe Siddhartha Gautama (por volta de 566 a.C.), aquele que se tornou o Buda, o iluminado, na sua doutrina da universalização do sofrimento, encontra na velhice — como no nascimento, na doença e na consequente morte — um dos fundamentos da dor humana. É na contemporaneidade, nos países ocidentais, principalmente nos em desenvolvimento, que nós constatamos o fato com mais força no dia a dia dos idosos. No Nepal, onde surgiu o Budismo — que se espalhou depois pela Ásia — não há a necessidade de um estatuto que os proteja, porque, lá, a tradição milenar impele a respeitá-los.

Pressupõe-se que todo idoso seja sábio, mas nem todos alcançam essa possibilidade, mesmo porque a maioria não teve a oportunidade de uma vida mais tranquila para armazenar um conhecimento formal ou natural transmitido via intuição. Só aqueles que passaram toda uma vida refletindo, como um fruto que passa do broto ao amadurecimento completo, adquirem a sabedoria. Nem todos tiveram a oportunidade de um Claude Monet, que teve, no que se sabe, uma vida relativamente feliz e reflexiva na sua propriedade em Giverny, onde pintou incansavelmente a série de obras intitulada Nenúfares, nos seus últimos dias, no belíssimo lago que construiu e na famosa ponte japonesa. Foi ali que Monet fortaleceu e concluiu as ideias mais avançadas do impressionismo.

Também nem tiveram uma velhice como a de um Gilberto Freyre, que passou toda vida estudando e realizando obras-primas sobre a Nação brasileira e, antes da morte, deixou vários artigos para serem publicados na imprensa pernambucana, demonstrando uma vida social e intelectualmente ativa; sem falar do seu esforço para a consolidação da Fundação Joaquim Nabuco — órgão importantíssimo, que é referência para a cultura nacional.

Os idosos, já limitados pelas condições físicas, ainda são desrespeitados em nosso país, quando circulam pelos centros urbanos — nas filas de pagamento ou de recebimento de pensões, nos transportes coletivos, nos consultórios, no trato social — e pelos próprios parentes diretos, que os aprisionam para assinarem procurações ilegítimas e lhes toldam as próprias vontades, aproveitando-se da fraqueza natural da idade e fazendo de sua vida gato e sapato, numa santa hipocrisia: os nossos idosos familiares quase sempre são apenas peças de decoração para mostrar à sociedade que estão servindo às suas necessidades numa mentira sentimental mascarada de bondade religiosa.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Arte e tragédia


Iberê Camargo

Para os artistas, a arte nunca foi um mar de rosas. Quem diz é a própria história, com as experiências individuais e coletivas. Houve até artistas que a chamavam de maldita. Só os amadores, aqueles que a apreciam através de livros e manifestações culturais, é que conseguem amar a arte incondicionalmente. Os que vivem e viveram os longos anos de amadurecimento reconhecem que essa amante não é somente tão prazerosa assim, têm os seus momentos de dúvidas, de angústias e fatos inesperados, e quem não os teve, então, não sabe o que é arte. A explicação para o fato é que se penetra tão profundamente na sua essência que se alcança o nível de ódio. Que o digam as tragédias shakespearianas que passam por punhais, venenos, traições, bruxarias, fantasmas...

Jacson Pollock

Em nosso país, começaria com o pintor Almeida Júnior, assassinado a punhal por um marido raivoso traído pelos seus encantos, já que era tido como, além de extraordinário artista, um galanteador de primeira linha. Portinari, o estandarte nacional da pintura, era um homem pacato, mas foi envenenado, lentamente, pelo manuseio das tintas a óleo, ainda com uma idade em que poderia produzir muito mais a favor da obra em que trabalhava, com destaque internacional. Pancetti, o paisagista de marinhas que encantou a crítica e o público, antes do câncer fatal, foi acometido, quando ainda era marinheiro, de uma tuberculose que o impediu de receber um prêmio de viagem ao estrangeiro, em 1941, no famoso salão revolucionário da Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes. Iberê Camargo assassinou um transeunte que estava discutindo com uma mulher quando o artista foi tomar satisfação com ele e, depois, armado de uma pistola, disparou a sangue frio contra o homem; o fato trouxe consequências graves para a vida do pintor, mas foi absolvido como legítima defesa.

Caravaggio (1571–1610), um dos artistas do barroco italiano, teve uma vida tumultuada de brigas e assassinato, apesar das representações religiosas em sua obra — morre aos 38 anos como consequência de suas extravagâncias. Picasso, com toda a riqueza e fama, tinha uma relação familiar das mais trágicas, principalmente com as oito mulheres com que conviveu. Duas delas suicidaram-se após a sua morte: Jaqueline Roque, a última, em 1986, com um tiro na cabeça, e Marie-Thérèse Walter, que se enforcou em 1977. Poderíamos lembrar ainda duas artistas que se incluem numa vida trágica, a mexicana Frida Kahlo, com as intermináveis cirurgias, e a escultora francesa Camille Claudel, que morreu em um manicômio, em Paris, após 30 anos de internação. Quanto a nós, é só bater na madeirinha três vezes, toc, toc, toc...


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O autorretrato


Na história da arte, o autorretrato é uma das formas de registro do artista por ele mesmo. É quase sempre uma autoanálise profunda, às vezes cruel, como no caso de Van Gogh e Gauguin, que se retrataram nos momentos mais terríveis; outros artistas optaram por uma representação imponente, ou como Narcisos, encantados com a própria imagem.

Van Gogh, em todas as suas angústias, permanecia ante o espelho a pintar e desenhar o próprio rosto para poder decifrar a dor psíquica, mas também nos momentos de intervalos de relativa paz. Gauguin, à procura de um paraíso, se indagando acerca da sua visão como artista e a se autointitular selvagem e genial, confiante, se fortalecendo de ideias imbatíveis.

Em Picasso, era o olhar agudo a referência de si mesmo, ou as cenas clássicas O artista e o seu modelo, com um interesse de se colocar lado a lado ao corpo nu feminino, sendo o perfil do artista representado como uma presença permanente nessas obras. Cézanne, uma das fontes estéticas de Picasso para a consolidação do Cubismo, se retratava tal como uma pedra, impenetrável psicologicamente, submetia a face à simples concepção do espaço geométrico, sem as emoções, por exemplo, vangoghianas; o tempo das sessões era quase interminável, assim como pintou O Monte de Sainte-Victoire em sucessivas versões, nos trinta quadros a óleo e mais de quarenta aquarelas.

No Renascimento, alguns artistas se representaram cada um com uma visão peculiar. Da Vinci, como sábio que era, pintou seu mais famoso autorretrato (1510–1515), com uma barba, já velho, alquebrado por excesso de trabalho. Um desenho magnífico, em linhas claras e objetivas. Botticelli se fez representar, em têmpera (1475), na obra Adoração dos Magos – Galeria Uffizi, em Florença. Rafael Sanzio, num óleo sobre painel (1506) de pequenas proporções (47,5 cm x 33 cm) e no afresco A Escola de Atenas (1509) – Stanza della Segnatura, Vaticano –, onde se autorretrata como um dos presentes na cena.

O autorretrato é uma das mais curiosas representações do artista. É um documento do seu olhar sobre o mundo, uma verdade que passa para o espectador, principalmente quando realizado por artistas que pretenderam e realizaram obras que são patrimônio para a humanidade.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Os chefetes


Refiro-me aos chefetes de governos municipais e estaduais, que se arvoram de uma autoridade emanada do seu grande senhor: um presidente de uma estatal, secretário de estado, diretores e presidentes de instituições, etc. Esses personagens se tornam, muitas vezes, revestidos de um poder arrogante que oprime os seus companheiros mais elevados moral e intelectualmente. Eles pensam que têm carta-branca para cometer as arbitrariedades mais absurdas possíveis. E esses ainda possuem o DNA de certa psicopatia de ex-carcereiros de presídios, não identificada pelos seus superiores ou pela medicina que trata dessa patologia entre os corredores da administração pública, porque a sua atuação se caracteriza por um sadismo para àqueles que dependem das determinações deles e, na frente dos mestres, se comportam como seres adestrados.

É um sujeito capaz de apontar um falso deslize de um colega por simples prazer de deixá-lo triste, deprimido, isto se dizendo acobertado por lei ou Decreto que o torna num rei da severidade e da obediência servil aos prefeitos, governadores, secretários, presidentes de empresas... E, às vezes, deixam esses seus mentores em situações constrangedoras, porque quando fazem os deslizes administrativos ou quando flagrado em perseguição a um colega, culpam as ordens que receberam do príncipe da alta corte ou das leis e Decretos.

Geralmente são apadrinhados por políticos com força e influência no poder dessas administrações, que não constatam o caráter e não acompanham o seu desempenho na empresa escolhida que foi lotado. E qualquer opressão sobre estes, correm logo para os seus “padrinhos” para que venham em socorro dos seus atropelos criminosos. Estamos cansados de ver esses chefetes a distribuir dinheiro sob ordens superiores, como no caso do mensalão, em que se têm vários exemplos, e, hoje, os mesmos se apresentam num oceano de inocência.

Valorizar um trabalho de um companheiro, nunca, sempre ele, o chefete é que é o autor das grandes obras elogiadas pelos donos do poder. Os colegas são para serem maltratados de todas as formas, mas com bastante cuidado para não se caracterizar como assédio moral, não deixam rastros, seus pés são como de algodão, ocultando toda a sujeira de sua passagem. O mau-caratismo é praticado com um ar angelical, como uma aparente ética quase religiosa. Pois, o país está inundado desses personagens, que testemunhem Lima Barreto e Machado de Assis, em todos os recantos do poder, pobreza moral e lama nas repartições públicas!  



sábado, 8 de setembro de 2012

Coragem e leveza


Cada cidadão, ainda que não revele publicamente, tem o seu político que admira por uma realização social, sem que seja uma obra monumental: uma praça, uma escola, uma biblioteca, um hospital, um museu, uma avenida, um calçamento... Ou por uma atitude nobre que o destaque como político.

Convencionou-se em nosso país a não valorizar o político, nivelando todos por baixo: uma injustiça com os que realmente existem como exceção no Brasil. O mensalão e toda espécie de corrupção, essa chaga “democrática”, ajudou a desenvolver a ideia do mau político. Os privilégios do poder legislativo também. Mas todos os poderes no sistema democrático brasileiro criaram privilégios que reafirmam as desigualdades sociais. O Executivo, o Judiciário, o Legislativo, tem cada um deles, o lado podre instituído e amparados por leis. Mas também não deixamos de ter os ministros interessados em fazer obras em benefício social; os bons magistrados que procuram cumprir os seus deveres ante a sociedade; e os políticos que sonham com um país melhor e que dê condições plenamente favoráveis à população.

É uma minoria, nós sabemos, mas importantíssima, que tentam trabalhar para construir um mundo mais justo. O cidadão deveria observar, no caso particular dos políticos, a história dos parlamentares: os nossos representantes são reflexos das ações no voto e o que pensamos sobre o poder legislativo. Mas parece que permanecemos cegos sobre isso. É preciso fazer uma análise fria e comparar aqueles que representam a pior espécie do ser político e separar o joio do trigo; mas, para isso, talvez, precisemos de uma sólida formação cultural.

Dignidade e coragem são as características básicas para a atuação de um político que quer lutar em benefício da sociedade; e ainda requer uma sensibilidade especial, como antenas, para captar a vontade e as necessidades do povo e é aí onde se constrói o político carismático, porque ele se integra aos anseios coletivos como se fossem os seus próprios. Luciano Siqueira, que é um deles, médico, escritor, e, principalmente cidadão que ofereceu sua vida aos seus ideais, desafiou seus algozes, à época em que o forte argumento era a tortura, saindo vitorioso nessa luta, sem ódio; e o fez dizer, em seu livro de crônicas Como um lírio que brotou no telhado: para qualquer candidato, “pesa o estado de espírito, que precisa exibir coragem e leveza – para que atraia, agregue, entusiasme, convença, lidere.”

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Sonhos de Chagall


O pintor Marc Chagall (1887–1985) teve, na cidade de Vitebsk, onde nasceu, a fonte durável para a criação de seus trabalhos. A memória do artista era repleta de passagens inesquecíveis daquele recanto da Rússia. Foi ali que descobriu seu talento e o amor por Bella, a primeira esposa, que o acompanhou a Petrogrado, a Berlim, a Paris e ao exílio nos EUA, quando fugia dos nazistas; era uma companheira produtiva e presente em muitas fases do artista. Os dois, judeus, mergulhavam na cultura judaica; ela, apegada aos rituais e às tradições, escrevia em iídiche e deixou um livro de memórias, que foi ilustrado pelo artista. Na obra de Chagall, a terra natal e a Bíblia foram mescladas e representadas com técnica e grande imaginação.

“Sonhos, sou um sonhador. Herdei essa índole onírica de minha mãe...”, disse Chagall em carta às suas irmãs. Foram esses sonhos que o alimentaram durante os seus 97 anos de vida.

Na juventude, após ter explorado Vitebsk em pinturas e desenhos e formado uma base com as orientações do pintor Yori Pen, partiu para São Petersburgo, a fim de ampliar seus horizontes nos estudos de Belas-Artes, mas logo se decepcionou com os métodos encontrados. Foi lá que teve as primeiras notícias da modernidade e conhecimento de Gauguin, iniciando uma linguagem própria que o desenvolveu e o tornou o Chagall que vemos propagado na História.

Na Alemanha, Chagall encontrou, com maior consistência, o público e o mercado para adquirir suas obras, após ter passado uma fase de entusiasmo com os movimentos culturais pós-revolucionários de 1917, que, por motivos de divergências, o fariam se afastar da Rússia por pretender maior liberdade para elaborar o seu pensamento na arte.

Paris, na verdade, era a sua meta, o seu sonho. Ele encontrou a Escola de Paris e se tornou um dos seus membros mais importantes. Conviveu com Soutine, Modigliani, Matisse, Picasso, Derain, Vlaminck, o marchand Ambroise Vollard, os poetas Apollinaire e Blaise Cendrars, tendo este último se tornado seu amigo. Nesse momento em Paris, dizia de si próprio: “A única coisa que vale a pena é que mestres como Matisse reconheçam a sua existência. Um teste? Sim. Paris é o peso mais pesado que pode existir para um artista”.

Ao final da vida de Chagall, as suas obras, com as imagens flutuantes e leves, em cores puras e extremamente harmoniosas, eram disputadas pelos museus e colecionadores, na Europa e nos EUA, numa consagração absoluta no mundo da arte.

                                                                 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Arte e Política




                                                      Portinari - "Os retirantes"




Sempre na época das eleições os artistas plásticos são solicitados para dar apoio político às campanhas; há assembleias, exposições, declarações, artigos e toda uma manifestação que feche a garantia de que eles estão do lado escolhido. Quando da volta do exílio e da candidatura de Miguel Arraes, nós estávamos presentes pintando muros com o grupo que chamamos de Brigada Portinari, numa bela campanha, porque acreditávamos na redemocratização e na volta de um político que foi retirado do Palácio do Campo das Princesas, simbolizando, assim, a expulsão de todos nós daquele palácio. Participar da Brigada Portinari nos deu muita alegria e fez história nas artes visuais.

A primeira candidatura municipal do PT, em 2000, só foi bem-sucedida por causa da presença entusiasta de personalidades no âmbito cultural e artístico, participando de encontros e expondo ideias; caso contrário, certamente não ganharia com aqueles pouquíssimos votos de diferença. Logo após a vitória, o secretário de cultura deu às costas a um segmento de artistas, não ouvindo os seus anseios ou não aceitando as reivindicações vindas das ideias que surgiram nas reuniões tão concorridas. O secretário só queria pensar “grande” querendo instalar o Museu Guggenheim na cidade, sem pisar no chão da realidade — iniciativa que “virou água”. Depois de longos anos, nada mudou nos museus municipais, ou muito pouco. Todos estão decadentes e sem verbas básicas para confecções, por exemplo, de um simples catálogo ou para infraestruturas necessárias para fazer um museu andar, sem falar nos baixos salários dos seus diretores.

Agora, em 2012, durante as campanhas, vão começar as mesmas histórias de reuniões e todas as formas de envolver os artistas para dar o respaldo necessário eleitoral. Creio que está no momento de o artista se impor como uma força independente, exigir em documentos formalizados os compromissos dos candidatos e cobrar, com altivez, a concretização de um plano de desenvolvimento dos museus já existentes e fazê-los agentes da cultura com maior força e eficiência. Diz-se que não se tem dinheiro para investir nas artes plásticas, mas, para instalar os palanques em cima da obra plástica Rosa dos Ventos, de autoria de Cícero Dias, e pagar altos cachês aos cantores de outros estados, para deles tirar imediatos proveitos, não há limites financeiros, porque são eventos que atraem as grandes massas; mas sabemos que a cultura não se expressa apenas com o talento dos nossos cantores, também com o dos poetas, dos escritores, dos artistas plásticos, dos atores... são as fontes de que a administração pública e os políticos precisam em suas campanhas.

                                                 

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Um artista múltiplo


                                                                        Raul Córdula

Na Galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, com sua área circular e espaços abertos, o espectador, de qualquer ponto do olhar, vislumbra a obra do múltiplo artista Raul Córdula — que inaugurou a exposição 50 anos de arte, uma antologia —, num equilíbrio entre a arquitetura e o pensamento que emana dos trabalhos do autor.

É uma bela exposição para se olhar e para se pensar, porque em cada série encontramos o alimento para os sentidos, por simplesmente estar presente a plenitude do artista com relação ao percurso que desenvolveu e o prazer de ter marcado uma história construída passo a passo com a coerência de um dos artistas mais presentes na arte e na política cultural do País, admirado e estimado pelos seus pares; e mais ainda para se pensar, porque induz o público a ver além do véu, das aparências, e o faz penetrar no objeto da intenção da obra, educando-o em outra percepção, dando-lhe meios para questionar a arte nas suas amplas interpretações.

Córdula nunca esteve dissociado de um objetivo coletivo: o seu trabalho permanente é ver a arte inserida num contexto social que envolva a comunidade, o artista, o público e todos os que possam circular nesse âmbito. Mesmo nos trabalhos mais recentes, que o artista intitulou Fachada, que tem uma conotação do pensamento estético que tanto o atrai, a geometria, o mote foi uma pesquisa realizada sobre a arquitetura popular do interior e, em uma dessas obras, interpreta a representação de um carro que captou em um grafismo numa das casas no Sertão do Ceará. Na série Paris, de 15 aquarelas, percebe-se a mão do pintor em gestos que estão presentes em outros trabalhos; essas aguadas em pinceladas tênues quebra o rigor das formas geométricas, os triângulos, os círculos, os pontos, numa sinfonia cósmica.

O artista segue em todo o espaço da exposição — com a curadoria competente de Olívia Mindêlo — dialogando com o espectador, mostrando-lhe que a arte transgride certos valores políticos, principalmente nos anos em que éramos proibidos até mesmo de usar metáforas: tudo era subversão, inclusive a inteligência. Na série Araguaia, Raul Córdula denuncia e lembra o trucidamento dos guerrilheiros presentes naquela região. Em outra série, 1968, as obras Primavera Negra 1, 2 e 3 representam mãos que nos apontam armas e foram censuradas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ao serem expostas no hall dessa instituição. Há ainda O País da Saudade, um trabalho em que Raul estabeleceu correspondência com os artistas enviando um papel em branco com esse título para que cada um deles interferisse na proposta...  
 

sábado, 21 de julho de 2012

Visão do Recife


  Imaginemos o centro do Recife sendo preservado desde a segunda metade do século 19, respeitando e dando ênfase à sua história urbanística. Mas o nosso caminho foi o inverso: começamos a destruir grande parte da cidade e deixamos, apenas, significativas obras, talvez porque não pudemos arrancá-las facilmente, como os fortes, as igrejas mais importantes e o Bairro do Recife, que ainda estava plenamente ativo no início e na metade do século 20.
 
  O que segura a impressão de beleza da nossa cidade é, principalmente, a paisagem vista por cima, aérea, que nos dá a oportunidade de contemplar os rios e as pontes, as ilhas e o imenso mar que banha o litoral. Porque, na hipótese de aterrissar ali, na Av. Guararapes, e caminhar pelo centro, teremos uma decepção! As calçadas tristemente malconservadas; os edifícios sem uma fiscalização eficaz; a sujeira nas ruas, com plásticos e papéis de toda espécie; e a poeira característica da falta de limpeza urbana. O centro do Recife está numa aparência que nos sensibiliza. Não sabemos se está a caminho para se tornar um só entulho. Basta olhar a Av. Dantas Barreto, que não sabemos exatamente para que veio, porque é uma obra dantesca que ficou para sempre instalada no coração da cidade. Para realizá-la, destruímos quase toda uma memória, com a sua igreja, a dos Martírios, e a tradição natural do bairro de São José. Lastimável.
 
  Os urbanistas franceses estiveram aqui e tentaram ajudar com a experiência deles. Mas preferem os nossos gestores, a pressa. Às vezes, podemos até consertar nessas tentativas, porém muito raramente e temos as desculpas prontas para defender os erros. Como, por exemplo, o calçadão de Boa Viagem. Tiraram as pedras portuguesas e colocaram as lajotas de cimento, que destoam da paisagem marinha, quando antes existia o desenho tão poeticamente pensado de barcos sobre as ondas. Aliás, uma obra pobre na concepção: bastava ampliar o que já tinha sido feito.
 
  “A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal”, constatou Baudelaire, no século 19, olhando para as cidades europeias, que são sumamente preservadas, principalmente quanto ao aspecto cultural. Só que, aqui, não só se muda, como se tenta destruir a memória de nossa cidade.
                                         Recife

terça-feira, 10 de julho de 2012

Vicente, o inventor


O pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899–1970) tinha o espírito renascentista em sua verve criativa, isto é, a diversidade do olhar sobre a arte, como os grandes artistas do quattrocento italiano; nele, estavam o pintor, o escultor, o artesão, o ilustrador, o poeta, o editor, o diagramador, o tipógrafo, o fotógrafo, o figurinista, o cineasta, o jornalista, o radialista, o professor, enfim, o inventor, como está nos versos de João Cabral de Melo Neto: “Que quando a mim/ Alguém pergunta/ Tua profissão/ Não digo nunca/ Que és pintor/ Ou professor/ (Palavras pobres/ Que nada dizem/ Dessas surpresas)/ Respondo sempre:/ É inventor/ Sonha ao sol claro/ De régua em punho,/ Janela aberta/ Sobre a manhã”.

Mas a parte central do percurso como criador foi a pintura, tendo o desenho como um elemento fundamental para construir as ideias nas linguagens que selecionava.

Em 1911, estava em Paris iniciando os contatos com a vanguarda parisiense. Esses primeiros anos, junto ao irmão Joaquim, deram-lhe a base sólida para formar pensamento próprio, mesmo com a influência que recebeu dos movimentos estéticos revolucionários. Nesse alicerce pôde ver a cultura do seu país como um dos motes importantes para a visão plástica que iria desenvolver na série de estudos indianistas, através da cerâmica marajoara, sendo um dos primeiros artistas brasileiros a se interessar pela vida e pelas lendas indígenas de forma mais sistemática. Ou seja, um dos artistas modernos a antecipar o ideário da Semana de Arte Moderna de 1922, como também um dos participantes da mostra paulista.

A década de 1920, no conjunto da obra de Monteiro, foi uma das mais criativas e sólidas, porque, além dos trabalhos representativos indianistas e da participação na Semana, realizou uma pintura também considerada definitiva para consolidar o pensamento pictórico do artista, com uma conotação plástica realçando os volumes das figuras, construindo um aspecto quase escultural da forma, partindo de temas religiosos, como A Crucifixão (1924), Pietà (1924) e, em seguida, trabalhando variados temas, como animais, assuntos proletários, alegóricos... É com essa técnica que Vicente é mais universalmente conhecido e representa a nossa cultura como um dos artistas mais férteis, deixando um patrimônio imensurável que não se resume só a esta fase: até o final do seu percurso, as suas realizações são múltiplas e seminais para todas as gerações de artistas que o sucederam, tornando-o uma espécie de unanimidade nacional como uma das árvores mais frondosas da arte brasileira.



A Crucifixão (1924)

sábado, 16 de junho de 2012

Picasso e Guernica


Quando no início dos conflitos da Guerra Civil Espanhola — 17 de julho de 1936 —, Picasso estava plenamente afinado com o governo republicano legítimo, que, vitorioso nas eleições, em fevereiro de 1936, retornou ao poder, democraticamente, como Frente Popular, contrariando os nacionalistas, falangistas — que eram os simpatizantes do nazifascismo – e os antirrepublicanos, apoiados por Franco, o chefe dos militares.

Foi encomendada, em janeiro de 1937, a Picasso, pela Frente Popular, a realização de um afresco para ornamentar o Pavilhão Espanhol da Exposição Universal, que seria concretizada no mesmo ano, em Paris. O bombardeio de três horas e meia à cidade de Guernica, no País Basco, comandado pelos alemães com o apoio de Franco, destruindo-a materialmente e, principalmente, ceifando vidas humanas, o que trouxe consequências dramáticas ao povo daquela terra considerada santa pela Espanha, fez Picasso mudar de projeto e consolidar a ideia de pintar uma obra com uma dimensão monumental, no conteúdo e nas proporções, que denunciasse esse crime contra a humanidade, de repercussão em escala mundial: representaria o horror da Guerra Civil Espanhola.

O artista se empenhou no trabalho com sangue, paixão e, sabendo da importância daquele momento e da sua história na arte, organizou as sessões de pintura e desenhos de uma forma que todas as etapas fossem registradas. Por exemplo, temos hoje registros, em todos os livros sobre o assunto, das oito fotografias que descrevem as várias passagens de Guernica. Para iniciar essas sessões, Picasso realizou 45 estudos rigorosamente datados. E foram cinco semanas ininterruptas para finalizar a grande obra. Cada etapa era uma transformação, um acréscimo ante o plano inicial. Também se utilizou do seu percurso pictórico. Era como se reunisse todas as fases, principalmente as que dão uma ideia do inconfundível estilo picassiano.

Picasso explorou, com óleo, os negros intensos, os tons cinza e o branco para dar uma passagem direta para a luz, numa tela de 349,3 x 776,6 cm. O cavalo é centralizado na composição como um elemento de forte dramaticidade; a cabeça do animal expressa algo de dor, de desespero; a língua é um elemento pontiagudo para dar mais ênfase à cena. Acima da cabeça, uma luminária, talvez como símbolo do olho, daquele que tudo vê, a iluminar grande parte da composição em linhas invisíveis e abstratas, que formam um triângulo partindo do centro. Embaixo, nas patas do cavalo, uma estátua quebrada em várias partes, simbolizando a destruição.

Ao lado direito, uma figura com as mãos levantadas para o alto e perfis com olhares desesperados, surpresos pelo acontecimento; à extrema esquerda, uma mulher segura uma criança nos braços, olha para cima, e a cabeça da criança inerte como se estivesse morta. Acima dessa mulher, o olhar de um touro para o espectador e o seu corpo perdido entre os negros e o cinza. Mesmo com toda a dramaticidade, há uma simetria de valores, como se tentasse harmonizar a dor humana.      

domingo, 10 de junho de 2012

Cícero viu o mundo


Filho da aristocracia canavieira pernambucana, Cícero Dias, o pintor-poeta, como alguns críticos o veem, surgiu no mundo com um olhar agudo a todas as impressões que iriam enriquecer a sua obra, a partir da sua terra natal: a cidade de Escada. Ali viveu experiências de uma infância privilegiada dentro do universo rico de pessoas, da cultura local, do mar imenso dos canaviais, das terras dos engenhos Noruega, Contendas e Jundiá — em meio à arquitetura das casas-grandes —, de propriedade da família, principalmente o Jundiá, que foi, segundo o artista, a capital de sua infância: “Lá recebi o sopro da vida. A vida que levei nesses engenhos foi estimulante para as obras que mostrei mundo afora”.

Das terras da cana-de-açúcar, o jovem Cícero partiu, como era tradição nos engenhos, para estudar no Rio de Janeiro, e, estabelecido no colégio São Bento, o diretor informou aos pais que o aluno só se interessava em pintar. Quando souberam da notícia, perguntaram-lhe: “O que você quer ser?”. Com coragem, Dias respondeu: “Pintor”. Os pais ficaram “parados no ar”, mas terminaram aceitando.

É na Escola de Belas-Artes que a sua personalidade como artista se consolida, realizando uma obra com estilo independente e discordante do naturalismo que os acadêmicos apregoavam. Nessa fase, entra em contato com nomes importantes da história cultural do País, tais como Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Graça Aranha, Villa-Lobos, Lucio Costa, entre muitos outros que o admiravam por apresentar uma concepção plástica considerada única.

São os mesmos nomes que ficaram impressionados com a grande tela Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926–1929), que o colocou no centro e no palco da cultura no Rio de Janeiro, até mesmo de forma polêmica, porque alguns falsos acadêmicos entraram em guerra contra a obra. Esses artistas, no entanto, o apoiaram defendendo-o e incentivando-o. Nela, Cícero explodiu em imagens que lhe rondavam a mente: eram recordações do início da sua vida, histórias fantásticas; a sua força telúrica e transparência solar fazem lembrar um Chagall dos trópicos. Após a tela ser exposta no Rio de Janeiro, Cícero Dias foi motivado — com uma carta de apresentação a Gilberto Freyre — por Manuel Bandeira a expor suas obras no Recife.

O sociólogo encanta-se com os quadros do artista, e logo surge uma afinidade que permaneceria por longo tempo. Gilberto Freyre fez-lhe mostrar que os verdes que utilizava nas obras eram os dos mares pernambucanos, o que muito impressionou Cícero e o fez indagar-se: “Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros?”.

A partir daí, segue outra história: por questões políticas, é forçado a viajar para Paris, conhece artistas da Escola de Paris, Picasso, Léger, Jean Arp... E se torna o universal Cícero Dias.



Mulher na praia - Cícero Dias

sábado, 12 de maio de 2012

Tempos de Picasso



O artista Pablo Picasso (1881-1973) já fazia, com quatorze anos, uma pintura madura, com uma concepção privilegiada do olhar, apesar da tenra idade. Nesse período, influenciado pelo pai, Dom José Ruiz Blasco, pintor e professor de desenho, assinava as obras como Pablo Ruiz, a exemplo da pintura Primeira Comunhão, em cuja tela estão representados, segundo rígidos padrões acadêmicos, o pai e a irmã, Lola; com ela, foi admitido na Escola de Belas-Artes de Barcelona, onde se destacou como um dos estudantes mais talentosos.

O considerável acervo que a família conseguiu preservar dos primeiros ensaios de Pablo nas artes visuais, como criança e adolescente, foi posteriormente doado ao Museu Picasso: 213 pinturas a óleo sobre tela, cartão ou outros materiais; 681 desenhos, pastéis e aquarelas sobre papel; 17 cadernos de esboços e álbuns; 4 livros ilustrados de desenhos; uma água-forte; e diversos objetos. Num desabafo, Picasso diz de si próprio esta fase: “É bastante surpreendente que eu jamais tenha feito desenhos infantis. Nunca. Nem mesmo quando eu era um rapazinho”.

Tudo foi muito acelerado no processo de sua obra em 81 anos de trabalho e 92 de longa a vida, porque com 11 já estava criando obras, como atesta o acervo dessa época. Sua mente não comportava os cânones acadêmicos, estava muito além daquelas regras e do tempo, que não o acompanhava. Uma das últimas pinturas com esse perfil teve como título Ciência e Caridade (onde também estavam representados o pai e a irmã), pela qual recebeu comentários elogiosos e uma medalha de ouro em Málaga. Ainda ganhou outras medalhas na própria Málaga e em Madri, com o quadro Costumes de Aragão. Foi, então, incentivado a fazer o concurso na classe superior da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, em Madri, mas logo se decepcionou com aquele ensino acadêmico, abandonando a Academia para grande desgosto do pai.

À medida que Pablo vai se distanciando do universo acadêmico de Dom José Ruiz Blasco, assume o nome da mãe, assinando, aos poucos, P. Ruiz Picasso, P. Picasso ou simplesmente Picasso. É a partir daí que expressa a sua personalidade definitiva como artista. Em Barcelona, é aceito num círculo de intelectuais do café-cabaré El Quatre Gats, entre eles o seu futuro fiel secretário, Jaime Sabartés, o pintor Carlos Casagemas — que se suicidaria em Paris, o que para Picasso será um fato traumático a ponto de fazer uma obra em sua homenagem, Evocação: O enterro de Casagemas — e os irmãos Fernández de Soto.

Paris foi o seu mundo, estava destinado a ele. Foi ali que manteve contato com toda arte e com artistas que lhe dariam respaldo para ser o Picasso de sempre: com o cubismo, as esculturas, as experiências pictóricas, gráficas, deixando o gênio livre para inventar até o final da sua vida.

                                                                     

sexta-feira, 30 de março de 2012

Duchamp e a transgressão velada

Tudo começou com Marcel Duchamp, no início do século XX, quando afirmou que o seu urinol era arte e a inteligentsia cultural aplaudiu e institucionalizou que tudo o que dissermos que é arte, a partir de então, passa a ser um pensamento estético concretizado. O pioneirismo do artista francês não deixa de ser intrigante ao inventar que uma ideia vale mais que toda a prática da arte acumulada durante séculos: desde as cavernas — em que os artistas representavam a sua impressão ante um mundo repleto de caça, praticando a magia pictórica para conquistar o objeto de sua sobrevivência, representando-o como se fora já o animal capturado — até a sofisticada malha de gênios que deixaram marcas na pintura, na escultura, na arquitetura e em todas as pesquisas valiosas no âmbito da arte e comprovadas na história, presentes há séculos no imaginário do planeta.

Mas a transgressão que Duchamp veio instalar virou moeda corrente e, hoje, está consolidada e institucionalizada com a força e o poder do capital (quem diria!), dando respaldo junto a governos prontos a repeti-la à exaustão.

A transgressão institucionalizada virou tema de doutorados nas academias, inundando a mídia e a cabeça de toda uma geração cujo lema é violar. Mas o que ainda transgredir? Como tudo isso se tornou um sistema bastante fortalecido, não vejo nenhum daqueles que praticam essa meta atingir o centro desse poder avassalador, o que seria uma verdadeira transgressão; ao contrário, quando os importantes curadores dessa linha de pensamento visitam o nosso país, eis que toda uma plêiade de seres criadores se ajoelha e os reverencia como divindade e salvador da pátria quanto aos caminhos estéticos a seguir. Não, os devotos, a estes não se diz nada.

Creio que a National Gallery de Londres cometeu uma real transgressão na contemporaneidade ao montar uma mostra importantíssima para o mundo cultural — Leonardo da Vinci, Pintor na Corte de Milão —, que esteve em cartaz até fevereiro de 2012 e reuniu as mais importantes obras desse artista que deixou um patrimônio imensurável para a humanidade. Ainda bem que há o outro lado da moeda para transgredir a transgressão institucionalizada.

A volta aos grandes mestres universais é um fato e essa é uma das violações a uma institucionalização que já virou um “feijão com arroz” insuportável. No Brasil, temos pensadores que, corajosamente, se colocam na contramão dessa falsa transgressão, como Ferreira Gullar, com a obra Argumentação contra a Morte da Arte; Affonso Romano de Sant’Anna, com Desconstruir Duchamp; Luciano Trigo, A Grande Feira; e Ângelo Monteiro, com seu recente livro, publicado pela É Realizações Editora, Arte ou Desastre, obra de impacto para aqueles que pretendem se deliciar com os pensamentos do poeta e ensaísta nordestino.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Goya e a Inquisição

No século XVIII, na Espanha, era impossível não se declarar católico, até mesmo porque o Santo Ofício, o braço fortalecido da Inquisição — que exercia maior poder no século XVII —, ainda disposto ao ritual de julgamentos e a incitar a acender fogueiras nutridas de carnes humanas para iluminar a própria obscuridade, estava atento a qualquer deslize e sacrilégios dos cidadãos comuns e de pessoas que representavam importância na sociedade.

Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.

Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.

A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.

Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pregavam a abstinência, hipocritamente.

Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Michelangelo e Lourenço, o Magnífico

Foi no jardim de Lourenço de Medici, o Magnífico (1449–1492), “príncipe sem coroa de Florença”, que Michelangelo, aos quinze anos, o conheceu: uma das personalidades mais importantes do século XV, estadista e diplomata, soberano de fato da República Florentina no Renascimento italiano, patrono de pintores, escultores, arquitetos, poetas, filósofos e pensadores políticos, que o buscavam como grande mecenas e homem da cultura.

Michelangelo esculpia uma cópia da cabeça de um fauno antiga, e il patrono ficou impressionado com a inteligência e habilidade daquele garoto, que ainda estava recebendo a sua formação do escultor Bertoldo di Giovanni — que montou ateliê entre as sombras das árvores do jardim — após ter saído do ateliê do famoso pintor Domenico Ghirlandaio, onde aprendeu o ofício da pintura em suas várias técnicas, mas pensando sempre em esculpir. Naquele jardim, Michelangelo começou a estudar as esculturas greco-romanas colecionadas pelo Magnífico Lourenço, inebriando-se com a beleza e o paradisíaco estúdio ao ar livre.

O jardim, denominado Hortus Laurentii de Medicis, adornado de ciprestes, pinheiros e imagens clássicas, foi centro de atenções e presenças de arquitetos, pintores e escultores que fizeram história no Renascimento; entre eles, em épocas diferentes, Andrea del Verrocchio e Leonardo da Vinci; este último, discípulo de Verrocchio, conviveu, em sua juventude, com a corte dos Medici, no palácio Via Larga, e recebeu as melhores influências, como os que viria depois usufruir, Michelangelo Buonarroti, um artista bem mais jovem.

Ao observar o fauno que Michelangelo havia terminado, Lourenço disse-lhe em tom paternal que a escultura parecia-lhe mais um jovem romano que um sátiro. O artista, então, trabalhou a peça retirando um dente e perfurando a gengiva, aperfeiçoando a ideia de um fauno; esperou no dia seguinte que Lourenço visse aquela representação, e, logo que o Magnífico a viu, interessou-se pelo jovem escultor e o admitiu em seu palácio, permitindo-lhe conviver com a cultura provinda dos seus habituais filósofos, poetas, artistas, arquitetos, políticos e todo o refinamento da corte, oferecendo-lhe instalações para que convivesse com os seus filhos e partilhasse a sua mesa, que, a época, era uma verdadeira distinção. Para Michelangelo, foram os mais felizes anos de sua tumultuada vida de artista independente e rebelde até mesmo ante o poder pontifício do extraordinário papa guerreiro Júlio II.

No palácio Via Larga, encontrou não somente a proteção primordial do Magnífico, como recebia as melhores orientações do escultor Bertoldo, que era responsável pela coleção dos objetos preciosos de Lourenço, além de gozar de sua amizade pessoal, era uma espécie de assessor para assuntos das belas artes no palácio. Também Angelo Poliziano — poeta e um dos pensadores admitidos pela corte dos Medici — exerceu uma forte influência sobre Michelangelo, sugerindo assuntos literários para os trabalhos em escultura, como no relevo Batalha dos Centauros, tema mitológico inspirado pelo poeta. Ali, o escultor formou a sua base para perpetuar o seu gênio em obras-primas que exerceram uma forte permanência no imaginário da humanidade, principalmente em nossos tempos decadentes.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Vincent van Gogh ao espelho

Estou ante o espelho e faço uma incisão em minha orelha. O sangue transborda,e a imaginação se espalha sobre a terra, essa terra que tanto amo com um amor inexplicável; por isso pinto rápido e tanto, como se quisesse absorver todas as vibrações, todas as cores, todos os movimentos e luzes – a mente desperta para o que presencio na natureza. Há poucos dias, eu estava nos trigais, e aquele amarelo infinito e o balé de suas hastes numa sinfonia ao Sol, ao vento; a mão em pinceladas nervosas a captar o amarelo ouro do horizonte para a tela. 

Os girassóis eram tão magníficos que se tornaram obras e representaram uma homenagem a Gauguin. Tudo me vibra qual música interna, e mesmo as crianças de Arles me perseguem, crendo que o meu andar pelos campos e pela cidade indica loucura, mas nada me tira do caminho que tenho a percorrer sobre toda a natureza e a tirar dela a vida, a pulsação da arte que pretendo concreta. 

Quando olho as casas, as árvores, os animais, vejo-os em contorções num terremoto interno, refletindo a luz e a cor da terra, do céu, quebrando todas as linhas retas e tornando-as circunvoluções em negro, e, no meio, entre elas, os verdes, os azuis, os amarelos, os lilases. As árvores se contorcem subindo qual chamas e espalham as suas folhas em escamas no ar, mas captá-las no espírito e representá-Las como pontos no azul do céu luminoso e as nuvens como matéria envolvida em pinceladas circulares foi o que fiz. 

À noite, a noite dos jogos, do absinto, das estrelas, dos sóis, dos mundos, das nebulosas, a noite que represento em um simples ambiente noturno onde, no centro, está uma mesa de bilhar, uma luminária a expandir um amarelo-ocre e emanações esverdeadas, um vermelho puro a circular a sala, pessoas representadas em tênues toques de azul. 

A cena fala das terríveis paixões humanas. No terraço do café, as estrelas em espiral a brilharem intensas no céu azul-escuro são flores em fogo que mostram um mundo distante tão diferente das luminárias a gás, frágeis e débeis obras humanas. Foi ali que me apaixonei por uma prostituta e procurei dar-lhe um amor não aceito; por isso estou aqui, ante o espelho, nesse gesto dramático, pretendendo entregar-lhe parte do meu corpo como prova desse amor, e já sei que Gauguin está apavorado, porque ele me viu com uma navalha a persegui-lo. Será que eu queria matá-lo e terminei cortando parte da orelha, como numa autopunição?

Mas o que me acalma e consola é a pintura, que tudo tirou de mim, e estou exausto: a vida, a alma, por causa dos seus mistérios desvendados num único mergulho. Com ela, fiz noites estreladas, ciprestes, autorretratos para investigar o meu ser, representei crianças, velhos, loucos, flores, animais, frutos, até os meus sapatos sujos e alquebrados, tudo fiz e hoje sou lembrado neste ano de 1890, em Paris, na revista Mercure de France, por um crítico de arte, Albert Aurier, que falou dessas estrelas, desses sóis, dessas cores e me chamou de “um terrível e triste gênio”. Sim, sinto-me mais triste que gênio e disse-lhe que não merecia tão belo texto, que ainda fala da minha “insolência de enfrentar o Sol diretamente...”.