"A luz na pintura de Palhano é tão vital quanto a fotossíntese no crescimento das plantas, daí por que se distancia de qualquer concepção acadêmica de mera iluminação do cenário. Essa luz invisível preexiste na tela, é embutida no seu cerne, como uma candeia fechada."
Francisco Brennand

quinta-feira, 14 de março de 2002

Picasso e os Curadores

Plínio Palhano


Por ocasião da Mostra do Redescobrimento, Brasil + 500, no ano 2000, em São Paulo, surgiram, como sempre acontece, polêmicas saudáveis, entre elas a questão do verdadeiro papel do curador. Isso porque alguns artistas se sentiram injustiçados ou, de alguma forma, não dignamente representados naquela grande exposição.
Alguns críticos, historiadores e museólogos se interessaram em participar da discussão. A revista Arte & Informação pôs em circuito essas importantes vozes de profissionais envolvidos com as artes plásticas. Paulo Sérgio Duarte, um deles, que prefere ser identificado como um coordenador de projetos, renegando o título de curador, disse com fundamento que “O bom curador é aquele que não aparece  – deixa aparecer só a obra de arte que ele está mostrando. Quando a curadoria tem visibilidade, ela já está estragando tudo.” Para se entender com a curadoria, o artista plástico Cildo Meireles, um dos escolhidos na Mostra, foi obrigado a se utilizar de um intermediário no diálogo, com o objetivo de colocar o seu ponto de vista  em relação às obras que participariam, embora tenha predominado a versão da curadoria do evento, sobre a qual, naquela oportunidade, Meireles expressou publicamente sua contrariedade.
Outro artista que se sentiu pobremente representado foi Henrique do Amaral. Dos seus trabalhos, foram selecionados apenas dois, não considerados por ele importantes para aquele momento, por não favorecer uma visão real da sua obra, realizada em 45 anos de arte. Amaral chegou a afirmar: “Não sou o darling da moçada”. Por sua vez, a crítica de arte, historiadora e museóloga Aracy Amaral foi contundente e irônica: “Os curadores usam roupas de grife, como treinadores da Seleção Brasileira – sapatos, relógios – e há um dandismo no ar que  combina com a banalização de sexo, afetos, moral, uso de drogas, como se nada mais importasse, só isso: a avassaladora importância do dinheiro e das grifes”.
Em seu Dicionário Crítico de Política Cultural, Teixeira Coelho aproxima o sentido atual do curador com a definição jurídica tradicional: “aquele que, por incumbência legal ou jurídica (no caso, cultural) tem a função de zelar pelos bens e interesses dos que por si não o possam fazer, como os órfãos, loucos, tóxico-dependentes, estróinas, etc. Os artistas surgem, assim, como aqueles que não sabem ou não explicitam as tendências em que se encaixam, suas hipóteses de trabalho, suas propostas: não têm controle sobre sua obra, são relativamente incapazes de geri-la”. Ou seja: em tese, o artista deixou de pensar o seu mundo, sua cultura, para ser simples instrumento de reflexões teóricas desse novo agente da arte – o curador.
Mas os artistas deram as suas definições e criaram a história da arte de que  temos notícia. Não coube a nenhuma outra figura, a não ser a eles, os artistas, a construção desse pensamento. Claro que sempre estiveram associados, de forma instintiva e inteligente, ao poder. Poder do qual hoje esse personagem, o curador, é o mais próximo.
Difícil é imaginar um artista como Picasso, com aquele olhar penetrante e agudo que tinha, ouvindo docilmente a opinião de um curador sobre como deveria ser sua próxima retrospectiva. Ele, de braços cruzados, com ar de quem está se protegendo das possíveis interferências estabelecidas dentro dos “critérios” internacionais vigentes… Brassaï, o fotógrafo predileto do artista, no seu livro Conversas com Picasso, narra um fato por ele presenciado que pode ilustrar muito bem o que queremos dizer.
Um importante editor alemão estava interessadíssimo em lançar uma espécie de álbum só sobre as esculturas do mestre. E como Brassaï era o fotógrafo oficial, acompanhava o editor na revisão das esculturas, que deveriam ser fotografadas no ateliê do artista. De repente, o alemão pára ante uma escultura (A Ave) e murmura no ouvido do fotógrafo: “Não vale a pena fotografá-la. É mais um objeto que uma escultura…” Picasso conseguiu ouvir a frase do editor e com energia, apontando para a escultura, disse: “Faço questão absoluta de que essa escultura figure em meu álbum!”. E, horas mais tarde, sem a presença do editor no ateliê, Brassaï ouve o desabafo do artista: “Um objeto! Minha Ave então não passa de um objeto! Quem ele pensa que é, esse homem? Ensinar a mim, Picasso, o que é ou não uma escultura! É muito atrevimento! Disso eu entendo provavelmente mais que ele… O que é escultura? O que é pintura? As pessoas se apegam às idéias  velhas, a definições caducas, como se o papel do artista não fosse precisamente propor novas definições…”.

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