"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

sábado, 16 de junho de 2012

Picasso e Guernica


Quando no início dos conflitos da Guerra Civil Espanhola — 17 de julho de 1936 —, Picasso estava plenamente afinado com o governo republicano legítimo, que, vitorioso nas eleições, em fevereiro de 1936, retornou ao poder, democraticamente, como Frente Popular, contrariando os nacionalistas, falangistas — que eram os simpatizantes do nazifascismo – e os antirrepublicanos, apoiados por Franco, o chefe dos militares.

Foi encomendada, em janeiro de 1937, a Picasso, pela Frente Popular, a realização de um afresco para ornamentar o Pavilhão Espanhol da Exposição Universal, que seria concretizada no mesmo ano, em Paris. O bombardeio de três horas e meia à cidade de Guernica, no País Basco, comandado pelos alemães com o apoio de Franco, destruindo-a materialmente e, principalmente, ceifando vidas humanas, o que trouxe consequências dramáticas ao povo daquela terra considerada santa pela Espanha, fez Picasso mudar de projeto e consolidar a ideia de pintar uma obra com uma dimensão monumental, no conteúdo e nas proporções, que denunciasse esse crime contra a humanidade, de repercussão em escala mundial: representaria o horror da Guerra Civil Espanhola.

O artista se empenhou no trabalho com sangue, paixão e, sabendo da importância daquele momento e da sua história na arte, organizou as sessões de pintura e desenhos de uma forma que todas as etapas fossem registradas. Por exemplo, temos hoje registros, em todos os livros sobre o assunto, das oito fotografias que descrevem as várias passagens de Guernica. Para iniciar essas sessões, Picasso realizou 45 estudos rigorosamente datados. E foram cinco semanas ininterruptas para finalizar a grande obra. Cada etapa era uma transformação, um acréscimo ante o plano inicial. Também se utilizou do seu percurso pictórico. Era como se reunisse todas as fases, principalmente as que dão uma ideia do inconfundível estilo picassiano.

Picasso explorou, com óleo, os negros intensos, os tons cinza e o branco para dar uma passagem direta para a luz, numa tela de 349,3 x 776,6 cm. O cavalo é centralizado na composição como um elemento de forte dramaticidade; a cabeça do animal expressa algo de dor, de desespero; a língua é um elemento pontiagudo para dar mais ênfase à cena. Acima da cabeça, uma luminária, talvez como símbolo do olho, daquele que tudo vê, a iluminar grande parte da composição em linhas invisíveis e abstratas, que formam um triângulo partindo do centro. Embaixo, nas patas do cavalo, uma estátua quebrada em várias partes, simbolizando a destruição.

Ao lado direito, uma figura com as mãos levantadas para o alto e perfis com olhares desesperados, surpresos pelo acontecimento; à extrema esquerda, uma mulher segura uma criança nos braços, olha para cima, e a cabeça da criança inerte como se estivesse morta. Acima dessa mulher, o olhar de um touro para o espectador e o seu corpo perdido entre os negros e o cinza. Mesmo com toda a dramaticidade, há uma simetria de valores, como se tentasse harmonizar a dor humana.      

domingo, 10 de junho de 2012

Cícero viu o mundo


Filho da aristocracia canavieira pernambucana, Cícero Dias, o pintor-poeta, como alguns críticos o veem, surgiu no mundo com um olhar agudo a todas as impressões que iriam enriquecer a sua obra, a partir da sua terra natal: a cidade de Escada. Ali viveu experiências de uma infância privilegiada dentro do universo rico de pessoas, da cultura local, do mar imenso dos canaviais, das terras dos engenhos Noruega, Contendas e Jundiá — em meio à arquitetura das casas-grandes —, de propriedade da família, principalmente o Jundiá, que foi, segundo o artista, a capital de sua infância: “Lá recebi o sopro da vida. A vida que levei nesses engenhos foi estimulante para as obras que mostrei mundo afora”.

Das terras da cana-de-açúcar, o jovem Cícero partiu, como era tradição nos engenhos, para estudar no Rio de Janeiro, e, estabelecido no colégio São Bento, o diretor informou aos pais que o aluno só se interessava em pintar. Quando souberam da notícia, perguntaram-lhe: “O que você quer ser?”. Com coragem, Dias respondeu: “Pintor”. Os pais ficaram “parados no ar”, mas terminaram aceitando.

É na Escola de Belas-Artes que a sua personalidade como artista se consolida, realizando uma obra com estilo independente e discordante do naturalismo que os acadêmicos apregoavam. Nessa fase, entra em contato com nomes importantes da história cultural do País, tais como Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Graça Aranha, Villa-Lobos, Lucio Costa, entre muitos outros que o admiravam por apresentar uma concepção plástica considerada única.

São os mesmos nomes que ficaram impressionados com a grande tela Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926–1929), que o colocou no centro e no palco da cultura no Rio de Janeiro, até mesmo de forma polêmica, porque alguns falsos acadêmicos entraram em guerra contra a obra. Esses artistas, no entanto, o apoiaram defendendo-o e incentivando-o. Nela, Cícero explodiu em imagens que lhe rondavam a mente: eram recordações do início da sua vida, histórias fantásticas; a sua força telúrica e transparência solar fazem lembrar um Chagall dos trópicos. Após a tela ser exposta no Rio de Janeiro, Cícero Dias foi motivado — com uma carta de apresentação a Gilberto Freyre — por Manuel Bandeira a expor suas obras no Recife.

O sociólogo encanta-se com os quadros do artista, e logo surge uma afinidade que permaneceria por longo tempo. Gilberto Freyre fez-lhe mostrar que os verdes que utilizava nas obras eram os dos mares pernambucanos, o que muito impressionou Cícero e o fez indagar-se: “Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros?”.

A partir daí, segue outra história: por questões políticas, é forçado a viajar para Paris, conhece artistas da Escola de Paris, Picasso, Léger, Jean Arp... E se torna o universal Cícero Dias.



Mulher na praia - Cícero Dias